"Novos prisioneiros"

  • Sobre coisas essenciais

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

              

       

  Rumores do cárcere

[  Pormenor de amarras de pesca.  Torreira. 2005. ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


    

    O que se diz ser a queda das ideologias corresponde a uma interpretação ingénua, vinda ainda do “pós guerra” e da mítica queda do muro de Berlim.
   A manipulação das massas é sofisticada e subtil, aparentemente por meios suaves, mas muito fortes e convincentes. As ideologias alargam-se de acordo com as possibilidades das tecnologias e das bases científicas muito habilmente dissimuladas do conhecimento do público e das massas. Assim as pessoas são facilmente levadas a pensar que escolhem livremente o que querem e que o seu pensamento não é controlado de mil modos bem ocultos.
     No entanto, é a sociedade que fala e age por nós, por  um super ego social que inverte o dever do imperativo kantiano no poder de ser feliz pois “Tu deves porque podes!” assim denuncia o rebelde filósofo, Zizek
[1].
   Na ilusória permissividade democrática, com cenários idealizados de igualdade, as metas que nos propõem devem ser desejadas pelas maiorias, no equilíbrio quimérico do bem-estar e felicidade.
    Isso é o que faz correr as multidões. Os objectivos reais que não conhecem traduzem-se em produção e economia de mercado. Sem essa corrida, manipulando o gosto que muda constantemente, a sociedade totalitária de tentáculos mundiais e capitalista desmoronava-se como o dominó do muro de Berlim.
     A ideologia, como forma de interpretar o mundo está presente em todo o tempo e lugar. Dentro dela nascemos e crescemos sem questionar. Quem questiona corre perigo de descobrir que a caverna de Platão já existe e estamos lá bem presos.
    . Na verdade, o nosso pensamento pessoal é quase todo social com os referenciais em jogo, da moda e do Sistema que o Poder vigia. Sem grandes meios de fuga, a reflexão sobre a história das mentalidades pode ser uma porta de saída para descobrir a grande ilusão de se confundir o real com o imaginário.
  Existimos num meio onde nos movemos mal quando descobrimos que as referências que aceitamos não são senão interpretações de um vazio que se dão a símbolos, signos e significantes, estranhos e desconhecidos. Só conseguimos orientarmo-nos por sinais e referências de que nos apropriamos por experiências e, se as usamos impropriamente, o labirinto social é um dédalo sem saída. Tudo o que nos rodeia, até à linguagem que usamos, oculta um passado e um contexto que não entendemos e desconhecemos sempre.
    A publicidade, as noticias aparentemente neutras, os “media” em geral, não têm nada de inocentes ou inócuos, mas dão azo às pessoas pensarem que estão a agir para seu próprio benefício. Por isso a reprodução de modelos sociais sucede-se sem sobressaltos de monta. A maioria das pessoas considera-se bem informada, se bem que lhe escape o conhecimento da maior parte das realidades, mesmo à sua volta ou mundiais.
    Curiosamente surge o imperativo da felicidade politicamente correcta e a inevitável exclusão para quem não se submete. Um exemplo divertido disto, é ouvirmos os “media” que já não nos desejam um bom fim-de-semana, ou uma boa noite, mas sim imperiosamente exigem:

    Tenha uma boa noite!

    Não se pode dizer que isso seja apenas por causa da tradução do inglês. a que inevitavelmente todos estamos incluídos.
     As linguagens deslizam para o paradoxo, como apontava Lyotard, porque a comunicação não se faz.
[1] Na era pós moderna a palavra toma uma dimensão que rejeita os textos fora do tecido dos “media” ou do comunicativamente correcto.
   Está oculto o dever do super ego social que nos condiciona a querer gozar “porque merecemos”. Devemos ser felizes porque podemos. Talvez esse não seja o objectivo que desejávamos. Porém ideologicamente, só há uma felicidade correcta. Logo os actores devem sentir-se felizes. Assim afirma Zizek
[2],  que nos lembra estamos numa democracia e não temos só o dever de obedecer ao chefe mas, ainda mais, temos o dever de o amar.
    Na ânsia da felicidade por trás da vitrina, por entre canções cujas letras nem deciframos, com muita luz, colorido e catedrais de consumo, vivemos a ilusão como realidade e cá fora, no quotidiano, a realidade como ilusão. Percebe-se que se fechem janelas e se abram televisores nos mais miseráveis tugúrios, da China, às favelas do Brasil até ao gelo da Sibéria. 
   Estamos perdidos entre objectos inúteis, terrivelmente necessários para criar mais necessidades em sucessivas ondas da moda. Podíamos mostrar muitos talentos potenciais porém, tal como diz Ortega e Gasset, de Luís XV, antes de subir ao trono “ tinha todos os talentos, menos o talento de os saber usar.
[3]
    A super abundância revela mais uma pobreza e carência interior muito maior do que um prazer pela posse de tantos bens, forçosa e rapidamente substituídos, para criar o sentimento de insatisfação e desejo, motores da economia do consumo pelo culto da imagem e da aparência.
    O rejuvenescimento da sociedade tem um certo ar de alegre optimismo mas proporciona o aumento dos excluídos. Os requisitos para estar correcto são voláteis,  e esta época de mudança e globalização, é considerada por Zygmunt Bauman, sociólogo polaco, a era do “Amor líquido - Sobre a fragilidade dos laços humanos”  pois tudo flui em velocidade vertiginosa. Depressa os actores no “centro” são substituídos e pateticamente afastados  do palco. A multiplicidade das normas e padrões é extremamente exigente. Só por muito pouco tempo e espaço uma imagem tem força. Essa mesma força que é tão frágil cumpre assim o seu papel porque depois do furor do êxito efémero é indispensável que se apague, tal como o fogo de artifício mas, ao contrário deste, não é a escuridão da Noite que surge mas novo foco e fulgor de moda e seu fetiche.

   A realidade é insustentável, só suportamos a sua interpretação, por isso entende-se que se quebre toda a segurança dos laços entre as pessoas. Entre o virtual e a imagem, mantém-se seguro o culto da aparência, último ídolo sempre em permanente mudança.
    Perdemos a sabedoria de manter relações duradouras e alimentamos os laços líquidos do virtual. A teia de relações alarga-se, mas como é muito frágil, por exemplo, entre casais refeitos de divórcios anteriores, as crianças têm uma teia de relações sem muito tempo ou espaço comuns. O virtual substitui e acrescenta uma visão fluida e fugaz dos afectos e da vida sem sólidos laços que lhe criem raízes.  
     O problema é de muito maior amplitude e leva a pensar numa nova mentalidade que se confina entre “A Rebelião das Massas” do admirável Ortega Y Gasset e a última obra do brilhante pensador Baudrillard, “A Sombra Das Maiorias Silenciosas”, ambos convencidos de decadência da Europa. A eles se vem juntar, vindo dos EUA, o filósofo Lyotard que verifica a fragilidade da vontade dos europeus face à combatividade dos americanos.
   A doença da vontade a que chama anemia dos europeus, de facto parece que se abate sobre as multidões. O cansaço, ou a falta de vontade, não é doença, como a abulia, mas possivelmente a incapacidade de sair da massa, porque é da massa que se fala. Ora como afirma Ortega acerca da multidão que substitui a minoria dos intelectuais, afastando a carga pejorativa que este conceito ganhou, essa multidão invadiu tudo, está por toda a parte. Assim “já não há protagonistas: só há coro.” Homens que pouco diferem de outros homens numa homogeneidade como nunca houve e por isso Ortega se refere a massas.
    Esta sociedade onde há de tudo e o jardim do bem e do mal está mesmo à nossa frente, separado apenas por muito pouco, quase ao alcance da mão pois o poder de compra sem a circulação de bens apetecíveis e paradisíacos não teria sentido. A abundância tem de gerar necessidades sucessivas, imparáveis e contínuas ou originar o caos e o colapso das sociedades.
   A abundância, no reino da felicidade terrena, coloca-nos num purgatório de carências, qual delas a mais falsa e fabricada, que nos faz correr nas passadeiras rolantes usadas às avessas sem sair do lugar, no querer ter mais e mais e desprezo total pelo que já temos e ainda maior pelo que podíamos ser.
 O perto aqui tão longe pode resumir-se a esta metáfora da criança com sua mãe, que circula pelo Centro Comercial, de compra em compra, e da pergunta infantil que nos coloca face ao abismo do sentido:

    “Mamã, quando é que teremos tudo?

 


 

NOTAS:

 


[1] Lyotard, QUE ÉS EL POSMODERNO, 14.98.09.

[2] Zizek, Salvoj,  “TU PUEDES, Edição Antroposmoderno,  LRB, Vol. 21, nº. 6,2000 http://pt.wikipedia.org/wiki/Slavoj_%C5%BDi%C5%BEek,  11/11/09.

[3]. Gasset, José Ortega Y, LA REBELIÓN DE LAS MASAS, Revista do Occidente, Madrid, 1956.