"Sempre noutro lugar"

  • Sobre a impossibilidade de estar quieto

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

                    

        

 Tão longe de Galileu

[  Turistas a entrar/sair da Torre de Pisa. Pisa. Itália. 2008 . ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                       

       A Natureza, tal como a entendemos, é invenção recente. Cultura e Natureza separaram-se quando aparece a noção de paisagem que chegou bem tarde.
    A criação da paisagem
[1] tem pouco mais de quinhentos anos,  separação da Natureza do que já está domesticado. O poeta Petrarca terá sido o primeiro homem que subiu ao Monte Ventoux, apenas com a intenção de contemplar o panorama lá do alto.
    Transgride assim as formas do olhar que passa do útil ao estético. Muitas pessoas nunca verão  paisagens mas o lucro, a utilidade e até o sagrado ou o político.
   A nossa percepção está prisioneira da época, ideologia e nem sabemos que damos ao mundo valor e sentido que nos inculcaram. “Vemos em perspectiva, vemos em quadros, não vemos nem podemos ver senão de acordo com as regras artificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e a da paisagem
[2].
      Por outro lado, a Natureza já não é natural! Pouco a pouco, é um produto de venda, a relva, os jardins desenhados, a sua falsa naturalidade que é só artifício. Assim estudou a Natureza o sociólogo Abraham Moles ao reflectir que é “ como qualquer objecto, ou a casa, o produto do artifício. Digamos melhor: a Natureza é um erro (histórico).
[3]
    Até há bem pouco tempo, a Natureza era “o reino da pura necessidade” conforme viu Kant que a separava do “reino dos homens com pura finalidade e liberdade” num progresso da espécie em que tinha crença firme.
    No dizer de Baudrillard, o que inventámos foi “a Natureza reciclada” e vemos já construídas, bem domesticadas, paisagens idílicas, de cascatas, lagos, bosques, em cenários que passam por “naturais” quando é tão arquitectado como as “cidades” artificiais.
    A arte do olhar é marcada por mil condicionantes práticos e intelectuais, do grupo e da herança cultural.
    Da fruição dos pintores e poetas passa para o efémero prazer do viajante e deste para o turista glutão, de olho no relógio, marcando o tempo para consumir países, monumentos, praças, lagos ou museus como um coleccionador de lugares.


    Nada nem ninguém escapa à ideologia do consumo. Os turistas, se bem que pouco estudados sociologicamente, são agora uma das presas mais apetecíveis para exploração dos novos vampiros do consumismo.
   Entre o produto, o consumidor e o lucro, a mais valia é estudada até chegar ao máximo benefício de capital num mínimo de tempo. O produto que o turista tem é o tempo a gastar. Esse é o proveito que os especuladores têm para os manipular, quais legiões de formigas, por locais afamados ou coloridos de imaginário. O turista avança entre a fadiga e a euforia, a expectativa e a satisfação. Algumas das técnicas nem convém expor pela degradação do humano.
     O resultado é que aumentam cada vez mais as multidões. Torna-se difícil encontrar lugares que ainda se possam considerar exóticos, milenares ou acabados de estrear, nas condições ideais de ter o conforto, a surpresa ou o pasmo e o tratamento mais ou menos VIP. Os turistas, bem manipulados, acabam por se gastar a si mesmos nessa febre que Fernando Pessoa anuncia:
        “
Viajar, perder países/ [4]Ser outro constantemente, /Por a alma não ter raízes /De viver de ver somente/” Mas o mesmo Pessoa contradiz-se quando escreve:   “Afinal, que a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras”. O nosso poeta não viaja e o seu imaginário é o mundo inteiro.
   O turista está bem longe de ser um daqueles nómadas da era global, tal como o descreveu Pierre Lévy, figuras que promovem o Bem e o Saber, silenciosos e anónimos, que escolhem estar sempre bem longes do Sistema e do Poder.
    Quando aparece um navio ou um autocarro de luxo eis que uma mancha poluente e provavelmente bem sonora se alastra no meio da paisagem, da velha praça ou do monumento. Querem ver tudo o que pareça estranho ou exótico, pouco interessa se é autêntico ou fabricado. Tudo é para consumir.
    Depois podem nem saber bem o que viram, mas estiveram “”. Trazem a prova da sua imagem que de “” acena e sorri dentro da foto. É o efémero a eternizar-se no grotesco petrificado, para assegurar as memórias e despesas. Buscam um falso eterno retorno que dá uma ilusão de eternidade.
   Prudentemente, Baudrillard avisa que ninguém pode falar em nome da massa. Esta não tem referencial, apenas na estatística e nas sondagens que determinam a sua existência.
   Na massa tudo se apaga, tudo é absorvido como num buraco negro. Nada reflecte nem projecta. A cultura transmuda-se em formas de consumo, em especulação de um hiper real que nunca existe. O que se diz ser cultura de massas nada mais é do o consumo destrutivo da multidão, quer no espectáculo, quer na exterioridade que fascina e movimenta as emoções básicas num nível inconsciente através das imagens que nunca se transformam em ideias. O livro, a obra de arte, a música não valem se não forem vendáveis. Tornemos tudo vendável! É necessário que se possa vender até o olhar! Numa sociedade de imagens, como não vender a aparência da paisagem bem preparada, a Capela Sistina, os homens de pedra da Ilha de Páscoa, as danças indianas em Bombaim? “Conhecer é possuir
[5]
   Há um apelo para a transcendência na cultura e um apelo para a imanência no acesso igualitário e na mediocracia do Kitsch que tão bem se move no seio do turismo de massas.


   Numa mudança bem rápida, as maiorias passaram a ter o que antes eram só para as elites. Surgiram numa democratização falsamente igualitária com pouca realidade e muito espectáculo.
   Já Ortega Y Gasset insistia no desejo da vivência na multidão, num espectáculo, quando se refere à juvenil dama da sociedade madrilena “para quem um baile com menos de 800 pessoas nem lá poria o pé
[6]”.
 Em pouco tempo, o palco tornou-se do tamanho da sociedade e as plateias ficaram desertas. É pelo espectáculo que melhor se entende o desenvolvimento histórico. Todavia, isso tem sido pouco estudado. O poder público está presente na classe média, porém a ideologia produz o sentido dos factos e dos objectos.
     Dentro da ideologia, a consciência é construída e as regras da produção estão ocultas. As minorias, a quem por razões lógicas se dava poder, simplesmente não podem existir.
     Quando falamos em turistificação estamos a dar conotação degradante e poluidora do que de melhor pode haver no planeta.
    Como um simulador de presença, ou uma legião de avatares, o turista de massas quer o espectáculo, o único, o paraíso, a “paisagem de sonho” que os folhetos vendem, até em prestações. A multidão, quando chega, oculta o sonho e esmaga a paisagem. Entra num jogo tão falso e artificial sem ver que está a poluir com a sua presença a vida quotidiana dos habitantes que são vistos como curiosidades, por vezes doentia, por vezes em busca do exótico ou do espectáculo. Será muito bom ainda se ficarem por aí, sem mais degradação dos povos por onde passam.
   Estar de passagem não é, de modo algum, ser nómada como pretendem os técnicos de turismo em sua defesa. Há entre o habitante do lugar e o estrangeiro uma relação de submissão e domínio em que todos perdem a autenticidade.
     O turista procura a experiência de prazer e liberdade que não tem no quotidiano. Diz-se que “O turista de classe média procura ser camponês por um dia, enquanto que o turista de classe baixa procura ser rei.”
   O exotismo, os lugares de moda, os centros religiosos, os ícones da cultura, com toda a sua carga de raridade e solidão, transformam-se em objectos de consumo. A degradação da arte está na sua multiplicação, na banalização, na posse de um objecto mítico. O objecto do desejo é inalcançável, quer seja do longe, do lenda ou da cultura.  
  Afinal, as massas parecem contentar-se com pouco e estão por escasso tempo em cada lugar. Porém, mundo turistificado, pronto para vender e “usar”, é o mais degradante modo de usufruir a nossa bela e espantosa herança que a Natureza deixou e a Humanidade nos legou.



NOTAS:
 


[1] Cauquelin, Anne, A Invenção da Paisagem, Editora Martins, Martins Fontes, p.79.

[2] Idem, Ibidem, p.79.

[3] Moles, Abraham, pg.9.

[4]  Álvaro de Campos, Poesias, Europa-América, pág. 132.

[5] Moles, Abraham, Psychologie du Kitsch, L´art du Bonheur, Edição DENOEL/Gonthrir, Col. Meditations, nº. 144, p.69.

[6] Ortega Y Gasset, J.M. La Rebelion De Las Masas, Revista de Occidente Col. El Arquero, Madrid, 1956,pp. 52-61.