"Um quadrado tem três lados"

  • Sobre o "ser" e o "parecer"

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

                

        

 Sonho de Euclides

[  Cobertura interior de "coreto".  Jardim do "passeio Alegre". Foz Douro. Porto 2009. ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                       

 

      É claro que tem mais um. E daí? Que mal tem dizer que um quadrado tem três lados se todos sabem isso e que tem mais um? Mas não deixa de ter três! Também todos os meses têm 28 dias e não são Fevereiro! Também há uma loja com um interessantíssimo letreiro: Compram-se velharias – Vendem-se Antiguidades. Nas greves há sempre duas contagens diferentes, a dos sindicatos e do governo. O fim do ano correu bem para a grande maioria dos portugueses, mas só foi primeira notícia a morte de algum infeliz.

    Quantas vezes não ouvimos meias verdades piores do que estas e não reagimos? A matemática é a aquela matéria que irrita mais talvez por não admitir ser contrariada como menina mimada que se tornou. As crianças gostam imenso de apontar os erros fáceis e quanto mais ignorantes somos menos perdoamos os pequenos lapsos alheios.

    Janeiro é o mês das maiores mentiras porque se podem fazer mil planos para não cumprir, se podem comprar coisas a preço maravilhoso, mas que depois nunca iremos usar ou são perfeitamente dispensáveis. Mês de desejar o Verão mas gostar do vento a bater na cara, desejar tanta saúde e tanta paz, tantos anos bons e novos em poucos dias e depois levar o ano inteiro a torná-lo mau, sem paz, a ver quem mais engana quem, com sorrisos e mansas vozes. Lá dizia Diniz da Luz que “a sereia canta nos portos” e é meia verdade pois não há sereias, mas não faltam doces falas para bons negócios à custa dos ingénuos ou pobres. E depois é o quadrado que tem três lados e isto é que é o grande mal?

   As meias verdades são boas para tudo. Ainda têm a vantagem de se poderem dizer sem serem boatos.

    A verdade pode ser tanta vez maltratada que o silêncio contrafeito e condoído vem abrigar a pobre desgraçada.

 . Levantou-se um alarme, pior que um triângulo ter dois ângulos, por causa da famigerada gripe A. Por teimosia, embirração ou desconfiança, a maior parte dos europeus recusou-se a levar as tais vacinas indispensáveis e agora querem vendê-las a preço da chuva para os crentes doutras paragens. A pandemia desapareceu. Isto é mais uma meia verdade pois nos referimos a ter-se evaporado das parangonas dos noticiários e reduzida a uma notícia em tímido murmúrio. Será que só existe aquilo de que ouvimos falar?

    Descobre-se que temos muita fé na nossa saúde e não somos assim tão pessimistas pois acreditamos que umas laranjas e meia dúzia de comprimidos suplementares, mais ou menos naturais como a venenosa cicuta, nos livrarão de todos os males. A crença nos produtos naturais é que não é nada natural mas muita propaganda barata pois nem certificados são e, se formos mesmo investigar a “naturalidade” desses produtos, teremos surpresas que não são nada naturais.

  Janeiro chega com as suas portas e os romanos davam-lhe o nome de Jano por abrir um tempo e fechar outro. Para muitos é um trabalho desagradável de começar a fechar contas e dar balanços. Os que vão aos saldos, se se arrependem ao chegar a casa é tarde e não há devoluções. Na vida também não se devolvem os erros e os saldos podem servir de exemplos satisfatórios.

    Se aprendermos a filtrar bem o que ouvimos vamos descobrir que nos trocam gato por lebre e o lado oculto das histórias é muito mais importante do que os conta gotas dos noticiários.

  Informação não é conhecimentos mas finge muito bem. Temos a certeza de que um chinês acaba de espirrar na China mas não é notícia mesmo que expire de morte natural Duvidamos já do que é morte natural. Se o tal chinês se suicidar, cortando-se em vinte sete pedacinhos, pensamos que a informação chega até nós. Que é que faríamos com tal informação? Mais dados para esquecer?

  Não somos crentes em numerologias e sabemos que as cronologias não têm veleidades de serem verdade pois um calendário é apenas um acordo mas não é por isso que não gostamos lá muito de Janeiro. Seja por frio, por uma visão desencantada destas festas com alguma nostalgia e decepção por haver um só dia para ser bom e depois volta o frio na alma e o olho na carteira vazia no mês que estica. Seja pela desolação que causa ver o abandono das coisas que gastaram em vão a encher os caixotes do lixo. Pior será esse abandono dos doentes, dos velhos e por fim das crianças e animais.

    Manter a esperança é um esforço para cada dia tentar não cair no perfeito cepticismo.

    Será que sempre foi assim e estamos mais sensíveis? Não recordamos asilos cheios e gente sem abrigo embora recordemos bem as pessoas idosas tratadas pela família com algum respeito e carinho. Há muita justificação mas a mais cruel é a do esquimó. Dói-nos tal comparação mas é uma meia verdade…

   Por vezes, gostamos muito de ler as mentiras de certos escritores porque têm um estilo que se prende ao ouvido e dizem coisas terríveis que pensamos e não dizemos. Cada um a seu modo precisa de leitores como as telenovelas de gente miserável, rica em sonhos e sem muita vontade de matutar na vida que suportam.

   Ficámos saudosos demais nestes dias!

   Não gostamos deste Janeiro de duas faces, de duas portas mas devíamos gostar. Com a sua má cara não engana ninguém. Traz no bolso o futuro e a nova Primavera. Ensina-nos bem o risco de ver só uma cara quando há tanta gente que tem duas. A entender a hora de entrar e a hora de sair. A pensar nos dias bons, que podem ou não vir, mas se sonharmos muito a esperança sempre cresce como uma inesperada flor.