"Nostalgia do Sentido perdido"

  • Horizontes do tédio

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

                

       

 Pesos invisíveis

[  Escultura na cidade.  Avenida dos Aliados. Porto 2007. ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


 

     Que é nos leva a sentir tão fortemente o absurdo do Mundo e da corrida da existência, que dá essa nostalgia de uma ausência de sentido que algures devia existir?
   A falência de sentido da vida humana parece que aconteceu pela paradoxal multiplicidade de produção de objectivos por parte do Poder e dos Sistemas. Quer a política, quer a religião ou a ideologia não mostram forças para criar aspirações fortes ou ideais transcendentes. Já o assinalava Baudrillard
[i] quando referiu que “o sentido não falta, ele é produzido em toda parte” deparamo-nos é com o problema da procura que diminuiu e assim (…) a produção da demanda é infinitamente mais custosa que a produção do próprio sentido”.
   O conceito de massa, além de ser muito complexo, não encontra um consenso para além da sua falsa realidade representada pela estatistica, gráficos e sondagens. Por isso, ninguém se pode intitular porta-voz  das massas  ou de qualquer maioria. Sabemos que há um coro, mas sem maestro nem representante. Essa certeza das sondagens e outros meios similares não é mais do que abstrações de uma simulação que a política usa e que corresponde a algo contraditório no âmago do social.

    Entre os pensadores Ortega y Gasset
[ii] e Baudrillard há muitas diferenças de contextos, mas “as massas rebeldes” de um vêm a ser, em parte, “as maiorias silenciosas” de outro.

   Ao invés do que pensam ainda os herdeiros do Iluminismo, bem presentes entre nós, não há nenhuma aspiração ao conhecimento que levaria a um estádio superior das massas logo que a sua racionalidade fosse esclarecida. Onde paira a ingénua e velha noção acerca do saber: “quanto mais escolas se abrirem, mais cadeias se fechariam”?
    O bem e o saber continuam sem pontes entre si e o abismo do vazio depois do espectáculo, seja de que género for, é o que resta quando a emoção se apaga e as pessoas retomam a sua corrida sem sentido.
   Os existencialistas deixaram-nos uma visão bem pessimista com a sua mensagem, amarga e derrotista. Harmonizava-se com as crises e os horrendos paradoxos dos tempos. Em alguns casos desapareceu mesmo por completo nas massas um ideal ou aspiração por qualquer transcendência. O absurdo irrompe no teatro da História, espelha-se na arte, reflecte-se na literatura. O sentimento de “estar-a-mais”, o tédio ou o desespero não tem justificação. A responsabilidade e a liberdade deixam de ser uma aspiração de qualquer indivíduo e passa a ser uma condenação do simples facto de existir. Todos estes sentimentos e argumentos levam-nos a despertar para a falta de sentido, a sua total ausência no seio das guerras ou na sociedade de consumo.
   Sendo um pioneiro, Kierkegaard é “O” e nunca “um” indivíduo pois este se perde na multidão anónima, na repetição e na mentira de uma certa cristandade que perdeu o sentido de Cristo e se tornou apenas ética no seu conformismo. O estádio religioso vai muito para além do ético e a multidão, na sua exterioridade, não tem transcendência. 
    Já perto de nós, Nagel desmascara o absurdo dos nossos esforços para os projectos que morrem connosco. Numa sociedade de cultura de morte, toda a construção ou obra são já sinais de destruição patente do absurdo sustentado pelo Sistema.
   Essa perda do sentido está em Camus, em Vergílio Ferreira, ou em Alberto Caeiro que nos falam da desaparição da metafísica e da falta de sentido até para pensar: 

    (…) “Sentido íntimo do Universo».../Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada./É incrível que se possa pensar em coisas dessas./Pensar no sentido íntimo das coisas (…) É acrescentado, como pensar na saúde /Ou levar um copo à água das fontes. /O único sentido íntimo das coisas/ É elas não terem sentido íntimo nenhum.”

    Se não se elege um sentido de vida, todos eles são possibilidades de escolha numa sociedade tão tolerante sem grandes riscos de culpabilidade para ninguém, pois as maiorias ou as multidões não sentem culpas. Multiplicando as funções quase até ao infinito, numa cadeia de tarefas burocráticas e estrategicamente combinadas, a culpa dilui-se ao longo da cadeia e só haveria culpados se a sua consciência acordasse. Porém esses crimes não são possíveis de punir.
     As maiorias de Baudrillard estão tão perto de nós como ainda a actualidade da rebelião das massas de Ortega. Na vulgarização da tecnologia o que falha realmente é a impossibilidade da cultura acompanhar tal velocidade. A civilização dá meios de informação mas não dá cultura nem conhecimento do nosso passado histórico. Ambos os autores referem uma forma de retrocesso das massas. O futuro poderia ter maior bem-estar para as massas, mesmo bárbaras, mimadas e esquecidas da sua herança histórica, por falta de solidez intelectual. Só absorvem imagens e nunca ideias, toda a transcendência fica na liturgia e nos ritos sem sagacidade do que o espectacular oculta.
     Este é o maior desafio aos políticos e cientistas sociais porque têm de admitir que não controlam a representação da sociedade, reconhecendo que outros meios também produzem conhecimento indispensável sobre o social. As massas não absorvem a mensagem pois se ficam pela imagem e pelo deslumbramento.
      Baudrillard refere-se ao fenómeno da reacção das massas tal como um “buraco negro” do Cosmos. A tudo resistem e nada reflectem ou assimilam. Por isso escreveu acerca das massas que “não é um lugar de negatividade nem de explosão, é um lugar de absorção e de implosão.”
      O conceito de “camuflagem” de Ortega é o “simulacro” de Baudrillard, e trata-se para ambos de uma realidade que se sobrepõe a outra, numa existência contraditória. 
    Os “produtores de sentido” aceitam tal abstracção porque tanto a “opinião pública” como “as massas” são entidades sem existência real. Simulam uma hiper realidade que é aceite implicitamente. Os produtores de sentido recorrem a essa metáfora com foros de veracidade num mundo hiper real sem a realidade da massa. A classe política criou um vazio à volta do poder e já não domina a outra realidade que lhe escapa e fica-se pelo simulacro pois “já não sabe que espécie de “poder” exerce sobre ela, a massa é ao mesmo tempo a morte, o fim desse processo político que supostamente a governa.
    O paradoxo entre estes dois mundos é tecido numa cumplicidade que remete para a obra de Manderville, (1723) que tanta polemica causou. Com base na belíssima “Fábula das Abelhas” Baudrillard leva-nos a entender que há muita ingenuidade nos socialistas  no seu ideal de bem-estar geral e conhecimento para sonhar uma utopia de virtudes. Mandeville foi estudado por muitos pensadores e o filósofo
Adam Smith  ajusta-se  ao tema na síntese do egoísmo e vaidade de cada um: “movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta é levado (…) a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade.
[iii]"
    A sociedade contraria um pouco a sátira de Mandeville e é nesse paradoxo que os defensores do social correm para a sua própria ruina. O bem traz progresso mas mais ainda os vicios e os maus costumes em função da ganância e inveja.
   Arriscamo-nos a afirmar, quando Baudrillard cita Borges “mas o território não é o mapa”, que vemos aqui uma estrutura engendrada num platonismo. O mito da caverna está a representar o quotidiano vivido em forte contradição com o simulacro da realidade criada pelos teóricos, pensadores e políticos que vêem o real onde há só signos e simulacros cada vez mais numerosos. O problema da simulação não é tanto o vazio mas a contradição entre a hiper realidade e as massas que permanecem alheias a tudo isso, hipnotizadas pelo fascínio de todo o espectáculo.
     A perda do sentido estará ironicamente representada por Baudrillard, imaginando o absurdo do “homem sentado, contemplando, num dia de greve, a sua televisão vazia, (…) uma das mais belas imagens da antropologia de nosso século”.
    A nostalgia da falta de sentido demonstra o insucesso do social e a sua ruína.


 

            NOTAS:


 

 [i] Baudrillard, Jean, À Sombra das Maiorias Silenciosas ,-  O fim do social e o surgimento das massas - Editora Brasiliense, 1985.

[ii] Gasset, José Ortega Y, La Rebelion de las Masas, revista de Occidente,Colecção Le Arquero,  Madrid, Ediçión, 30ª 1956,