"Jogos de Ética"
--- Cinco Inevitáveis encontros
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )
Despertar de Beatriz
[ Pormenor de fachada da "Casa de Dante". Florença. 2008. ]
© Levi Malho - Imagem digital
1. As Metáforas do Outro
“Gostava de ver o mundo com o olho facetado da mosca ou o cérebro do orangotango”
Anatole France
É curioso como esse Outro, que qualquer um de nós é para todos, não nos faça reflectir mais no eu que tão pouco vale e tanto incensamos. De pouco ou nada valemos sem os laços afectivos que nos humanizam na partilha da Vida. Esse outro que nós somos deveria ser o único para todas as metáforas para a condição humana. Só o outro que somos para todos merece ser visto exteriormente. Só quando sentimos o acolhimento se diluem as distâncias e só assim sentimos a hospitalidade de forma interior e fraterna.
Em qualquer lado, ao afirmarmos que somos “Nós”, não há outro, vazio, ou ausências que não se dissipem.
É curioso como numa época de individualismo e hedonismo exacerbados, plena de excessos e de carências gritantes, as éticas pululam com um diapasão que vai do tom menor da utopia ingénua ao tom maior dos volumosos tratados e seus comentários que nada reflectem na vida real. Veiculam uma ideologia do Poder e encalham quase sempre nos escolhos de estudar o que é a natureza humana. E um dos factores mais importantes a não esquecer é que a natureza humana age, altera-se, inova-se.
Diante de novas gerações urgia pensar na educação para o nomadismo porque, no futuro, não seremos nem da cidade nem da ruralidade em lugar algum, mas de um espaço e tempo que não se regulamentam pelos velhos parâmetros tradicionais.
Nem sempre o passado e as suas lições resolvem o futuro e muito menos este que anuncia séculos de uma Humanidade nova.
A comunicação transforma agora a Terra, como o primeiro dilúvio, mas este segundo dilúvio é o do Espírito e do conhecimento que permite um novo rosto humano. Uma herança cultural, económica ou política pode ser divulgada como nunca se imaginou e, ao mesmo tempo, uma catadupa de informações e conhecimentos adensam a rede do espírito que cobre o planeta. A proximidade toma uma nova dimensão não só entre pessoas mas entre ideias e novas necessidades para entender a condição humana.
Entre nós e o outro há um sentido de ausência ou distância que chega a revestir-se de fonte de assumida hostilidade. Deveríamos estar mais atentos às novas formas de proximidade e fronteiras pois uma enorme massa inteligente avizinha-se de modo a formar um “nós”interactivo de conhecimentos, ideias, trocas de toda a espécie, de textos velhos e novos, de sabedoria popular ou sapiência milenar. É a recente Energia do Espírito que se avoluma sobre a Terra. Um cidadão ao nível planetário brota, no espaço cibernético da cultura, tacteando ainda nas trevas em busca de um sentido da nova unidade tecnológica de um gigantesco ser humano que se formou ligado pelos milhões e milhões de neurónios em que se tornaram os caminhos da comunicação de uma gigantesca consciência humana que não se reconhece.
Tudo isto não corresponde a um esboço de um homem novo depois do novo dilúvio que não pára de inundar o Planeta?
Os modelos mostram as suas falhas e os perigos deste novo mundo, talvez salientando mais o Mal do que pesquisando o Bem.
O obstáculo que leva a esta desesperança está na pobreza do poder da cultura por mais elevada que se nos afigure e mesmo que esta se afirme como um poder enorme, é sempre vulnerável e nunca é um recurso com aquela força que, tantas vezes, se lhe empresta e aparenta. Já Marco Aurélio, o estóico imperador romano, escreveu uma obra da melhor estirpe intelectual e moral e, todavia, foi um dos mais cruéis imperadores de Roma. O filósofo Chesterton evidenciou como era um moralista introspectivo e chamou-o “o mais intolerável dos tipos humanos”[1].
Esse tipo de ética, como a obra de Marco Aurélio, surge em épocas de sincretismo e desagregação da prática moral por isso abundam, nestes nossos tempos, as divagações e cursos de moralismos rotulados de éticas. Cai sobre isso a sombria suspeita do orgulho de um egoísmo que usa e abusa das metáforas do outro para uma abstenção completa da prática moral.
Diante da Europa dilacerada, de um império destroçado, uma cultura e uma civilização que se aniquila, em continuas cedências ao mal e ao medo que retira a lucidez, temos um passado tão curto como alucinante de perdas contínuas que, em vez de cepticismo na condição humana, pode mostrar como a Fénix renasce das cinzas.
Só que renascer não é de modo algum repetir.
Do que temos experienciado, a multiplicação do livro não se tornou numa “multiplicação de pães” mas uma muralha protectora e defensiva contra a dor alheia e a falta de coragem de agir. Acerca deste fenómeno podemos descobrir que:
“O intelectual, o mandarim universitário, o rato de biblioteca, não estão treinados na bravura. O grito da rua soa muito longe dos nossos ouvidos, se alguma vez o ouvimos.”[2] .
Parece que cada pensador, inconscientemente, o que talvez seja bem pior, leva muito a peito querer ocultar-se por trás das obras e das belas metáforas por temer qualquer relação com o exterior da livraria onde entrou em criança e de onde nunca mais saiu.
Pensar a realidade, no íntimo da consciência, revela-se uma ameaça à liberdade por causa do apelo à acção a praticar quando a fraternidade é o valor maior. As formas absurdas das éticas, cada vez mais teorizadas e vagas, exploram velhos problemas sob uma falsa revitalização ou respostas pateticamente inoperantes.
Eutanásia, aborto, estado comatoso, ciência manipuladora do ser humano, amontoam-se em reflexões bioéticas ao lado do medo do “aprendiz de feiticeiro”, infelizmente com muito raras referências ao real sofrimento dos seres humanos e, menos ainda, aos animais em geral.
Excepcionalmente, Peter Singer, que talvez seja o filósofo das éticas mais conhecido do mundo, apresenta uma tese revolucionária acerca dos direitos dos animais que nos remete para mais uma utopia, mas alerta para a dignidade e o sofrimento dos outros animais que nos põem em causa. “Se podemos diminuir enormemente a quantidade total de sofrimento causado (…) seria tão reduzida que é difícil imaginar outra mudança de atitude moral que causasse uma redução tão grande da soma total de sofrimento no universo.[3].
É muito doloroso a perda do pedestal que o homem, ao longo dos tempos, construiu para si e que agora, cada vez mais lhe é negado. O poder da racionalidade, a superioridade sobre todos os animais, o domínio e a domesticação de tantas espécies, tudo isso agora, em vez de ser um direito, reclama a lucidez dos deveres mais urgentes. A tradição de nada vale para afirmar que podemos ser senhores cruéis para com outros animais. A escravatura, a constante menoridade feminina, a tortura, a crueldade, a impiedade e ódios levam a quebrar as velhas tradições quando a consciência desperta para a tarefa urgente de entender que o animal homem não tem qualquer fundamento para exercer a tirania e a destruição cruel das outras espécies que com ele partilham a vida.
Falar do animal homem seria um bem para a bioética se tornar menos irrealista, menos preocupada com declarações de direitos e bem mais com declarações de deveres. Se a culpa foi de Adão ou de Aristóteles, na separação do animal homem dos outros, interessa muito pouco.
Galileu tirou-nos do centro, Darwin sorriu para o primo macaco, Freud encontrou o filho Édipo e o mal-estar da civilização, Einstein trouxe a relatividade que da teoria passou imprudentemente para a praça pública. Nada disto importaria muito se a mensagem do coração de Cristo tivesse sido entendida de modo coerente. O que é preciso é saber que caíram os pedestais e estamos mesmo no chão.
É preciso percorrer todos os caminhos errados para conseguir que a racionalidade se descubra no ser animal que somos e tanto negamos ou nos envergonhamos. Estamos entre “a besta e o anjo”mas nem um nem outro são modelos para o humano. Todos os animais têm sentimentos, instintos e inteligência todos precisam deles para se adaptar e sobreviver. Não podemos negar a curiosidade de um peixe, a inteligência de um cavalo, o jogo divertido de um gato, o afecto forte de um cão, a emoção da mãe pelo seu burrinho, até a protecção de um passarinho por uma ovelha. Podemos ser, muitas vezes, bem inferiores a todos eles. Precisamos recordar o “Irmão Burro”, a “Irmã Água”, o “Irmão Lobo” de São Francisco e juntar à moral de Kant para poder brotar uma nova visão desse outro que somos, com a Outro. Com a única possibilidade que nos deu a Providência, a Razão teremos a Lei que une todas as leis e todos devem cumprir. Todos a edificamos e sabemos do que se trata se consultarmos o coração. No fundo da consciência há um grito universal que é a única via para nos tornarmos superiores a todos os outros animais. A liberdade é um clamor, cada vez mais forte através dos tempos, para nos levar à dignidade de ser realmente humano porque age “na necessidade e na universalidade”, como diria Kant. Subir é ser mais do que um animal que não é homem, para ser menos do que um simples homem que é animal.
Quando há verdadeira sabedoria não se escolhe o que se deseja fazer porque se sabe o que deve fazer. Ai seríamos todos outros irmãos e as metáforas do outro desvanecia-se. Quando se ama o outro, ele já é irmão.
NOTAS:
[1] CHESTERTON, Gilbert Keith, Ortodoxia, Livraria Tavares Martins, Porto, Colecção Filosofia e Religião, 5ª Edição, 1974, pp 127-128.
[2] LIMA, Tomás Machado, George Steiner e o “ódio do livro”, Brotéria, Lisboa, 2005, Vol. 161, p.81.
2. A Relatividade da Visão
“O homem é aquele animal para o qual o supérfluo é necessário”
Ortega Y Gasset.
Do que sabemos da bioética, não há referências aos animais em geral. Reúne a biologia, a medicina e a ética e, desse trio, só a reflexão filosófica sai da esfera das leis e dos factos. Uma tal ética tem mais a ver com a condição humana dos cientistas, médicos e acrescentaríamos veterinários e psicólogos do que com agitar regras e declarações de direitos sem que em nada artificiosas imposições da bioética estão para a prática da ciência, como Galileu estava para a religião da sua época. O moralismo é um erro para o qual já estamos bem avisados, ou não tivéssemos Kant a mostrar o caminho.
Partir de uma perspectiva doutrinal é o risco de um cientismo sem alma. A bioética não pode denominar-se axiologia ser o risco de perder o seu fundamento moral e abarcar temas para além da sua alçada e do seu contexto.
Os valores culturais são muito relativos e resistentes a mudanças que só pela alteração profunda das mentalidades encontra pontos comuns confiáveis. A multiplicação dos encontros e congressos éticos de variadas áreas são vazias de valores ou mudanças. As comunicações, só por si mesmas, são ineficazes e os falsos diálogos são apenas tempos de convívio fechados de elites.
A verdadeira arte de comunicar exige uma longa sabedoria do exercício de saber ouvir, ou do risco do provérbio popular de “entrar por um ouvido e sair por outro”. Há mil registos de emissores e receptores e a mensagem nunca chega tal como parte. O estruturalista Roger Mucchielli foi um perito em demonstrar as ilusões dos falsos diálogos[i] que acabam sempre sem nenhum entendimento. Quando falamos, tal como diz Ortega Y Gasset “eu sou eu e as minhas circunstâncias” logo quem escuta ouve também no seu próprio contexto que faz parte de si como a cor do cabelo, a idade, as lembranças que evoca e que pouco se partilham. Uma pessoa comunica mas estará perfeitamente enganada se imaginar que todos entendem do mesmo modo o que comunicou.
A dificuldade do diálogo filosófico exige uma rara e longa aprendizagem. Nem a intuição, nem as leituras sem grande reflexão de autores diversos ou as orientações dessas novas organizações que elaboram planos bem abstractos nos podem guiar. A prática ética só está ao alcance de todos quando a sabedoria cria uma partilha activa para além de reflexões escritas e se submete ao contexto e às vivências fraternas e não à análise de trabalhos ou ensaios, carregados de teorias que nunca viram a realidade do quotidiano. Tal como Brecht avisadamente escreveu:“Para quem tem uma boa posição social, / falar de comida é coisa baixa. / É compreensível: eles já comeram”.
O Mal de que nos alimentamos e de que não gostamos de ter consciência, ou queremos ignorar, numa ilusão de inocência, não nos isenta de nos atingir só porque queremos estar ausentes ou distantes.
Tornamo-nos cúmplices silenciosos e, muitas vezes, consumimos na prática, os males alheios porque pensar dói. Levar alguém a pensar é uma tarefa ingrata porque magoa, incomoda, traz um mal-estar aos diálogos, uma amargura que chega da vida real para a sala onde as discussões só doem nas vaidades irritantes ou irritadas. No fundo, as coisas simples podem ser as mais importantes e de maior valor, mas será que estamos preparados para entender que perdemos o nosso bem mais valioso em terríveis futilidades e acessórios e a oportunidade de saber um pouco mais da vida que nos passa ao largo?
O tempo é implacável e nunca dá segunda oportunidade, apenas empresta outra via ou aquela experiência bem amarga pelo erro já cometido. Ninguém tem as mãos limpas ou pode aturdir-se sem o grave erro da omissão ou da indiferença.
As revoluções podem começar por ideias filosóficas e quando se dá este passo de proximidade moral, com os outros animais, a vida na Terra deixaria de ser o Inferno em que os homens a tornaram para os animais, incluindo a si mesmos. A simplicidade da doutrina filosófica de Singer incide num ponto crucial que raramente toca a filosofia; o sofrimento e a busca da sua erradicação para todos os animais.
Claro que o utilitarismo da sua visão da vida é polémico e entramos em campos sem solução viável, a menos que uma nova responsabilidade pela Vida nasça na condição humana, encarada como consciência de ser vivo, tal como é a consciência da evolução.
Diante da doutrina evolucionista, nada mais óbvio que ver como o ser humano tem de ter uma visão universal da ética e Peter Singer, ao defender os direitos dos animais, dá uma abrangência nova aos princípios morais.
Aqui pode surgir uma nova ética. Mas, desta vez, o próprio rosto humano muda, o passado deixa de ter o peso maior e o futuro torna-se o grande enigma a descobrir depois que a aldeia global se banaliza e a desterritoralização avança sem fronteiras.
Bem pouco se fala é do que já nos bate à porta, essa humanidade virtual num tempo imediato, “aqui e agora”, conforme escreve Pierre Lévy.
As regras para circular na cidade global ou no ciberespaço vão criar inevitavelmente um novo rosto ao ser humano no sentido ético. Muitas questões acerca das relações interplanetárias demonstram a incapacidade de usar modelos que não tenham a tónica no respeito pelo ser humano e pelo ser vivo, bem como o uso de princípios que se possam universalizar. Como diz ainda Lévy o que será veiculado não é “uma ideia do Bem ou do Mal (…) mas sim o próprio Mal e o Bem. Este gigante sistema de redes torna-se numa espécie de sistema nervoso de um ser humano com todas as suas qualidade e defeitos”[ii].
Esta é a imprescindível tomada de consciência acerca da prática de valores que já se manifesta, se bem que as reflexões sobre os novos envolvimentos não acompanharem a rapidez da mudança das inteligências colectivas.
A noção de proximidade situa-se em novos parâmetros sem centro nem fronteiras possíveis. A memória social aumenta sem parar mas o texto é sempre apenas uma parcela de um ser humano a quem falta essa consciência de qualidades e defeitos a que se refere Lévy[iii].
A ética, como tendência da moda, abandona o canto da ave da madrugada para querer ser “a ave de Minerva que só levanta voo ao entardecer”. A frase sibilina de Hegel tem um sentido bem afastado da escrita de muitas éticas, ditas de cariz filosófico.
Quando se substitui um gesto de compaixão pela composição de uma obra ética, é sinal que o Mal pode avançar e a inoperância da cultura continua. Por traz de muito texto que se afirma ético há moralismos de cinismo por vezes ingénuo ou com terrível desconhecimento das realidades que a vida dos povos e as pessoas enfrentam sem mais nenhuma força a não ser o desespero pela sobrevivência. O velho mito iluminista da formação da consciência moral através da educação continua a multiplicar-se sem êxito diante da barbárie que avança.
Já acabou o tempo do ter, porque a pobreza do imaginário é tal que se alimenta do visual, da superfície e do parecer. Na era da imagem ficamos prisioneiros da tirania do olhar carregado de ideologia oculta do Poder.
O Poder é tanto mais tenebroso quanto o olhar é prisioneiro e se imagina pateticamente livre e socialmente “correcto”.
Já se abriu a caixa de Pandora há muito tempo Se ninguém a pode fechar, oxalá que o animal homem aprenda o preço que tem de pagar se quiser ser livre e viver a Esperança.
NOTAS:
[i] MUCCHIELLI, Roger, Introdução à Psicologia Estrutural, Editorial Presença, Biblioteca e Ciências Humanas, nº. 33, 1ª Volume, Lisboa, s/d. pp. 61-81.
[ii] LÉVY, Pierre, O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE, ESSÊNCIA DA CYBERCULTURA, Disponível em: http://www.sociologia.de/soc/index1.htm 21.04.09.
[iii] LÉVY, Pierre, op. cit 21.04.09
3. Os Ardis da Subjectividade Moral
O espírito do homem é feito de maneira que lhe agrada muito mais a mentira do que a verdade.
Erasmo
É no contexto dos finais do século XX que o pensamento ético de Lévinas aparece com maior relevo. Revisitado com nova reflexão sobre a responsabilidade expressa uma irónica e perversa manifestação de tudo o que de teórico e estranhamente belo a sua ideação elaborou. Todavia é notória a paradoxal ausência da aplicabilidade prática pelo modo de levantar as questões.
Tornou-se banal esta contradição entre o vazio de valores práticos e a multiplicidade das obras. É patente o fenómeno das éticas desabarem como um castelo de cartas nas mãos de crianças desastradas pois em nada se reflectem na vida real.
É ainda o traço daquele paradoxo de uma cultura que se destrói a si mesma pelo alucinante consumo, enquanto os mais astuciosos teóricos se refugiam em redomas de cristal e na teia das palavras que roubam a frescura límpida da leitura de quem vai para lá do pretexto do discurso em busca de resposta vital à existência.
Enquadrar a vida de Lévinas (1906-1995) na errância hebraica, em sucessivas fugas e no risco constante de ser capturado pelo inimigo nazi implacável, torna a sua obra mais inteligível. A sua biografia entranha-se na escrita e revela o retrato da angústia que se prende à tragédia do povo judeu.
Lituano, criado em Vilnius, centro de profunda cultura hebraica que assimilou, a evasão dos pais, curiosamente livreiros, marcaram-no definitivamente. A estada na Rússia, na Alemanha, o domínio das várias línguas, a sua nacionalização francesa e toda a grandeza de pensadores com quem teve a boa sorte de se relacionar como foi o caso de Brunschvig, Blanchot, Blondel, ou ainda Husserl e Heidegger, dos quais foi discípulo, leituras de Tolstoi, Dostoievski, mais tarde de Proust e Valéry, a filosofia de Bergson e tantos outros pensadores com quem privou ou conheceu, moldaram essa personalidade versátil que, por fim, não escapou à prova de viver longos anos (1939-1945) nos campos de morte nazis.
Percorrendo a sua biografia, entende-se melhor o âmago do seu pensamento e a sua obsessão por um eu que se mantém refém de Outrem, numa submissão e passividade carregadas de angústia diante da liberdade atribuída ao outro e ao seu rosto. A superioridade desse singular conceito de Rosto lança uma assimetria que não pode fundamentar uma ética de proximidade sem o risco de surgir um dominador e um dominado.
Esse facto é evidente e pode notar-se, por exemplo, no modo como aborda a feminilidade na sua obra mais conhecida “Totalidade e infinito.”[i] A mulher aparece como o “sexo fraco”, com o peso de uma fragilidade que lhe retira a dignidade e respeito que merece. Em nada necessita dessa piedade ou condescendência que a inferioriza. A forma poética da abordagem da feminilidade esconde uma assimetria e um egoísmo marcadamente masculinos e discriminatórios que alguns comentadores seus[ii] já apontaram.
Interrogamo-nos acerca da força sombria do outro, da aparição do seu rosto, algo que é visível e invisível, que descobre a opressão e o medo a que foi submetido, sendo judeu e lituano, afastado do perigo da morte iminente, apenas pelo estratagema de ser naturalizado francês no campo de prisioneiros militares em que se encontrava. Foi sob essa protecção que foi feito prisioneiro e isso concedeu-lhe a possibilidade rara de não sofrer o destino trágico de quase toda a sua família e demais judeus que, por isso, praticamente não existem hoje na Lituânia.
A responsabilidade sem partilha, apenas submete por completo a subjectividade e assume-se muito para além dos limites do humano, com uma exigência que ele mesmo sabe ser impossível de cumprir.
Parece que a sua oportunidade de sobrevivência, no meio do horror e do caos, o esmaga de responsabilidade pois esse dom da vida se lhe revela carregado de culpa inconsciente, por ter sobrevivido. Como se pode sentir qualquer libertação quando se recorda o horror inominável a que milhões de seres humanos foram submetidos?
No enigma que o outro esconde, Lévinas parece que pressente a terrível consequência do extermínio do seu povo e que Steiner justamente acusa quando afirma que “a Europa se suicidou ao matar os seus judeus[iii].
O peso dessa destruição abalou os alicerces europeus não só pelas vítimas que causou, mas pela tomada de consciência dos séculos de ódios indomáveis em que o Mal cresceu até à imolação final.
Nesta ética parece estar ausente a coragem da luta, da resistência, ou a superioridade de assumir uma subjectividade entre seres livres, com direitos e deveres marcados pela confiança. Há uma trágica clivagem entre o texto e a sua utópica experiência.
A inexistência da confiança cria o abismo profundo entre deveres e direitos e o impedimento de uma nova sociedade em que a lei se inscreva mais nos corações do que nos códigos e livros das instituições. Se Kant colocou a liberdade como “pedra de toque” da sua obra, a exigência moral deu-lhe o fundamento insondável que está a par do fundamento insondável da confiança. Sem esta, “a ética como filosofia primeira” não pode ser pensada.
É pelo olhar confiante dos outros, quando nos reconhecemos próximos, que realmente nos humanizamos. Falar do outro, da sua liberdade e dos seus enigmas, é supor que não está connosco. Essa responsabilidade que Lévinas nos atribui para com o outro só podia tomar sentido se depositássemos confiança nele. Seria uma responsabilidade que desembaraça do cuidar de nós mesmos, porque a reciprocidade fraterna nos leva a saber que acolher um irmão é também ter um abrigo.
Podemos descobrir assim que, psicologicamente, foi um jovem lituano, vivendo sob ameaça constante, exilando-se, vendo matar os seus, refém dos nazis, marcado pela impotência de revolta e o terror vivido dia a dia de ser descoberto que busca ver a transcendência para além do outro. Assim parece negar esse outro no temor que sente por ele e busca um invisível que deixe reflectir Deus para além do seu rosto.
O seu distanciamento do real anuncia o livro, um refúgio como devia ser a casa paterna. A sua fuga para o texto ou para o livro, quando tudo morre e não há solução para nada é a resposta à solução final. Esta é uma mensagem que deixa a pairar sobre uma Europa sem alma, estilhaçada e fragmentada para sempre.
Se bem que as influências hursserlianas e fenomenológicas sejam notórias, parece-nos que isso se inscreve mais na metodologia do que no cerne do seu pensamento. Torna-se psicologicamente um refém que não consegue viver a liberdade sem o peso de toda a vivência anterior. Tudo isso se projecta num texto carregado da sua própria biografia na impossibilidade de a viver na utopia desejada. "Le texte est un foyer; chaque commentaire, un retour."[iv] O texto, como confessa tanta vez, é um lar. Parece-nos que evidencia um recuo face à realidade e ao dia a dia com todas as exigências de conduta moral. Nada mais tem senão um regresso a um lugar que nem existe. Curiosamente isso coaduna-se com o sonho de um retorno impossível que o conforta pela aceitação de ser apátrida, um modo de não sofrer opressão alguma, por não estar em lugar nenhum. É também a utopia de ler e ser lido sem localizar a fraternidade em parte alguma. A sua presença, que se quer, deliberadamente apátrida, é cheias de interrogações e sem diálogo. O outro, a quem nada responsabiliza, a quem não interrogamos acerca do uso da sua liberdade, surge para nos tornar reféns.
Se é esse outro que nos dá a vida, consequentemente paira também o risco de a pode arrebatar se for o inimigo nazi de quem tem um sombrio terror. Assim, a sua ausência é um modo que o aniquilar pois a distância retirar o poder do olhar e de submeter.
O irmão está perto e com ele há o diálogo na sua autenticidade de afecto, sem humilhação, medo ou opressão. Mas isto não viveu Lévinas nem a sua filosofia encerra. Denuncia o medo da própria fragilidade do eu e remete para uma submissão perigosa com uma responsabilidade cujo fundamento ultrapassa o campo filosófico e se coloca num âmago teológico.
O paradoxo da ética da subjectividade total paralisa a acção, enquanto se enreda na teia das belas intenções e polissemia de vocábulos transcendentes, para além de qualquer realidade que nega infelizmente qualquer prática.
NOTAS:
[i] Lévinas, E, Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Edições 70, Lisboa: 1988.
[ii] Pekkarinen, Immo, The Many Faces of Woman, The Place of Woman in Lévinas’ s Totalitty and Infinity,
[iii] Llosa, Mario Vargas. Steiner, décima Conferencia Nexus. Uma ideia da Europa.
[iv] Thomas Yadan pour Evene.fr - Avril 2006 http://www.evene.fr/celebre/actualite/portrait-d-emmanuel-levinas-319.php. 20.03.09.
4. Nós, os Outros
“A melhor definição que posso dar de um homem é a de um ser que se habitua a tudo.”
Dostoievski
Interrogamo-nos sobre os efeitos reais da subjectividade das éticas guiados pelo desejo de descobrir, através do enigma do outro, a Justiça e a transcendência ocultas no contexto social. O rosto do outro não é o do próximo, pois se nega o frente a frente da complementaridade. O outro fica sempre na ausência e assim pode-se falar dele sem que a sua presença obrigue a agir.
A partilha do mundo com esse outro discute-se na sua ausência. O eu, na sua omnipotência, fecha-se em si mesmo e na angústia de uma irremediável ruptura com a realidade. O outro parece ser temido como uma ameaça latente, alguém que é superior, ou o guarda nazi que observa os prisioneiros.
Diante dessa ameaça, capaz de nos retirar a autenticidade das escolhas, os filósofos Sartre ou Lévinas estão ligados pela trágica vivência do conflito mundial e mal-estar social europeu que marcaram depois a “guerra-fria”.
Nem todos os que sobreviveram se sentiram libertos do passado, mas antes testemunhas atónitas das atrocidades do Mal no seio da banalidade do quotidiano. Nem se aperceberiam bem do seu papel entre algozes, vítimas ou lutadores. Só para alguns, como dizia um resistente judeu, tem sentido a frase: “A minha vingança é estar vivo”.
Esse alheamento do Mal é uma constante nas grandes metrópoles, no desviar o rosto, no fingir ignorar o próximo que sofre ou morre ao lado. Os sem-abrigo são uma prova vulgar da separação hostil entre cidadãos.
Quando tudo se questiona, ser vítima é um estigma tão fortemente paradoxal como ser carrasco. Mas, se nada se contestar, o Mal nem é visível para quem recusa reflectir.
Assim se coloca a dúvida de se poder compor poemas, entre outras artes, pois a criatividade parece inútil e perigosa para o olhar de Orfeu, quase preso do horror do Inferno ainda tão perto. Orfeu regressa do Hades, mas já não encanta, agora horroriza todos com o que antes era a sua arte. Por isso tem de morrer. Teria Hegel razão e este é sinal de extinção da arte?
Depois dos combates, das experiências tão próximas da morte dos outros, vive-se uma culpabilidade de sobreviventes que se interroga sobre o direito de estar vivo.
Tanto Sartre como Lévinas tiveram influentes mestres comuns e viveram o tempo da Grande Tempestade sob formas diferentes. Apesar disso, demonstram flagrantes semelhanças na formação do conceito do outro e no temor pelo seu olhar. Sentem que são devorados ou petrificados por ele, que o “ser-para-si” e “em-si” de Hegel se transformam no heideggeriano “ser-para-a-morte” e este é o caminho que a náusea descobre para o vazio ou para o nada.
Se a sociabilidade não procurar o Infinito, ou a uma transcendência, pode mesmo afundar-se na massa anónima da condição humana, sem cumprir a mais alta forma da existência que ser pessoa com dignidade única do animal homem. Há, nestas éticas subjectivas, uma passividade impossível de viver. Somos obrigados a actuar com ou sem reflexões. Sartre falou da má consciência ou da má fé, formas dos “nojentos”, dos “viscosos” ou dos que a náusea da existência transforma em “trapaceiros” como qualifica as formas de estar no Mundo.
Só por estarem “aí”, os outros causam conflitos, roubam a nossa paisagem, o nosso olhar livremente o mundo pois tudo era “nosso” antes de chegarem. Daí a longa náusea do quotidiano e a angústia de Sartre, até sintetizar lapidarmente na frase “o inferno são os outros”. Por outro lado, há a fuga constante de Lévinas para o asilo do texto, essa morada fora do mundo, porque no mundo o texto não consegue tomar forma.
Na ética, a descoberta da partilha atingiria um princípio inovador se assumisse a responsabilidade de tornar o tempo a real dimensão da moral. Só ao ser humano foi dado conhecimento do valor do tempo. Somos nós que nos consciencializamos do sentido moral do tempo. Não há filosofia primeira, nem da ética, nem da razão. Há apenas a unidade dos inícios e do caminhar no conhecimento. A condição humana permite que o presente seja um dom moral na sua gratuitidade e transborde de eternidade. Sartre foi um filósofo, quase um ídolo do existencialismo para toda uma geração, que talvez não o entendesse, mas vivia os seus fortes conflitos psicológicos. É na psicologia que Sartre envolve o pensamento filosófico que lhe deu a notoriedade mas também o envelheceu de teorias que caducam muito depressa.
Sartre, sem fundamentar a liberdade, tal como faz Kant, escolhe-a para pedra angular da existência. Porém, é na escolha do “Ou–Ou” que Kierkegaard encontrara sentido para cada possibilidade que levara o filósofo dinamarquês a entender “à doença para a morte”. Daí concluir que só para Deus não há impossíveis. O jogo dos possíveis é para o homem, assim o viu Dostoievski no seu personagem jogador e Sartre observou a angústia da escolha até aos limites da inegável condenação à liberdade. Se o projecto é contínuo leva às interrogações sobre cada escolha que nunca se completa e vai para o Nada no Ser.
Só o dever retomaria o sentido da liberdade sem escolha porque não tem projecto subjectivo mas universalizante, o único que pode não dar felicidade ao homem mas confere-lhe dignidade e a assunção da condição mais elevada que o homem pode atingir.
As fendas do tempo presente abrem acesso ao eterno quando se põem em prática os princípios universais dos imperativos categóricos. Só assim a dignidade do ser humano é assumida para lá da barreira do relativismo cultural. Kant não ignorava a diversidade dos povos, mas acima deles colocou a descoberta universal da condição humana na sua crescente plenitude.
Por isso, as perguntas podem ser as mesmas, mas temos consciência cada vez maior da complexidade das respostas quanto melhor conhecemos o risco de nos perdemos nos labirintos do texto sem o trazer para a vida.
Tal como Sartre, Lévinas foi um privilegiado do texto. Não só pelo acesso à elite cultural do seu tempo, como a sua vida foi poupada ao Shoah ou aos ocupantes nazis e pode ultrapassar a submissão ou o conflito que expulsam o outro da existência.
Qualquer ausência desaparece quando se dá um “Bom dia” a alguém. Já não é apenas um outro, mas uma presença que oferece um sentido ou um absurdo. Trata-se de dar, mesmo que isso seja uma dádiva ínfima. O “bom dia” remete para o início dos tempos, do encontro, da descoberta de alguém, que tem um nome e é uma presença. É o augúrio antigo que se presentifica. O povo sabe bem que negar esse “bom dia” a alguém é uma ofensa grave pois é “negar a salvação”. Na sabedoria popular, a proximidade é a salvação dada pelo outro que se reconhece como presença. Nega-se a condição humana quando se recusa o reconhecimento dessa presença.
A pergunta do Génesis “Sou porventura eu o guarda do meu irmão?”, a que Lévinas recorre, não é uma questão inaugural mas um epílogo infeliz. É já a confissão do vazio da morte que a culpa deixa na consciência de alguém que trocou a fraternidade pela barreira de um outro ausente ou aniquilado. Só depois da morte de Abel, a fraternidade é invocada pois só agora ele se tornou realmente possível de amar na sua ausência protectora. Quem é esse Abel assassinado na hecatombe do século XX?
Somos, em todos os tempos, filhos de Caim e da culpa, muito para além do texto bíblico e bem presentes nos actos mais banais do quotidiano, da omissão passando pela indiferença até à prática do Mal, mesmo que seja involuntária.
Sem ardis, sem “má fé”, sem texto a fingir vida, não há fugas de uma acção moral. A liberdade, antes de se questionar, é um imperativo. A responsabilidade surge muito antecipadamente da busca de justificação. Exige uma acção onde o amor esteja presente. Mesmo que seja o dever do amor, da fórmula kantiana, e esta algo contrafeita, o dever de amar é ainda o único caminho que liberta e leva a viver com o sentido ao Bem. Enquanto o Mal é a nadificação no absurdo, o Bem é a elevação da humanidade a um grau e sentido em que o animal homem é único.
5. JOGOS DO OLHAR
A banalização do olhar transformou a vida num espectáculo e a visão do mal numa aceitação entre a indiferença ou a contemplação estética. Alastrou-se essa peste que desumaniza o planeta. O seu agente, o homem global, esse desconhecido, em que nos tornamos, que se insinua por toda a parte e relativiza todo o sofrimento e males alheios.
A liberdade tem o seu reverso é a responsabilidade. Revela-se num reconhecimento angustiante da derrocada dos valores, da cultura e do grande medo de um final. O Shoah seria a derradeira solução, não só para lituanos, nem para judeus, nem mesmo para europeus, mas para a totalidade da humanidade que se afunda sem direito à fruição, sem direito à emancipação e, acima de tudo, sem direito à vida.
Ironicamente, ao ler a obra de cariz ético do pensador, F. Alberoni, intitulada “O Optimismo”, verifica-se um contraditório pessimismo a ensombrar todos os capítulos, numa tonalidade mais do que melancólica, até fecharmos o livro com uma forte percepção da perda de valores e de desânimo crescente do seu autor. Ficaram-nos as frases finais do sociólogo a ecoar num dobrar a finados da cultura europeia:
“Mas não haverá mais nenhum caminho? Certamente existia, mas era mais difícil, mais cansativo procurá-lo. O mal é sempre fácil”[i].
É a época do domínio do olhar, tudo se transforma numa visualização para uma informação mais fácil. Todos aprendem a defender-se do que os possa ferir. O olhar aprende novos jogos e sabe afastar as imagens cruéis e reais, da fome e desgraça dos outros e usar a trapaça para a indiferença ou afirmação veemente de inocência por tudo o que acontece à nossa volta. Aceita-se o Mal com avidez sob a capa da informação, do belo horrível ou da denuncia. Não aceitamos que seremos julgados por este tempo histórico. Somos cegos porque nos defendemos e temos medo.
Insidiosamente, o restabelecimento da fraternidade é ilusório. O outro fica quanto mais longe melhor. Não há qualquer partilha de vida real. É evocado na sua ausência e os espectadores limitam-se a ver e criticar. O reportar de guerra, os crimes e torturas, as imagens cruéis são para grandiosidade do espectáculo “cheio de som e de fúria”, assim diria Shakespeare, “sem significar nada” para nós, os protegidos da sorte.
De acordo com a tese de Lévinas, somos completamente responsáveis por esse outro e seus reféns. Fundamenta-se em múltiplos dados, alguns da psicologia da primeira infância. É o olhar do outro que nos eleva à condição da natureza humana e percebemos então o Rosto. O sociólogo alemão N. Elias[ii] atribui ao acaso a fala da criança quando diz “o menino quer sair”, ou enuncia o seu nome como se fosse o de um outro: “o João quer comer”, mas isso é uma etapa fundamental da elevação do biológico ao humano. Porém Elias admite que a configuração social confere ao nós e ao eu muito mais do que qualquer subjectividade. O eu é uma descoberta tardia e única da espécie humana. Esse outro, normalmente a figura materna, com pleno poder sobre o neo-nato que não se reconhece com interioridade, vai elevá-lo, pelo afecto, ao diálogo e ao reconhecimento mútuo com a partilha da condição humana que nenhum outro animal pode dar. A real condição humana exige o nó górdio da biologia e da cultura.
A presentificação impõe um “tu” que Lévinas omite. A sensibilidade estética implícita na sua ética é deveras sedutora. Há uma beleza poética eloquente que cativa, mas encerra uma perversidade paradoxal. Por trás de uma aproximação do outro, há o muro que nos protege e impossibilita de ser visto.
Enquanto se discursa acerca do outro, podemos sentir angústia e responsabilidade mas a teorização protege-nos porque o afasta de nós. O compromisso da responsabilidade total parece que se dilui na universalidade e fecha a porta ao tu que nos interpela, mesmo ali ao lado. No fundo, o imperativo kantiano é mais válido com toda a sua formalidade racionalista. O legislador não se exime ao cumprimento da lei e a sua ética é fundamentada na lógica. Ao contrário do que depois afirma Lévinas, o solipsismo desse eu é tão falso como o de Descartes. Ambos dissertam na nossa condição humana, falando em nome desse eu, que é o que de mais pessoal e geral existe entre todos os seres humanos dotados de razão. Propõem por isso reflexão. Afirmam um “nós” de partilha universal, pela possibilidade do homem livre do “reino dos fins”. Toda a construção teorética ou desconstrução do cogito conseguidas pela fenomenologia revelou-se vazia ou estéril e desemboca numa intencionalidade privada do sentido filosófico e apenas enroupada de belas teses psicológicas e poéticas.
Na fase amadurecida da filosofia lévinasiana o eu surge de um modo que vai para além da intencionalidade e se coloca antes de pensar o mundo a partir de “Eu penso”. Converte-se antes num “Eu posso” e torna a filosofia primeira como uma filosofia do poder[iii].
No fundo, o imperativo kantiano é bem mais válido e sólido com a sua formalidade racionalista do que a inter-subjectividade e sua panóplia de metodologias vazias ou na dissolução da consciência fenomenológica.
O velho filósofo de Konigsberg intuiu o que Piaget veio a teorizar. Confirmou-se a existência da ética por trás da lógica infantil numa unidade primordial. A relação desse outro e do eu não surge em Kant porque não há subjectividade no homem formal. O amor ao próximo torna-se uma exigência, um dever da condição humana. Assim se despoja de toda a “patologia” do “querido eu”[ii],ou seja, do egoísmo!
É o respeito pela dupla condição humana, formal e prática, que eleva tão alto e sempre a moral kantiana.
Com fina ironia, Kant, ao ridicularizar os “ensaios sobre a moralidade feitos conforme o gosto preferido” numa espantosa mistura de princípios e de exemplos, realça o reconhecimento da natureza humana, tal como é. Sem isso “as doutrinas da virtudes” podem correr mundo e ganhar fama com “tão pouco resultado prático”[iv] que é o que alcançam.
A evocação do outro, a responsabilidade por alguém ausente, parece-lhe ser a única coerente no contexto em que viveu e viu morrer. Tal como quer Lévinas, não cumpre uma acção prática, na realidade mais palpável, que é o nosso próximo. O objecto da psicologia e da sociologia não é axiológico e os actores sociais não são chamados para retirar as máscaras que a ética permite. Repare-se na morte da condição humana, no que tem de mais nobre, quando a fachada da ciência humana que é a Sociologia tem por lema e regra aceitar todos os valores, nem bons nem maus, apenas em analises e estudos.
A nascente de Jerusalém e de Atenas não jorra agora como um caudaloso rio. É apenas um abismo entre escarpas de pedras secas de rios já sem fio de água. A instituição, o enorme risco que representa essa “instituição total”, que tão bem analisa E. Goffman[v], despersonaliza, anula por completo a dignidade da pessoa, com uma burocracia, funcionalidade e frieza que degrada irremediavelmente. Goffman desmascara a hipocrisia e denuncia o que pode ser uma banalização do mal consentida e acalentada por todos por cinismo, medo ou cumplicidade. Substitui a presença, o acolhimento humano, a hospitalidade, com toda a formalidade, burocracia e racionalidade pela “via longa”[vi] da continuidade dos campos de extermínio, agora diante dos nossos olhos que a Medusa petrificou.
Ninguém tem uma situação neutral ou inocente, nem pode abstrair-se da realidade. O olhar capta o Bem na sombra e o Mal no centro. Levy mostrou a relação do Poder que se rodeia de vazio, aí só resplandece o Mal. Um santo acrescentou: “O Mal faz muito ruído e o Bem é silencioso.”
NOTAS:
[i] ALBERONI, Francesco, O Optimismo, Bertrand Editora, 4ª edição, Lisboa, 1994.
[ii] ELIAS, Norbert, Introdução à Sociologia, Biblioteca 70, Edições 70, Lisboa, s/d. p. 136
[iii] GOMES, Óscar Lopes, Ética como Filosofia Primeira, Palavras preliminares, Secção 5, Programa de Magister em Filosofia, Universidade do Chile, 1998.
[iv] KANT, E, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Porto Editora, 1995,Colecção Filosofia, - Textos – nº. 7. pp. 46-49.
[v] GOFFMAN, Erwing. Manicómios, Prisões e Conventos, São Paulo, Perspectiva, 1974..
[vi] CORREIA, João Frazão, Quem é o meu próximo?, Brotéria, Lisboa, 2005, Vol. 161, pp-431-441.
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