"Enganar o Tempo"

  • Dançando à beira do Abismo

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

                  

        

 Perfeições da memória

[ Visão dum já  antigo bebedouro público.  Jardim Botânico. Porto 2010 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                       

    

     

      Sempre se disse que gostos não se discutem. Só que o gosto, embora pareça ser algo bem pessoal, subjectivo e intuitivo, não é assim. Para os pensadores que estudam o problema é fruto de uma aprendizagem social resultante dos nossos grupos, classes e épocas em que vivemos. Todos podem pensar que têm bom gosto quando emitem uma opinião estética ou fazem uma escolha mas, na verdade, a cultura é que decide esse nosso juízo.
     A sensibilidade artística, sendo uma manifestação de um estrato social, interessa tanto à psicologia, à sociologia ou à filosofia.
      Com toda a evolução da sociedade pós-moderna, há necessidade de referências, não só quanto ao vestuário mas também a todo o estilo de vida e ao mobiliário que muda de acordo com as fortes mudanças da burguesia, do sentido da família, da privacidade e do espaço.
      Ao longo de gerações patriarcais o espaço privado teve um cenário de mobiliário sólido que permaneciam e serviam de referência, de prestígio e ordem, não sendo o funcionalismo a sua mais relevante característica. Ornamento e poder eram por excelência o seu domínio, tanto quanto hoje, na exiguidade do espaço habitacional, as multifunções do mobiliário e a sua exterioridade mostram como se alterou a noção de privacidade e de público.
    Repensando o movimento social, Bourdieu surge com atenção centrada na nossa nova relação com o mobiliário. A frieza substituiu os laços de afecto e de pertença. Os belos móveis, denodadamente trabalhados que duravam gerações e acompanhavam as famílias, eram o cenário de uma estrutura patriarcal e humana. Animavam-se de afectos familiares e duma longa tradição, mas agora obviamente funcionais, um anacronismo no espaço, ou causa do gosto por antiguidades a remeter para uma forma reactiva e saudosista em busca de uma “alma” simbólica de um mundo perdido.
    Existe a celebração dos objectos, a funcionalidade e o amontoar deles em novos espaços e utilidades. Estamos na era do útil e os objectos têm de obedecer a tal regra e são utilitários na vida urbana, descartáveis logo que a moda os coloca de lado. Baudrillard afirma que “vivemos o tempo dos objectos, somos nós que os vemos nascer, produzir e morrer
[1]. O funcionalismo dos objectos que nos rodeiam dá receio que nos tornarmos também objectos funcionais para os outros, tão descartáveis como tudo o mais. Isso revela-se no marketing, nos media, na publicidade. Um “objecto humano”, pseudo atraente, incita à compra de um objecto de moda, mas ambos são joguetes de uma realidade económica oculta.

   Daí que se fale de uma cultura de morte pois a destruição é tanto mais rápida quanto mais o círculo da moda sobe na espiral da sociedade. Tudo é tão breve que parece ser apenas uma espuma cultural da sociedade consumista, só na superfície ténue do efémero.
     Aparecer é já um sinal de morte, tal como o fogo de artifício, a mais efémera das artes técnicas.
    Face às potencialidades da manipulação científica e sofisticada do gosto, notamos que é uma arma do marketing que ainda não atingiu a sua máxima eficácia, pela improvisação empírica, ou falta de aplicabilidade aos pretensos consumidores, sempre numa verticalidade que, ao atingir os patamares mais baixos das classes sociais, exige outra vez a mudança do gosto do alto da pirâmide. Também podemos ver efeitos de homogeneização de gosto e de modas, que atingem níveis nunca antes verificados, pelo rastilho da globalização que se tem de considerar muito para além do domínio económico. O público infantil e juvenil é o mais adere à publicidade e até acerca de mensagens que não lhes são dirigidas.
    Para manter um constante ajustamento às mudanças podemos cair numa espiral crescente de adaptações até atingir obsessões criadas pelo sistema que roubam toda a liberdade que antes podia existir. É impossível satisfazer todos os requisitos para estar sempre socialmente correcto, até pelas próprias contradições das mensagens. Manter boa forma, dentição saudável e um corpo sempre bronzeado e perfeito não é compatível com os alimentos que nos aliciam, com os perigos que o Sol traz, nem com a figura grácil de um adolescente a vida inteira.
     A moda tem cada vez mais o alvo de uma eterna adolescência, no seu gosto volátil, na sua insegura forma de viver.  Uma sociedade verdadeiramente rejuvenescida seria excelente se não fosse a hipocrisia de ser só na aparência e na imagem!
   À medida que envelhecemos, as imitações da juventude revelam-se cada vez mais patéticas e desajustadas. As caricaturas tornam-se ridículas e perdemos a dignidade e o sentido estético. Por isso se cria uma constante insatisfação por não se conseguir obedecer aos mitos da juventude, da magreza, da velocidade da moda, da cultura “natural”, das exigências e apelos constantes da publicidade que veicula mensagens, a mudar cada vez mais depressa em todos os aspectos.
  Por isso, a fadiga aumenta, os suicídios também, as clínicas de cirurgia plástica, o recurso a medicinas “naturais”, “quânticas”, iridologias, naturopatias, fitoterapias, uma multidão de veredas para crentes ou desesperados a demonstrar cabalmente que a sociedade está doente, neurótica e depressiva.
   As exigências de adaptação ao tipo de vida de determinados estratos sociais são capazes de multiplicar as neuroses e as perturbações mentais diversas, numa longa procissão de enfermos, ansiosos por brilhar no círculo infernal de vida que aceitaram seguir. Deste modo surgem doenças do âmbito social que se multiplicam sem grandes sucessos de cura. Desde as compras compulsivas, à viciação nas operações plásticas, aditivos de alimentos naturais, ou práticas orientais que não se adaptam ao nosso contexto, tudo isso e muito mais torna a vida um pesado fardo. Cuidar do corpo e da imagem, tal como possuir coisas, è tão viciante como o álcool ou o jogo. O prazer que a moda pode dar traz um sabor a morte, porque tudo é fabricado para morrer depressa e não para viver. Cada coisa é pensada já com a ideia de a substituir por outra, quer por querer mudar, por estar na moda, ou ainda porque os grupos se influenciam mutuamente. Por traz do culto da vida, a sociedade tem na verdade o culto da morte pela rapidez das mudanças.
    A imortalidade e raridade da obra de arte só tem sentido quando o objecto é único, não pode existir em série massificada, mas sai fora do tempo, como dizia Sartre acerca da arte, “um bloco do futuro caído no presente”.
   Ao contrário disso, a cultura, quando chega às massas, deixa de o ser porque passa a produto para consumir não para durar. Logo, o seu fim está no início pois é a destruição e a morte. Pateticamente há quem aponte para a reciclagem dos objectos, mas é um lixo que se finge ser algo com vago uso ou então transformam-se de novo em falsos objectos que não tem finalidade e morrem também.
   O gosto é perfeitamente dominado pela ideologia que determina o que é belo ou feio, correcto ou não. O olhar nunca é inocente pois está carregado de condicionamentos inconscientes do contexto social. Nunca como agora tivemos maior permissividade e aparente simplicidade que escondem as cadeias que nos prendem e nos rotulam.
   É bem verdade que o vórtice da vida que conhecemos, além de caracterizar o mito do fim de um milénio, chega carregado de novos mitos e medos, bem mais reais do que todos os outros que a condição humana passou.
   Somos, anónima e perigosamente, os mais terríveis predadores de todos os tempos sem nunca nos consciencializarmos que temos uma só casa que é este planeta. Como Goleman
[2] escreve: “Quando deitamos alguma coisa fora, não há fora”. Continua aqui, no planeta Terra”.
   Deixamos uma herança terrível e continuamos dançando à beira do abismo. Se ao menos despertasse uma forte consciência da beleza que nos foi dada, esta jóia que é a Terra, respeitaríamos cada animal, planta ou rocha, montanha ou mar. Somos todos irmãos, habitantes desta casa cada vez mais pequena e em risco!

  


 

NOTAS:


 

[1] Baudrillard, Jean, A sociedade de Consumo, Edições 70, Lisboa, 2ª Edição, 2008.

[2] Goleman, Daniel, Eco Inteligência, -Como o Consumismo está mudar o Mundo, - Edição Circulo de Leitores, Col. Temas e Debates, Lisboa, 2009, p.47.