" Espelho Invisível"

  • Sobre as sombras do Tempo presente

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

             

       

  Evitar o dilúvio

[  Ria de Aveiro em tarde de chuva.  Torreira. 2009) ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


    

 

     A determinada altura da sua passagem através do espelho, Alice perde o sentido do real que a orientava antes de ver do lado de lá e ganha um poder adaptativo de entender tudo “do outro lado do espelho”.
  Árdua tarefa esta de descobrir que a nossa imagem se torna mais importante do que nós!
     Já atravessamos o espelho mas, como é invisível. não damos conta da inversão social. Vivemos na era da abundância e o consumo devorou-nos. Em vez de consumidores somos consumidos na anomia social. “A mística da solicitude”, de que fala Baudrillard
[i], remete para funções sociais com regras bem delimitadas. Pela burocracia institucional reciclam-se os indivíduos para cada função. Até um sorriso é funcional e profissionalizado. Num telefone aparece um aviso da estratégia: “Sorria quando falar ao telefone, eles saberão do lado de lá”. Depois disso não espanta a solicitude “terrorista” dos sociólogos.
    Quase de repente, em termos históricos, habituamo-nos a um estranho mundo completamente diferente do que nos deixaram e, pela lei da sobrevivência, tentamos caminhar em frente. Mesmo com horizontes só de pontos de interrogação, obstinamo-nos na corrida. Já nem damos conta do que mudámos. Juramos o que antes recusaríamos “a pés juntos” usando a lógica irónica de Lewis Carroll.
      Por indiferença, por impotência, por sensatez e também por fadiga e defesa, temos de ir na corrente que leva tudo o que antes tínhamos por certo e seguro.
      As certezas ficaram nas portas do século XX e entramos no século XXI dizendo “Adeus à Razão?” se a colocamos numa contextura com Feyerabend e caindo num poço de relativismo. Tudo são configurações cruzadas, tecidas mas, muito sinceramente, cada vez mais fechadas.
      Subtil e implacavelmente, aumentam novos guetos simbolicamente rotulados por bonitos nomes de creches, instituições de acolhimento, lares, locais de reabilitação social, bairros de custos controlados, gaiolas de grades, algumas doiradas, mas sempre com grades e autênticas prisões.
    É assim que as instituições pululam e desumanizam as relações humanas. Evita-se a proximidade pela burocracia e funcionalismo em todos os campos. Nasce-se e morre-se isolado, num mundo à parte, na solidão. Criam-se, multiplicam-se e banaliza-se as competências profissionais para as alegrias, dores ou sofrimentos. À escala do mal que cresce as sociedades compartimentam-se e ficam inacessíveis os diferentes grupos de seres humanos, de acordo com os juízos de valor e a ideologia.
    Das creches dos bebés, dos infantários de Huxley “O Admirável Mundo Novo” e dos condicionamentos, sem falhas, dos alfa, beta gama até aos ypsilons, há o escolar padronizado, o burocrata, o tecnicista, o especialista até aos “diferentes”, vulgo deficientes, e por fim aos lares da terceira ou da quarta idade até aos enfermos terminais.
  A sociedade é complexificada até ao absurdo, mesmo com choques tecnológicos que não são apenas negativos, mas cada vez se compartimentam mais os seres humanos.
    Comte ficaria desnorteado ou esfregaria as mãos de contente com o espelho do seu louco sonho da Sociocracia e a idealização altruísta atribuída à noção abstracta do “Grande Ser” ou Humanidade. Esta visão que profetiza uma nova Sociologia aterrorizaria os utópicos, de Campanella, a Huxley passando por Orwell e toda a ficção científica de Júlio Verne ou Ray Bradbury.
   Pode-se afirmar que os sonhos de uns são os pesadelos de outros. Óscar Wilde, com a sua fina ironia, afirmava que havia duas grandes desgraças acerca dos sonhos. “Quem não realiza um sonho é infeliz mas quem o realiza torna-se ainda mais infeliz”. Apesar do sarcasmo, as frustrações sobem em flecha e os suicídios dos supostos felizes multiplicam-se de forma notória.


   Será mesmo que o homem nasceu para ser feliz? A maior parte dos grandes espíritos e sonhadores duvida. Dostoievski colocava em “Os Irmãos Karamazov” a escolha entre sermos felizes ou livres. Os sonhadores utópicos devem ter um grande sentido de humor por conseguirem escrever teses onde tal conciliação acontece.
   E é esse sentido de humor, do mais profundo e fino espírito o que resta para filosofar ou apenas sobreviver na incoerência salvadora. Os loucos são os únicos que perdem tudo menos a razão e os humoristas só guardam a fina ironia do humor.  
   Do nascimento até à morte as celebrações já foram ruidosamente sociais e participadas pelos grupos o que estreitavam a proximidade entre as pessoas em vez do afastamento e isolamento sofisticados que a burocracia cada vez mais cataloga em portfolios todos os actores sociais, muito embora sejamos sempre gente.
   Nasce-se sem brilho nem festa, num espaço mais próprio duma cirurgia do que da vida real. Morre-se só, numa ocultação do sofrimento que separa cada vez mais os indivíduos com os muros das instituições.
   Os recursos espantosos da Medicina estão em risco de torna-la numa ciência de “aprendizes de feiticeiro” com sofisticada tecnologia onde não se sabe onde começa ou acaba a ética e o valor da dignidade do ser humano.
   Sem oportunidade de revoltas, menos ainda de fuga, todos nós podemos ser confundidos com os novos guardas ou prisioneiros. Os actores sociais cumprem a sua função e desaparecem do palco da vida. A consciência de quem cumpre uma função, numa rede tão densa de organizações complexificadas até ao extremo, retira, quer o sentimento de responsabilidade, quer o de culpa. A máscara do actor social é o rosto visível e, por trás da mascara, não está uma Pessoa mas o vazio perfeito.
      A vinculação com a Terra torna-se tão ténue que a cremação dos corpos é a desaparição final sem tragédia nem esperança. Separados uns dos outros, sem raiz inicial ou laços fortes, nascemos e morremos na norma imposta pelas barreiras das instituições. Estas são o último passo para uma solução final que apague a nossa sombra da face do planeta domesticado pelo sistema que ignora já o seu passado, paradoxalmente tão próximo, em que a terra e o homem eram uma configuração mais realista.
    O homem animou a natureza com os seus afectos, dominou-a, tenta domesticá-la e despreza-a agora. A sua própria condição de animal parece-lhe humilhante ou negada quanto mais a exalta como “anjo” mais perto fica da “bestialidade” que Aristóteles e Kant tanto temiam.
     As crianças não lidam com a terra e os seus frutos, os animais e a vida. O mais longe que vão é aos Hipers onde vêem a Natureza já pronta a consumir. Cada vez mais o homem se separa da natureza. Até os seus animais de estimação não passam de brinquedos animados, submetidos às regras do jogo social.
    Tornamo-nos todos nesses outros distantes que se ocultam nos bastidores inacessíveis dos guetos. Não nos referimos aos excluídos da sociedade, mas igualmente aos guetos, fortemente guardados dos condomínios fechados onde a classe alta treme. Cada grupo teme o outro ou, pelo menos, busca o distanciamento. Mesmo a ajuda a esse outro anónimo é feita sem rosto nem proximidade, numa dádiva reveladora de responsabilidade culpada impossível de apagar ou exorcizar com um bom cheque.
        Mas não podemos esquecer o espelho que está presente na mente de todos nós. O exemplo do filme, “O Estudante de Praga” referido por Baudrillard, é paradigmático para ver que a nossa vida depende só da imagem, tão frágil, em trocas e simulações contínuas. A nossa aparência tomou o nosso lugar e quando o espelho invisível se quebrar, como acontece no filme, é o personagem que morre e não a imagem do espelho quebrado.  
   A tudo isso, a coragem dos nómadas surge na proximidade do tu, sem palco nem máscara quando segue “a via curta” que não está instituída e recobra a hospitalidade no seu sentido supremo.  
      Essa subjectividade do eu ideal, flor dos escombros da Noite de Cristal, utopia primeira para as novas éticas com novos avatares, morre à míngua de água pois ninguém já cuidará da rosa de um jardim anónimo depois de ter feito desaparecer, apagar ou matar alguém que era seu irmão.
    A multidão dos “blasés” percorre despreocupadamente a galeria dos ícones, os lugares “sagrados” que as tendências da moda impõe, extasia-se com o que lhe é imposto para admirar e gostar. O verdadeiro habitante desses lugares, o comum das gentes que labuta pela sobrevivência é-lhe indiferente e nem sequer lhe é visível. O gosto, esse último reduto da pertença da classe, impõe os seus valores sem que a fraude da sua exterioridade e da tirania da moda possa manifestar-se à consciência pessoal que tem por fundo os inconscientes bastidores das classes. O ridículo, a exclusão social, o desprezo e a degradação resumem-se na desconfiança crescente entre todos e que é a antítese do acolhimento. A cidade é o reino do anónimo e da indiferença, enquanto a ruralidade era a hospitalidade e o reconhecimento da confiança mútua.
    Em vez da multiplicação dos pães, eis que se exibe a multiplicação da morte.


    A filosofia, saída da segunda guerra mundial, e dos seus avatares, reflecte a passividade e sujeição enigmática do “Shoah” que se revê em Lévinas. Representa bem a assimetria da desconfiança que surge aqui na relação entre o eu que se confia ao outro mas desconfia dele. Evita a excessiva proximidade do outro que é aparição, apenas um reflexo que nos levaria a um Deus oculto comunicado numa mediação alienada.
  Deus, para ser Deus é presença, é “ presentificado” no âmago do rosto do outro, ou não é reconhecido. Ao confirmar Deus presente, a existência do outro desaparece para o ver como um tu que nos chama. Na profundidade da presença, o outro torna-se tu, que se reconhece amado e que nos ama. A barreira da mediação e o vazio, manifesta aquele grande medo que se insinua nas crises mais violentas, inspira éticas de intencionalidade tão altruístas como perversas, no seu âmago do regresso a uma solidão sem deus nem irmão.
  Afirmar o outro é pô-lo do lado de fora para sempre. Se assim for, a relação ética é uma exterioridade que se realiza na nossa interioridade pelo desejo de descobrir o mistério que o outro nos apresenta. É também o fascínio por uma ausência que se quer colmatar mas sem a coragem da responsabilidade de se efectivar no que há de mais simples e arrojado, a proximidade de Deus e do irmão.  
O cristianismo retoma a fé de Abraão e o amor para além da Ética. Foi isso que Kierkegaard
[ii] entreviu e é esse Amor para além da lógica do bom senso e da lei moral que Lévinas não reconhece e corre o risco de não descobrir.
   O mistério do outro, ao remeter para o infinito, como supõe Lévinas, só fascina como a serpente e petrifica pela culpa de não nos movermos para o que temos de mais perto, a solicitação do próximo, esse Amor tão forte num salmo de Job, de David ou no “Pai Nosso” tão imperativo de perdão, fraternidade e fundamentado na confiança. Se o outro nos remetesse para Deus, tornar-se-ia num simples mediador, um rosto que na revelação ainda mais se ocultava tal como a face invisível de Deus.
   O risco da visibilidade do outro é ser símbolo de ponte para o infinito, mas esse espaço não se pode atravessar sozinho. Não se fala do outro na sua presença, tal como a relação com Deus exige uma fé que o presentifica. E isso não deixa de estar patente tanto no Antigo como no Novo Testamento. Não se fala de Deus, como se estivesse ausente, sem risco de não entender o que significa a Sua presença. Camus, em “A Peste”, perguntava “como é que se pode ser santo sem Deus”, e agora perguntamos como é que se pode amar a ausência e como podemos ser responsáveis por um outro que pode ter o nosso rosto como refém, nem temos presente.
   A ausência é esse vazio que se esconde na abstracção de uma ética que não remete para qualquer acção moral no seu sentido prático. Retorna para uma fundamentação metafísica que não se resolve ou para um psicologismo que, como todos eles, ondeia ao sabor das alterações que a ciência traz e a filosofia, pela sua própria natureza, sempre ultrapassa.
   O outro apresenta-se numa distância que afasta a reciprocidade até à essência da responsabilidade que recai somente no eu. Esse afastamento é o Pecado original da proibição do paraíso em que todos somos um.
   A responsabilidade que alguém sente por nós liberta-nos da nossa responsabilidade por nós próprios pois confiamos plenamente em quem amamos. A confiança é o âmago da toda a relação, o suporte ético de uma razão prática inter- relacional, um fundamento que não se fundamenta nem se prova mas é a própria necessidade ética oculta por trás de toda a racionalidade. A prova da força e fé da confiança mostra a sua transcendência porque desaparece quando é experimentada precisamente porque existe para lá experiência.
   A fé é uma necessidade vital que se demonstra na confiança num outro, mas que tem um nome e é alguém, presentificado de tal modo que demonstra a força de entender a transcendência e como a podemos viver. Por trás de todas as leis, está a confiança e nela se firma o Contrato Social e a Justiça.
    Mergulhados no relativismo das leis, podemos perder a noção de que é a transcendência o único fundamento do Direito natural donde emanam os direitos humanos. Todas as éticas que se fundamentem num culturalismo são amputadoras da natureza humana. É por isso que Lyotard, se interroga: “Que podemos chamar de humano ao homem?
[iii] 

 


NOTAS:


 

[i] Baudrillard, Jean, A Sociedade de Consumo, Colecção arte e Comunicação,  nº. 54, Edições 70, 2008 pp 212-233..

[ii] Kierkegaard, S. Temor e Tremor. Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios,

[iii] Lyotard, Jean-François, O Inumano, Colecção Estampa, Lisboa, 1989,p,11.