"Praça da Liberdade"
Sobre a Invenção do Tempo
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )
Mesmo e outro
[ Floração primaveril na cidade. Zona do Campo Alegre. Primavera 2009. ]
© Levi Malho - Imagem digital
Pode parecer contra-senso afirmar que inventámos o tempo que parece ter uma evidência simples. Na verdade é menos um conceito real do que uma ideia do que há de relativo entre noções e conceitos.
Ao longo da História, uma parte da humanidade descobriu que podia inventar o tempo num devir evolutivo e acabar com o Eterno Retorno. Tomou-se o Tempo como uma realidade e por absoluto. Só já muito perto de nós, é que começamos a entender-se a sua relatividade e a descoberta da sua extrema complexidade.
Em vez da simples repetição, sem fim nem princípio, o Ocidente iniciou a era dos tempos quando colocou a noção de progresso no devir histórico. Uma das características da religião cristã é a sua vocação para o futuro o que torna o tempo com um sentido e objectivo até um final dos tempos.
Com devir histórico deu-se um passo que se firmou com a evolução darwinista das espécies e manifesta claramente com a grande transformação que é a evolução espiritual do Homem.
Quando, por sua vez, o Oriente descobre essa outra mentalidade e aceita o progresso histórico é já uma prova de que abandona a sua cultura pois se ocidentaliza. O progresso no devir da História surge no Ocidente e parece que irá atingir toda a condição humana.
Anteriormente e durante séculos, foi sem noção temporal que se leram as grandes obras do Oriente porque nelas não há qualquer preocupação com as datas ou a ordenação dos textos. Do mesmo modo, as gerações sucederam-se, umas atrás das outras, sem que se mudasse qualquer tradição e, às portas do século XX, o neolítico era ainda vivido no Oriente, tal como acontecia na China.
É bem conhecida a perplexidade de Santo Agostinho ao meditar sobre o nosso uso e conhecimento do tempo, tão familiar e paradoxalmente indefinível.
O tempo é um daqueles conceitos que tanto se usa e tão pouco se pensa ou se aprofunda o seu verdadeiro significado. A sua obscuridade e complexidade escondem problemas que nos arrastam para a física, a filosofia, a teologia ou nos impelem para as futilidades com que se amarram as datas, a duração das coisas, ou nosso devir. E afinal, o nosso aniversário apenas nos diz que a Terra deu umas tantas voltas à roda do Sol desde que nascemos e nada mais indica. Não tem nada a ver com as nossas experiências, envelhecimento precoce ou juventude tardia. É sempre indirectamente, em relação ao espaço e à velocidade, que se pode entender a medida relativa do tempo. No fim de contas, nenhuma das nossas datas é rigorosa e já mudamos tanto os calendários que todas as cronologias não são mais do que erros ou convenções e aceites apenas por uma parte da humanidade. Até o tempo absoluto, como imaginava Newton e o senso comum ainda adopta, já é um modelo derrubado.
Tal como o pensamos hoje, o tempo tem um passado bem curto. Nas sociedades primitivas, as pessoas continuam a não “ter” tempo nem tal questão se levanta. Vivem entregues às suas tarefas, com as suas celebrações e rituais, integrados na sociedade. O Sol e a Lua, o ritmo das marés dão uma regularidade que acompanha as tarefas da vida na circularidade contínua das estações.Na Antiguidade, etimologicamente, negócio era o cuidar da subsistência, só o ócio era a vida plena. Como explica Paulo Mendes Pinto [i] “para os latinos, a base era o ócio – é que se depreenderia do facto de ser esse o conceito base sobre o qual se forma a sua negação (…) Para nós, a base é, claramente, o negócio: o ócio é aquilo que se almeja e se atinge em alguns momentos.”
O trabalho integrava o homem no meio, só que se acentuou de tal modo a diversidade de tarefas que a noção “de comer o pão com o suor do teu rosto” foi levada a extremos. É que o homem vive agora para o negócio e não para o ócio e nem come só o seu pão mas também nem sequer pensa em afastar a maioria dos seres humanos das mais pesadas labutas a que é submetida.
O ócio, no que tem de mais elevado, pode fatigar muito mais do que o afazeres, mas é tarefa de homens livres, aperfeiçoamento espiritual, liberdade de acção moral. Em suma, não pode ter por finalidade o lucro ou negócio, nem assim se pode ver, tal como Marx via o capital. Tornamos, tanta vez inconscientemente, a nossa duração, que é o nosso maior capital, numa medonha alienação. Gastamos a vida e não o tempo pois não é exterior a nós.
Porém este grande privilégio do ócio nunca foi dado à maioria dos seres humanos. O seu sentido foi ganhando uma conotação com a preguiça ou o lazer cada vez mais longe do seu significado original. Para desafogar tensões ou para alterar os ritmos dos trabalhos, sempre existiram celebrações, em harmonia com o meio ambiente. Os solstícios, o Carnaval para os cristãos, a indicação do início e o fim de grandes actividades comuns e acontecimentos integrados na vida da social são exemplos anteriores à invenção da Natureza, como a pensamos, já que Moles afirma que “a Natureza é um erro (histórico)[ii], pois já nada tem de natural, antes se transformou num produto artificial do qual o homem está separado definitivamente pela mudança que a sua mentalidade sofreu. A captura da Natureza e sua domesticação está patente nos produtos “naturais” que se compram, a paisagem que é planeada, todo um culto do pseudo natural, no verde tranquilizador ou em falsos jardins no meio da selva do betão.
Paradoxalmente capturou-se o tempo, domesticou-se de mil modos e depois ficámos cativos dele. De mil maneiras marcamos horários, dias e prazos, demos ao tempo um valor de troca, para além do valor de uso, é um capital que tem valores e medidas a distinguir muito insidiosamente as desigualdades ocultas na dita democracia, na era do bem-estar e da abundância.
Se os gregos chamaram implacável a Cronos, o deus do Tempo, nunca sonharam com uma sociedade em que as máquinas de calcular, relógios e tantos modos de medir a duração de tudo nos prendessem por completo.Nunca como no século XXI o paradoxo de sentirmos “falta de tempo”, de “estamos a perder tempo” ou de “estar a matar o tempo” se tornou tão obsessivo. A sociedade exige uma velocidade crescente, que a máquina lhe empresta e depois nos domina, num louca corrida em que o sentido de tudo o que devia ser o essencial escapa. A vida dentro do contexto social e ideológico toma um ritmo que nem dá para reflectir sobre as causas ou os resultados que reverterão contra ou a nosso favor. Se as pessoas pensassem no tempo que são, em vez do que dizem ter, e no que hipoteticamente podem durar, talvez tomassem consciência de estarem a ser logradas, ou pior ainda alienadas. A ideologia do consumo e da era da abundância, democraticamente distribuída, criaram uma ilusão de um bem-estar que traria a felicidade alcançável para todos. Aumentando as necessidades e multiplicando infinitamente objectos e pseudo objectos, tornando-os mais cobiçados e mais necessários, cria-se um espaço para o desejo e a insatisfação das maiorias. Cresce a ilusão da necessidade de que ter mais, sempre mais, mesmo que com isso tenhamos muito menos tempo para fruir esses bens. Imagina-se que se pode inundar de felicidade e do maior conforto um irreal quotidiano e tornar as massas ansiosas por serem felizes, desejando sempre ter mais bem-estar, melhor vida, conforto total, mais tempos livres, mais lazer. Para que ninguém quebre as grilhetas aumenta-se a competição, a vontade de ter mais poder, mais domínio sobre os outros. Apenas se tornam as massas mais homogéneas e iludidas.
Esconde-se, coage-se, ataca-se as maiorias nos seus pontos nevrálgicos com o medo da rejeição, do ridículo ou da solidão. O ridículo de quem se revolta contra o Sistema é de tal forma constrangedora que todos o temem e pode tornar-se tabu o que é bem conveniente para o Sistema. Afinal, as preferências de consumo estão estreitamente ligadas ao gosto de classe. Aprendemos o gosto como o ar que se respira, sem uma consciência dos valores inculcados. Esse gosto que pensamos ingenuamente ser pessoal constrói-se lentamente e faz parte dos nossos grupos de pertença. Identificamo-nos sempre com certos grupos e a nossa escolha sofre a sua forte influência. Por isso a armadilha social está na ambiguidade de recusar o consumo mas não poder permanecer para lá dele num meta consumismo impossível de experienciar nesta sociedade.
O ritmo do tempo traduz-se numa longa fadiga, causada pela inundação da burocracia, fadiga e violência crescente, agressividade dos grandes espectáculos e revoltas de minorias sociais. Os tempos de lazer, são furo de uma sociedade de consumo e esse tempo é explorado até mais não!
Camuflado em estafantes tarefas, viagens, desportos e actividades vazias de sentido, convertem-se em mais fadiga e desgaste e despesas que tornam as pessoas ainda mais escrevas do sistema. Sendo o lazer apenas uns reduzidos dias face ao tempo das actividades habituais, há uma fome devoradora para aproveitar, até ao máximo, o pouco tempo que se rotula de férias e assim o regresso chega com a maior fatiga e frustração, pois o tempo sempre “se esvai como a água entre os dedos”.
Teríamos de descobrir que o nosso projecto de vida não pode ser gasto sem sequer termos noção da evidência da nossa temporalidade vital para realizar. Chegamos ao nosso fim do tempo sem uma interrogação primordial. Que sentido teve afinal esta vida? Quem passa e desaparece somos nós e não esse “tempo imóvel” que inventámos para nos aprisionar.
NOTAS:[i] Mendes Pinto, Paulo, ÓCIO ou NEGÓCIO? Especialista em História e Fenomenologia das Religiões (Universidade Lusófona, Lisboa) TRIPL V RELIGARE, 24.11.09.
[ii] Moles, Abraham, Psycologie de Kitsch, L´Art du bonheur, DENOEL Gonthier, Bibliothèque Médiations, nº 144, p. 9.
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