" Os Limites do Falar"

  • Um Deus Grande Demais

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

            

       

  Por toda a parte

[  Lago e bosque em dia de chuva.  Brugges. Bélgica. 2007) ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


 

   O problema que deixa perplexo o homem de hoje vem do hábito de pensar durante séculos num deus que se coadunava com um pequeno Universo com um velho Sol às voltas de um grande planeta. De repente, o planeta ficou minúsculo e Cosmos mostrou a sua imensidade e expansão pelas galáxias sem conta nem medida.
    Então o homem assustou-se e nem pensou muito mais nesse maior mistério de ser “esse vime pensante”, como designava Pascal, milagre transgressor de todas as probabilidades e desafio das leis descobertas.  
   Mudamos e adaptamo-nos muito mais devagar do que o curso da História, a velocidade das ciências, das técnicas e os rumos que a sociedade toma. O pensamento está a ficar para trás e a acção não se humaniza como as ciências que se reformam. A nossa linguagem continua com frases que denotam modos bem arcaicos de pensar. A cada hora dizemos, sem reparar, uma série de equívocos há muito destruídos pelas ciências e nem o notamos conscientemente. Embora saibamos que não é assim, afirmamos que o Sol nasce cada manhã, que os objectos têm cores, que o tempo e o espaço são reais e mil outros erros que, na prática, esquecemos de emendar. Por outro lado, vimos a ida à Lua, o ADN a fazer desaparecer os filhos incógnitos e crimes insolúveis, a queda de potentados, a globalização crescente, as crises nas terras distantes, as guerras e frias guerras, quer acreditemos ou não. Tudo isso passou por nós e temos tanta dificuldade de mudar o nosso modo habitual de pensar.
    Ainda não se deu uma revolução da mentalidade nem na teologia nem em muitos outros campos. Não é o nosso deus que não se ajusta à nossa medida, é a nossa medida que não serve para analisar grandezas que não atinge e, muito menos, para medir ou falar de Deus.
     A descoberta da imensidade do Universo trouxe um outro lado do problema que os cientistas poucas vezes apontam. O crescimento desmesurado da consciência da nossa ignorância é bem pouco agradável de constatar. Ou se aceita isso, ou então é o orgulho tão excessivo nas nossas capacidades racionais.  
   Somos como os adolescentes narcisistas que descobrem o poder de argumentar e de raciocinar e por isso mostram uma rebeldia que reflecte a falta de equilíbrio das capacidades mentais. Por isso, esta hora mostra a grande dificuldade em ser humilde ou ter uma maior reflexão. O deslumbramento cego desse Iluminismo ainda não terminou e parece que petrifica. Afinal devia abrir as portas à humildade do que ainda somos e olhar para o futuro com respeito pelo que nos esconde e pelas possibilidades virtuais que temos ainda que descobrir.
    De nada vale lamentar o lado negro do passado da Igreja, ou até de toda a religião, porque nada se pode mudar e só o futuro apela a pensar mais depressa e mudar ainda mais velozmente. O processo de Galileu e toda a Inquisição não podem ser mais explorados, sem os enquadrarmos na época e com as implicações políticas e ideológicas que tiveram.
   Quem pode atirar pedras à História por um passado que nem vivemos nem podemos interpretar sem nos libertarmos do nosso contexto, ou da ilusão da explicação certa?
   Aplaudimos, de cadeira, os bons cow-boys em luta com os índios maus. Depois, no sofá, demos palmas ao índio bom que luta contra o malvado branco. Agora vemos, sem entender, os mártires islâmicos na sua luta contra os infiéis. Rezávamos pela conversão dos selvagens e pecadores e agora aceitamos que Leonardo Da Vinci “fotografasse” como bem lhe pareceu a “última ceia”. Vemos uma imagem e afirmamos a sua realidade como um acontecimento. Há belíssimos quadros da ceia de Jesus com os apóstolos e Da Vinci não passa de mais um ícone que só se sustenta pela repetição de valores do Renascimento. A nossa dimensão mudou tanto que Deus tem de ter outro rosto para o qual se exige uma revolução das dimensões em que nos movemos. Olhar para trás não empurra ninguém para subir melhor. Apenas atrapalha os pés.
   E qual é o chão que pisamos? Um chão que treme, uma rocha no meio da areia à espera da borrasca do mar? A demagogia é fácil e atraente, o espírito fracamente alimentado é fortemente seduzido pelas facilidades aparentes de aceitar tudo como está e ficar a um canto do perigoso conformismo irreflectido, até que nos venham buscar para enfrentar o absurdo ou o Mistério.
    Escolher o absurdo é um pouco o orgulho do ignorante, quase sempre muito teimoso, que se recusa a aceitar essa sua falha. Reconhecer o Mistério é entrar num mundo desconhecido, mas que corresponde mais à racionalidade que se admite limitada e nem sabe onde começou nem onde acaba a lei que rege tal capacidade.
     O mundo racional é feito à medida do homem e não à medida da Razão ou outro modo de conhecer que não atingimos. Apenas entendemos dentro do vasto campo, mas bem limitado, que a nossas capacidades permitem pensar um suposto objecto real. Apesar da suposta dualidade e separação entre a fé e a razão, esta última necessita da fé para que acreditemos nela e no que através dela, interpretamos racionalmente tenha alguma veracidade ou teríamos de nos assumir como loucos. Assim, bem podia ser pois o louco não perde a lógica apenas a usa de forma que não combina com as interpretações dos outros. Há certos loucos que, quando estão em maioria, passam a interpretar o mundo de um modo tal que ninguém lhes pode fazer frente. Quantas vezes isso já aconteceu no decorrer dos séculos!
    A centelha do espírito acendeu-se tão lentamente no seio das trevas da matéria que agora ainda só bruxuleia timidamente nas sociedades hedonistas e individualistas que temos. Neste turbilhão, entre o velho e o novo, há pressa em apreender um novo e magnificente conceito de Deus. O homem tem de enfrentar o desafio de se superar e redimensionar ao verificar como é ainda muito maior e gloriosa a obra de Deus face à sua presença fugaz no tempo.
    Ao vislumbrar os milhões de milhões de galáxias nesse imenso e ainda inalcançável Universo, ao descobrir tantas teorias e leis que explicam racionalmente o Cosmos, não nos aproximamos de Deus por causa disso. Apenas se pode descobrir que é muito maior a sua grandeza que está para lá de tudo o que já conhecemos.
     Será necessário uma subida gigantesca na crista da onda do tsunami da revolução global para tentar ver que o Deus que tínhamos era uma imagem por trás da qual se levanta outra grande demais para os nossos hábitos de pensar.
   Só com um tenaz entusiasmo pelo futuro do homem se pode pensar como é incomensurável a grandeza do Deus que ignoramos. De tanto O humanizarmos, divinizamos o homem à custa de Deus. Foi a tentação do século XIX que floresce no século XXI?

 

 

 

                                     Pensar dói

 

   Pensar é entrar num terreno perigoso onde o pé resvala a cada instante e as certezas se desfazem, tal como areia fina sobre uma rocha que queremos quebrar. O dado, perceptivo ou interpretado com alguma abstracção, mostra só com árduo esforço como está sujeito a tantos erros.
   Interrogamo-nos muito seriamente acerca da imposição da Igreja Católica da leitura do Antigo Testamento ter de ser feita sempre a partir do Novo Testamento. Afinal, “as muitas moradas do Pai” de que falou Jesus são uma bela metáfora e as lições do Livro de Job ou a maravilha da fé do Pai Abraão merecem uma atenção enorme pois aí está a Humanidade inteira e a pedra angular dos três monoteísmos. Em “Temor e Tremor”, obra do filósofo dinamarquês Kierkegaard, há uma pista para a fé de uma riqueza existencial infinita.
   Timoratos e perplexos, vemos a notoriedade que levam tantas manifestações confusas do espírito. Nas formas da arte, na linguagem, na prática do quotidiano, as pessoas alteram o seu modo de interpretar tudo o que antes era solidamente construído. Agora, corremos o risco de seguir a massa que não pensa, cantarolando algo que nem entendemos. Podemos recusar avançar ou assumir um individualismo egoísta primário, de um presente de felicidade onde o instantâneo ofusca o poder da meditação. O pensamento político e socialmente correcto oprime, abafa as vozes discordantes, minoritárias ou reflexivas.
   A fome é uma conselheira terrível em todos os campos e muito se nota na fome espiritual. Contentamo-nos com qualquer deus adaptado pela New Age, pelos cultos orientais, em muitos dos quais se esconde um verdadeiro ateísmo, as superstições, astrologias ou as crenças na força e poder das “energias”, à falta de melhor.
    A grandeza de Deus foi sempre como que temida pelo cristão. Mas Jesus é a porta, apenas a porta para o Pai. Dizer que é apenas a porta não retira a Sua grandeza. Connosco pode estar a Palavra viva, mas temos de estar vivos para o Espírito, transformando em verdade as promessas que aceitámos.
    Estamos a espreitar os novos tempos como se usássemos, com medo, um fraco telescópio, tal qual era o de Galileu a contemplar a Lua, quando indisciplinou os céus. Nem comparamos sequer com o telescópio de Hubble que tão pouco notamos e já demonstrou em parte a imensidão do Cosmos.
     Claro que conceitos, como imagem e semelhança, atribuídos a Deus, são vagos. O poema “A Velhice do padre Eterno” é um exemplo comum da trágica sátira que só acerta no pé do autor. Guerra Junqueiro era um poeta e era crente também mas, como tantos outros, criou um deus, bem à sua imagem e semelhança no que de melhor podia pensar de si mesmo, e projectou-a na natureza e depois no céu. Nem por isso se saiu bem no retrato ou ficou contente.
   A cada ser humano e em cada época a medida de Deus depende, tanta vez erradamente, da luta da luta travada com a sua orgulhosa capacidade racional mal iluminada e incapaz de aceitar o desafio de alterar as suas fracas noções de grandeza em que teima basear-se para si, cada coisa e seu lugar no Cosmos.
   Deus não está no céu nem na terra nem neste ou naquele lugar. Também não anda num vai e vem indeciso de transcendência de Aristóteles ou da imanência de Espinosa por melhor que defendam os seus argumentos. As metáforas tornam-se menos fáceis quando as teorias são verificáveis, as leis se comprovam e a razão nem com isso descobre certezas mais sólidas nos campos minados das linguagens por actualizar.
   Pensar a sério dói. É um acto de coragem e obriga a disciplinar o medo e o orgulho. Nem sempre, com base nos factos ou nas ilusões que mais amamos, encontrarmos caminhos para a verdade mas sim ciladas para um repouso que redunda em falta de coragem de sentir como dói pensar e só essa estreita via do pensamento nos leva a derrubar ídolos e certezas. E mesmo assim, quantas vezes, tudo isso não levam a construir outros castelos mais ilusórios e derrotados.
   Temos o exemplo de A. Comte (1798-1857) que, de brilhante positivista, capaz de galvanizar tantos discípulos, acabou por ser derrubado pelo seu próprio misticismo, com uma forma de ilusão que o levou a uma adoração da Humanidade, como o Grande Ser.
   O tempo e o espaço são conceitos para perceber um pouco melhor a realidade, mas temos de aprender que não são reais, como se supunha há bem poucos séculos atrás. São formas de medida. Se descobrimos que não há centro em parte alguma, Deus está em toda a parte mas até falar de parte exige a noção do todo. As palavras para falar de Deus mostram ser sempre rudes instrumentos nas mãos dos homens que colocam a razão sem a fé quando sem a fé nem acreditávamos na luz racional para interpretar o mundo! Afirmar que Deus não está em lugar nenhum não quer dizer que não exista. No que verdadeiramente erramos é acerca do conceito de “lugar”, pois o que não há realmente é “lugar”. Agarrar num teólogo ou filósofo antigo e tentar enquadrá-lo literalmente nesta revolução fantástica em que se tornou a epopeia humana dos últimos tempos é uma aberração. O mesmo se dá com a imagem de Deus.
   Quando o filósofo Xenófanes escreveu: “Se os cavalos (…) tivessem mãos ou pudessem desenhar com as mãos e fazer obras como as dos homens, representariam os deuses, semelhantes ao cavalo”.
   O problema levanta dúvidas sobre o homem e o seu teimoso antropomorfismo de medir tudo à sua medida. Se o antropomorfismo foi aplicado ao cavalo, o deus que a lógica traz não é senão mais uma medida do homem. É sempre mais fácil antropomorfizar um cavalo do que ultrapassar a medida do homem e diferencia-la da grandeza de Deus.
     A palavra humana e as leis que descobrimos não atingem a representação de Deus. Só o poder de representar é sempre maior do que toda e qualquer representação. O poder de crer em Deus exige um crescimento interior que vai para além das velhas evidências, sempre perigosas e em risco de refutação. Dentro de nós, mais do que na natureza, está o Reino de Deus com a Sua Lei e uma centelha de luz que podia ser um braseiro. Há que olhar para dentro pois não há entendimento do fora sem o dentro. O paradoxo de Deus estar connosco é um milagre de fé. Mas a fé de hoje tem de estar à altura do saber dos tempos.
   Porque é que a catequese não resulta tão facilmente como outrora? As causas são muitas. Hoje há uma distância enorme entre as gerações e temos de estar conscientes disso. As mentalidades alteraram-se nos jovens a uma velocidade que os mais velhos hesitam em experimentar. Outra dificuldade, que não é evidente, é que se começa pelo erro de supor que as pessoas já sabem muito acerca de religião pois que tanto lêem e estudam de tecnologia ou de ciências.
   Comete-se um grave erro em pensar que se pode dar um catecismo infantil a um velho astuto. Alimentemos um bebé com um cozido à portuguesa ou um bom bife, e vermos o que acontece! Por outro lado, a nascente de um grandioso rio é sempre uma esperança inicial. A emoção da religião espectáculo sem uma boa reflexão apaga-se como uma chama ao vento gelado da noite. A fria razão apaga o que de vago e sentimental podia ser tomado por crescimento para a fé. Novamente se observa como a racionalidade e a fé são uma unidade inseparável na sua dedução lógica. 
   Construímos um deus só para os nossos desejos, vontades e afectos. Partilhamos do egoísmo ou do “sindroma” do povo eleito, A barreira está na separação dos bonzinhos e dos maus, da fome do espírito e do alimento que se aceita por não ter outro, na redução de deus à nossa medida, em vez de O erguer muito para lá das palavras e da compreensão. A ironia dos ateus está na medida com que acreditam no poder da sua lógica nas teorias acerca da imensidão do cosmos. Descobrem as leis e recorrem ao acaso para explicá-las e, ainda mais, para fundamentá-las. Consideram-se sábios, mas esbarram com a lógica onde Deus não cabe. E se não cabe, não deve existir.
   Este “macaco desnorteado”, como afirma Chesterton, coloca em alternativa a fé e a razão. Mas temos de convir que “a razão já é de per si uma matéria de fé
[1].
   Um Deus grande demais é o único que temos. Obrigando a ser humildes e a descer para poder subir.
   Amor e fome são conceitos tão distantes e tão próximos. Nascemos com fome e nunca a saciamos. Trata-se de um facto tão evidente como o da existência do Mistério e da miséria da nossa racionalidade. Se o Cosmos não pode ser entendido por nós com toda a ciência que cada vez se descobre menor, o que nos falta para pensar que Deus é grande demais para as pobres linguagens com que nos enredamos?
     
Estamos no ano em que se celebra Santo Anselmo 1033-110, uma figura medieval de um vigor intelectual atemporal, mas que a superficialidade do pensamento que se cultiva e em grande parte pelos membros da Igreja, parece ter colocado este pensador em modesto vão de escada. Assim não pensa o Papa Bento XVI ao declarar a importância da sua obra, como um “tesouro de sapiência” pois, esse humilde beneditino que foi Bispo da Cantuária, deixou uma obra que despertou a atenção de pensadores e filósofos em todos os tempos.
   Infelizmente, para o comum das gentes empenhadas em assuntos mais seculares e políticos, a profundidade de Santo Anselmo pouco preocupa teólogos ou filósofos mais atentos ao particular e acessório do que ao essencial. Parece nem haver espaço para as reflexões acerca de Santo Anselmo que levou até tão longe o poder do pensamento religioso e o filosófico de todas as épocas.
   Indo até Chesterton e a sua humorística comparação entre poetas e cientistas, o argumento de Santo Anselmo tem uma actualidade pasmosa. Escrevia Chesterton que “o poeta pretende, apenas, meter a cabeça no Céu, ao passo que o lógico se esforça por meter o Céu na cabeça. E é a cabeça que acaba por rebentar”
[2].
  Duas limitações da linguagem que se encontram num e noutro caso, mas não se encontram com Deus. O que está para além do já não se pode pensar não deixa de poder existir. Tem mesmo de existir ou o antropomorfismo, mesmo nas formas mais elaboradas e abstractas, é ainda um reducionismo tosco criado pelo ser humano. Só quando se buscam os limites últimos do pensar e da linguagem, a sua pobreza é manifesta e estamos a aproximarmos dos nossos limites conceptuais. Então todo o nosso louvor revela-se incapaz, antropomórfico e carregado de símbolos retirados da experiência, na grandeza dos grandes senhores da Terra, dos poderosos, dos reis e senhores e de todos os mais magníficos atributos que, de modo limitado, podemos observar no homem e exaltá-lo de forma suprema em Deus.
   Apesar disso, não a Deus que essa linguagem se adequa, mas sim a um homem com características humanas levadas ao mais alto grau.
  No discorrer da argumentação de Santo Anselmo não vamos para a prova da existência de Deus nem falar do argumento ontológico, que foi uma das críticas de Kant nem sequer dessa realidade, mas situamo-nos um pouco mais longe e um pouco mais perto.
   Diz Santo Anselmo que Deus “é uma realidade, maior do que a qual nada se pode pensar”
[3] e muito deduz da sua lógica.
   Sem remetermos para a prova da existência de Deus, o bom senso demonstra que a realidade que se pode pensar não é igual à realidade existente e fora da nossa capacidade de conhecimento e que está fora das possibilidades da nossa representação. Há um limite para o pensar que manifesta que só conhecemos o que se pode reduzir a uma interpretação do real pensado, mas nada sabemos do que de maior não podemos pensar.
   Para lá do que se deduz do Ser, a férrea lei da lógica demonstra que o Ser pensado não se pode reduzir à racionalidade antropomórfica sem o risco de tomar a linguagem para falar do Ser na ilusão de ser ele mesmo.
   Se estamos a falar do Ser, atingimos o nosso limite do pensar. É a última fronteira do pensamento humano. Para além do Ser é a morada onde não podemos penetrar. A razão depende das suas leis. Pode haver outra realidade mas não há forma de a atingirmos. Por isso, as especulações de um poeta ou de um louco, quando perdem o uso da razão e prescindem das convenções da linguagem, não podem servir de ponte para a morada do Ser. A nossa lógica não pode ir para além desse umbral, sem cair no caos das linguagens ou perder o suporte racional.
  Se formos para perspectiva lógica estamos a colocar limites ao pensamento e não à realidade. Negar tais limites seria destruir o poder da inteligência que temos e que adapta o mundo a si e não pode sair dessa subjectividade. Também passamos a entender que há limites tanto para o raciocínio tal como ao uso da linguagem. Esses limites são plenamente aceites pelos cientistas de cada época que querem meter o céu na cabeça porque não conseguem provar que Deus não existe.
    Há tempos circulava um slogan num autocarro em cidades europeias em que se afirmava que era provável que deus não existisse. Para além da probabilidade que deixa a questão em aberto, interessa aqui o problema do que consiste em existir e a impossibilidade de afirmar ou negar o que está fora das possibilidades de provar pois é justamente “uma realidade, maior do que a qual nada se pode pensar”.
    Indo até à Grécia, encontramos o filósofo Parménides que, de algum modo, separa a ontologia da antropologia e afirma a Unidade do Ser. Esse Ser, sem o qual nada se afirma na linguagem, está para além de toda a afirmação. A simplicidade disto, que não tem nada de simples, é a de que os homens não têm escolha. O nada, ao ser pensado, é, de imediato, logicamente, uma via errada porque só o ser existe. Nem podemos ter lógica, nem linguagem, nem lei sem este máximo e mínimo unidos ao dizer: O Ser é.
  Se Heidegger pergunta porque existe o Ser em vez do nada e tanto se fala nisso, já com esta pergunta nos afastamos do cerne da questão. A pergunta parte já de uma certeza: a existência do Ser. Quando ao verdadeiro conceito de Deus está para lá do que se possa pensar simplesmente porque não “é” um conceito. Situa-se para lá de qualquer um que se formule. Assim como não se pode negar a Lei da lógica, e nem por isso se podem ter por seguras e lógicas as deduções, também é possível atribuir muitos predicados ou enumerar muitos adjectivos ao Verbo sem o atingir.
  Quando o Universo se enche de biliões e biliões de astros e o tempo e o espaço se revelam apenas como palavras que servem para medir e as usamos porque não temos melhores instrumentos, o que nos falta é aceitar um Deus grande demais para a nossa razão. Pálida imagem de semelhança com Deus, oferecemos à falta de melhores qualidades que o homem tenha. Mas os limites da razão não limitam a realidade e o que é maior do que o pensamento não pode ser expresso na linguagem. Se esta era a descoberta de Parménides, está presente no texto de Santo Anselmo. A pobreza da linguagem que temos é fruto da razão que não pode ir mais além. Aceitar o mistério de tanto entendermos do Comos obriga a ter a humildade de declarar que tal facto só revela como é enorme a nossa ignorância do que se passa realmente nos céus.
  Podemos entender agora como isto de pensar dói e pesa para quem deseje mesmo sair da superfície dos factos e das explicações do senso comum, pelas quais nos guiamos por peso do hábito. Talvez por isso, o poeta queira simplesmente meter a cabeça no céu. Melhor ainda é ter mais humildade e pedir a Deus para o descobrir no nosso coração e depois na nossa cabeça.
  Mais do que o sonho, a fome é uma constante da vida, de todos os dias em renovação e nunca saciada. Assim, há muita diversidade de fomes. A fome para a sobrevivência animal é apenas um passo para a fome na verdadeira condição humana, a do saber e por fim a fome de Deus. Um Deus que tem de estar para além de tudo o que a razão possa entender para que a sua grandeza e infinitude seja a manifestação do seu poder para além da nossa razão.
  
Não é por um fideísmo do absurdo e negação da razão mas por respeito para com a inteligência que temos e os seus limites não serem ultrapassados por uma fé em ir para além de si mesma.
     Para um menino é fácil saciar a fome, enquanto para o homem adulto esse “pão” só pode surgir do suor do seu trabalho. A busca da sobrevivência está para o “natural” como a tecnologia está para o Espírito. E o trabalho de pensar é a tarefa mais nobre e mais própria do homem.  
   "Devemos silenciar sobre o que não podemos falar", são as últimas palavras que Wittgenstein, considerado o Sócrates do século XX, escreveu no seu famoso “Tractatus”, a indicar enigmaticamente como o silêncio é o último recurso para agir eticamente e em função de uma tal grandeza que só cabe em ser atribuída a um Deus grande demais e que só a pouco e pouco se revela.
  Quando contemplamos em silêncio a beleza das coisas e nos alegramos com todas as maravilhas que nos rodeiam desde a perfeição de uma teia de aranha molhada pelos raios da manhã até às inventivas técnicas que usamos despreocupadamente, brilha em nós milagrosamente um absurdo. O espanto e sentido do Bem ou do Belo estão para além dos factos e não lhes pertencem. Isso não se verbaliza porque a linguagem não traduz o que não é facto, mas é tão verdadeiro que não é definível na sua totalidade de micro cosmos e é tão humano que manifesta a rara centelha do brilho do nosso entendimento. Como é apenas uma mísera analogia da partilha tão interior da criação, também está fora do mundo e, por isso mesmo, é um pálido reflexo da inteligência silenciosa de Deus.
      Não discutimos os argumentos de Descartes ou Kant acerca da ideia de infinito ou do argumento de Santo Anselmo. O que é afirmado por um homem é sempre possível de rebater por outro. Isso apenas prova a unidade da consciência comum e não as suas deduções. O que fica em aberto e sem resposta é a capacidade de entender, admirar e amar.
   Esse é todo o inexprimível que não pertence ao mundo nem aos factos que nunca são valores de per si. Se o mundo não é um facto quando nos referimos à sua totalidade então “Aquilo que é místico é o que é o mundo e não como ele é
[4] assim afirma Wittgenstein e entramos no campo mais humano que é o menos explicável, inexprimível e verdadeiro.  
  Esta derradeira capacidade é, no fim de contas, a primeira do ser humano, o único caminho para concluir que, diante da finitude do homem, toda a sua força está em admitir um Deus grande demais e que entre o caminho da inteligência criadora e do amor, este último, é a única via para um humilde reconhecimento de teólogos, pensadores e crentes nesse paradoxo do amor e do Bem, ínfimo e inexplicável poder, que apenas no ser humano pode atingir o fulgor ínfimo do júbilo de uma grandeza silenciosa da presença de Deus no mundo através do homem. Um Deus grande demais é como o Amor, não cabe em fórmula alguma que o homem pretensamente invente.
  Explicar o amor não é tarefa de filósofos, religiosos ou teóricos das éticas. É uma realidade que se vive sem poder verbalizar de modo algum e nos faz existir um palmo que seja acima da realidade de todos os factos.


 

NOTAS:
 


[1] Chesterton, Gilbert K., Ortodoxia, Livraria Tavares Martins, Col. Filosofia e Religião,  Volume 4º Nova Série,  5. Edição, 1974. p 62

2  Idem, .Op cit.  p 39.

[3] Opúsculos, Selectos, da Filosofia Medieval, 3ª Edição Revista, Braga, 1991, p. 153.

[4] Abbagnano, Nicola, História da Filosofia, Editorial Presença, Lisboa, Volume XIV, s/d. 2ª Edição,  p 29