"O relógio de Alice"
A que preço está o Tempo ?
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )
Quanto tempo o Tempo tem
[ Anúncio duma loja encerrada. Praça dos Poveiros. Porto 2010 . ]
© Levi Malho - Imagem digital
O preço por pessoa é tanto mais alto quanto mais elevado é o estatuto social. Basta comparar o tempo de um grande neurologista ou arquitecto com um camponês comum. O tempo investido na educação e estudos, transforma-se em produção e lucro.
O mito do iluminismo e das luzes continua a vigorar. Esconde porém um custo que terá de ser pago quando o esgotado trabalhador acordar para as realidades oculta.
Raros são os que vivem à margem do Poder e do Sistema, gozando apenas ócio ou lazer. Mesmo assim, dependem deles porque paradoxalmente não se sustentariam isoladamente.
Quando se lê um desses livros de Jane Austin, irmãs Bronte, Eça, Camilo ou outros, evoca-se uma aristocracia ou burguesia, onde tudo estava “às avessas”. Passava-se o tempo na maior ociosidade, caçadas, bailes, jogos e futilidades. Seria desonroso qualquer trabalho. Hoje, a ociosidade de um homem ou de uma mulher, cheios de vida que se recusem trabalhar, é reprovável.
No velho compêndio de Filosofia para os alunos houve uma frase que nos marcou com indignação. “O mundo é a casa do homem e a casa é o mundo da mulher”. Ensinar tal frase era cometer um crime. Foi o tempo, o grande mestre que os ensinou e não a frase do livro que nem lhes lemos.
Agora os desocupados não têm lugar na nova ideologia, vivem num eterno Domingo, como reflecte lucidamente Cioran, (1987)[1] “sem pertencerem à humanidade, não sofrem as consequências da Vida e do Pecado.” São espectadores da “epilepsia humana”, das semanas do tempo partido em fatias, com tais esforços que asfixiam a consciência da temporalidade. O perigo que ameaça a natural preguiça é a tentação de imitar as tarefas quaisquer que sejam e perder essa miraculosa sobrevivência do paraíso.
Diversamente, em “Tempos Modernos”, Chaplin (1936) colocou a máquina a dominar o tempo do proletário, em tarefas mecânicas, rigorosas e cronometradas sem piedade. Hoje o escravo, que ignora a seu estatuto, tem o seu ídolo que é o preço do tempo, gasta-se desditosamente e acaba por nunca “ter” tempo.
Na sociedade tecnológica e global, mais do que nunca, “time is money”, até à mais ínfima parcela de segundo. A religião austera e trabalhadora do puritanismo protestante, com o seu metódico e diligente empenho em ganhar o pão com o suor do seu rosto trouxe a mensagem. Receber as bênçãos do céu era ter abundância na Terra, com o trabalho honesto e esforçado. Isso veio a transformar-se num capitalismo que já nada tinha a ver com os primórdios religiosos.
Charles Dickens, nas suas obras, nomeadamente em “Tempos Difíceis”, denuncia a ideologia hipócrita da virtude do trabalho e do domínio absoluto dos sentimentos e sensibilidade numa inflexível prática religiosa. A pobreza era vista resultante da preguiça e dos vícios pois os pobres “gastavam” o seu tempo sem a virtude do trabalho.
Já na Idade Média o “mendigo profissional” tinha uma ambivalência de usurpador, alguém que vergonhosamente se furtava à obrigação do trabalho. Segundo narra Joel Serrão[2] (1971) “os pobres eram necessários à salvação dos ricos e dos poderosos (como um investimento no Além). Essa seria a sua “utilidade” para a socióloga Maria José Tavares também “era a sobrevivência material de uns pela salvação eterna de outros”[3].
De facto, até no que respeita à caridade, ainda hoje se pode verificar quanto é enaltecido o “altruísmo” do benemérito famoso, do milionário, dos poderosos que revelam generosidade e ajudam os pobres. Os seus méritos são exaltados e apregoados aos quatro ventos. A missão, ou melhor dizendo, a “função” do pobre seria poder dar aos ricos a sua remissão. Para isso, a caridade ainda serve.
O sentimento que move tantos famosos, em prol de causas mais ou menos filantrópicas e abnegadas, reverte para eles em aumento temporal da sua função de prestígio. Dando do que têm, não partilham muito do seu tempo. Apenas doam parte das suas elevadíssimas sobras e a sua caridade nem a justiça chega.
Nas franjas sociais, há inadaptados e desintegrados do meio. Seria errado supor que estão para além da era da abundância e do consumo. Segundo Riesman,[4] sociólogo, autor de “The Lonely Crowd”, (2002), entre as restrições de que padece o consumo, está a “resistência que as classes elevadas opõem aos arrivistas por uma estratégia de sub consumo ostentoso”. Mesmo os críticos e destruidores dos mitos da igualdade democrática são devorados pelos objectos que perdem o seu significado cultural.
Entre os que têm “tempo livre” estão as mulheres cujos maridos têm um alto estatuto e representam no palco da vida “função de prestígio”. Os reformados, alguns aventureiros e uns poucos que resistem ao Sistema estão noutros grupos. O tempo dos reformados é de sobras e parece que descem do palco para ocupar um canto escuro da plateia.
Nem por isso deixam de estar presos à ideologia. O mal-estar de que são vítimas manifesta-se na busca de inserção, quer em futilidades, desportos e viagens, em panaceias de pseudo trabalhos, artesanato, pinturas e a impressão amarga e sartriana da angústia de “estar a mais” pela surda acusação com que são vistos e se vêem.
A arte e a cultura que a multidão consome não têm nada de duradouro ou autêntico como anteriormente. Milhões de telemóveis apelam com Mozart, ou sons indescritíveis, Van Gogh vai para panos de cozinha, os Hipers apresentam caixas de chocolates com a Torre Eiffel, traz-se de Londres um prato com Isabel II.
A grande cultura do humanista não faz parte desta era. “Reciclada” e multiplicada pela informação raramente produz entendimento seguro. A multidão insaciável navega num tempestuoso mar de dados, quase a afogar-se. Jamais aprende a seleccionar criteriosamente na amálgama dos escombros culturais da falsa democracia igualitária.
O acesso transforma-se monstruosamente em excesso pela reprodução em série de todos os objectos, transformados em coisas indispensáveis, para que a espiral da economia continue. Temos de comprar para que o “progresso” avance. A abundância nunca pode chegar a todos pois a ambição insaciável de consumir coloca no futuro, o mais imediato possível, novos objectos de desejo.
Parece que Orson Wells, por ironia, afirmava que “30 anos de terror dos Borgias deram um Miguel Ângelo e um Da Vinci e quinhentos anos de paz fizeram os suíços dar ao mundo um relógio de cuco.” O medo dos governos ou da política não mata a cultura, é a apatia, o espectáculo da massa, ou os objectos que se fabricam só para consumir que a aniquila.
Por mais que se apele para a criação em lugar da perenidade, originalidade e da autenticidade, a cultura popular perde o seu valor e as massas tornam-se nas maiorias anónimas e terrivelmente banais.
O grande público e as maiorias estão centradas numa fracção da sociedade que privilegia e enaltece o tempo dos jovens. A vida precisa de jovens mas são também necessários adultos mesmo que atinjam a velhice, fim em que a juventude cada vez menos pensa ou se prepara. Viver intensamente apenas hoje adapta-se melhor a quem não tem possibilidades de futuro longo pela frente e, paradoxalmente, esses não são obviamente os jovens.
A busca da felicidade pelos ocidentais tem por fundamento ser um bem que valeria por si mesmo e não o resultado de um acontecimento. Os coleccionadores de momentos afundam-se por completo nos intervalos. Provavelmente mais longos mas possivelmente de maior profundidade para uma existência mais fecunda. O filósofo Mark Rowlands apresenta uma tese bem original, fruto das suas vivências e reflexões. Somos demasiados gananciosos para perceber que somos temporais, o momento não é nosso nem o podemos reter. Nem de nada vale a lenga-lenga de Carpe Diem que surge por toda a parte. Isso não apresenta metas, significados ou busca de limite ou sentido da vida.
Pensar que existimos e valeu para alguém o nosso tempo, demonstra que não foi em vão e será a nossa melhor conclusão. Depois a frase de Rowlands[5] interroga-nos e devemos saber responder:
“Tens a certeza de que és a pessoa com quem gostarias de passar a eternidade?”
NOTAS:
[1] Cioran, Emil Michel, Syllogismos de l´amerture
[2] Garcia, José Luís, Jerónimo, Helena Mateus e outros. Estranhos – Juventude e Dinâmicas de Exclusão Social em Lisboa, Celta Editora, Oeiras 2000. pp. 8-21.
[3] Idem, Ibidem.
[4] Baudrillard, Jean, A Sociedade de Consumo, Lisboa Edições 70, Col. Arte e Comunicação, Lisboa, 200, p.110.
[5] Rowlands, Mark, O Filósofo e o Lobo, - O que a Selva nos pode ensinar sobre o amor, a morte e a felicidade, Edição Lua de Papel, Lisboa, 2009, p.218.
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