"Os paradoxos da Moda "

  • Carta 7ª ao Século XXI

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

 

                   

       

  Estranhos Equinócios

[       Visão de montra em edifício Renascentista. Florença. Itália. 2008]

[ Imagem digital]

   

 


 

             

 

                       “O carácter místico da mercadoria não provém do seu valor de uso”

                                                                                                       Marx

    

 

      

       A graça é inseparável da criação que pressupõe a presença da metáfora da Luz que irradia nas Trevas. A Arte, que a Moda pretende afirmar, repudia o funcional pelo espaço estético em que pretende mover-se. Porém, nem a inutilidade nem a funcionalidade no vestuário – símbolo tão concreto de toda a moda – são tão importantes como o próprio paradoxo implícito no efémero do objecto que determina a sua destruição e morte. 

      Na Moda, a aparição do objecto é já causa da sua degradação, não é pelo uso mas pela visão que se gasta e, por fim, é indispensável a aniquilação, para dar continuidade ao descontínuo da Moda.

      Nenhuma outra forma artística representa tão cabalmente a celebração da sua própria morte numa falsa comemoração da vida. A ocultação do Outro, como presença do humano, transforma-o em mercadoria falsamente designado como criação estética.

       Porém, na Arte pretende-se afirmar algo perene e livre, embora o mundo não o seja de modo algum. O que torna a Arte atemporal é que “não serve para nada”, traduz um desprendimento que ultrapassa o tempo e passa a valer por si mesma. A sua “inutilidade” manifesta-se em objectos que perderam esse cunho e ganharam uma dimensão nova. Este é o caso dos objectos do quotidiano que deixaram de o ser e passaram a ter um valor, de testemunho ou de perfeição, carregado de nostalgia. A elegância e beleza de antigos objectos de secretária, já completamente inúteis, ganham um valor para além da funcionalidade para que foram criados. Se compararmos um vestido com um bolo artístico pode existir alguma fruição estética, para além do seu uso, mas não ultrapassam a funcionalidade e remetem para o excesso do lixo ou da extravagância de museu de curiosidades. Um bolo estragado ou um vestido fora de moda perdem a categoria artística e até as categorias de agradável, elegante, bonito que já não estão representadas.

 

  O apelo da Arte pretende atingir um alcance libertador, a sua mensagem aglutina uma tal multiplicidade de leituras que ultrapassa o círculo de especialistas e códigos de linguagens e abre as portas a um imaginário interactivo. A estética exige liberdade e conhecimento, paradoxalmente ligados, por muito condicionada que seja pela época e sociedade.

    O vestuário, analisado pelo ângulo da Moda e esta como Arte, esconde paradoxos invisíveis e jogos económicos do poder, que se pretendem ocultar, mas são a real força que os move. A inovação, que a Moda exige, coloca fora do objecto o seu valor, “a mais-valia” pela áurea que o rodeia, e demonstra que é fruto da contradição que, mal se elimine, degrada ou destrói o objecto.

   A atenção que atrai não se foca no objecto mas sim no seu mundo mágico, misterioso que se lhe atribui neste jogo de poder em que cada inovação é já sinal da sua efemeridade e morte. A efemeridade de algumas horas de aparição e de uso, prende-se à obscuridade que não pode ser revelada sem perder a categoria de Arte. Oculta-se uma extensa cadeia de trabalho e de seres humanos acorrentados a um sistema implacável e só assim resulta essa aparição de ilusória vida fugaz. 

     A Arte na Moda, inscrita no vestuário, tem pontos de contacto com o fogo de artifício. Este, como Ernst Schoen definiu, é “a mais despretensiosa das artes[i]. Assim será, pois pode encantar multidões, surge do “nada” e ao nada volta. Não tem em comum a funcionalidade possível do vestuário e, nessa dimensão, a analogia que Paulo Morais[ii] pretende traçar entre ambas não tem sentido. A Moda, pela sua própria essência, é a mais pretensiosa das artes pela tirania que impõe numa base completamente irracional. Talvez a análise do objecto “fora de moda” como um vestido acabado de estrear, seja grande desmistificação à pretensa “arte”.

   O vestuário existe ainda depois de usado, mas é a Moda que o impôs que agora o destrói. A degradação do objecto como “fetiche” é a prova de que o que desapareceu foi a sua mais valia, “o carácter místico da mercadoria”.[iii]. Já não será o fetiche do dinheiro como dizia Marx, mas do objecto que a Moda torna desejável. A desaparição do dinheiro, que se afastou até da linguagem económica e outras, acontece porque o capitalismo tem formas muito mais subtis de criar o desejo e de seduzir. A Alta Costura, como face da ideologia dominante, falsamente estética e inovadora, mostra a sua inacessibilidade que lhe fornece a força para ser aberta a todas as influências e fechada a todas as bolsas. Para além disso, é um meio de manipular as elites sempre sôfregas de novos símbolos que as distingam da massa.

 

   A Moda é a força de manutenção de um sistema económico em que se oculta toda a produção pela mão-de-obra escrava e se polariza no fetiche com o seu poder encantatório e alienante à volta de um objecto irracionalmente valioso, para uma ocultação de um racional perverso de dominação.

    Entre os objectos úteis, a Moda revela como se estabelece uma “mística” do artístico, do novo, do transgressor. Através de desejo e do apelo de objectos simbólicos, falsamente libertadores, que se traduzem em escravidão a que submetem todos os seres humanos esmagados pela força do inconsciente colectivo que pressiona e se alia à perversão da liberdade em formas e condições desejadas pelo próprio escravo.

   O poder imenso da Moda exerce-se bem melhor quando se alia ao medo do ridículo, se afasta do estigma da pobreza, da velhice, da doença, ou seja, da real condição humana. A Moda existe por alguns para alguns mais, numa torre de marfim, onde ninguém permanece.

     O discurso, que veicula a imposição da mudança, é persuasivo, aparentemente aberto a todos, mas numa espiral de mudança que se torna cada vez mais veloz e que ninguém pode acompanhar sem esforços que se multiplicam de uma adequação que lentamente revela ser ineficaz pela lei inexorável da condição humana da doença, da velhice e da degradação da imagem que a própria Moda denuncia, exclui, silencia e mata.

    Assim será perspicaz a frase atribuída a Gabrielle Chanel: “A Arte é feita de coisa feias que com o tempo se tornam belas e a moda é feita de coisas belas que com o tempo se tornam feias”.

  O ícone do “socialmente correcto” esconde, no que parecem ser relações entre pessoas, relações entre objectos e máscaras. Uma multidão de seres humanos escraviza-se numa longa cadeia oculta até que um “simples” objecto de Moda se produza. É uma “aparição” tão ilusória como aquela imagem que Vergílio Ferreira evoca ao escrever que “é justamente o corpo que nos contesta a eternidade”. [iv] Um enorme icebergue de trabalho, que nada tem a ver com Arte, multiplica objectos, absolutamente irracionais, para satisfação de uma ilusão de prestígio. Esconde-se a eficácia produtiva e condena-se tanto o escravo que prepara a mercadoria como o escravo que se submete cegamente na ilusão de aparecer. O medo do ridículo e do anonimato mortal oculta-se na espiral da constante metamorfose. O paradoxo do “criador” que afirma conceber uma “obra de arte”, quando se trata da máscara para um efémero aparecer, dá toda a razão a Marx e ao conceito de fetiche que usou. Para lá das fronteiras da Moda e seus paradoxos, a Vida reclama seus direitos e a condição humana exige a Verdade que liberte.

 

 

 

                                A Ilusão do Centro

 

 

      O valor da Moda atenua-se quanto mais se afasta do centro do seu reconhecimento até desaparecer nas periferias que afinal são a autenticidade do real.

      É óbvio que a Arte pode não ter nada que ver com a racionalidade, pode juntar a funcionalidade à beleza e pode até ser completamente inútil. Um quadro, pendurado numa parede, de nada serve e a sua funcionalidade para tapar um desagradável buraco ou uma mancha, não o torna nem mais nem menos estético. A falsidade da criação está na ocultação do trabalho de muitos e na atribuição do seu resultado a um único artista com o rótulo de estético. A obra é só uma “mais-valia”, porque escraviza, cria o desejo de posse e não da estética desinteressada. Dupla escravatura de quem a compra e dos que a realizam pois, por sua vez, também se convertem em mercadoria.

O sistema de tudo se alimenta de tudo, tudo deseja e tudo destrói. Quem defende a sua função estética manifesta inconsciência ou esquecimento do aparelho de produção e sua força.

   A religião, a que Marx atribuía a culpa da inércia do povo e a hipocrisia da burguesia, não tem o poder do “Império da Moda” que agressivamente nos ataca. Todos nos queremos ligar à Moda que oculta os nossos reais medos. A nossa era, conforme a designou o sociólogo polaco Baumen[v], “é líquida” porque tudo flui, aniquilou toda a solidez das estruturas sociais, a força dos valores que eram duráveis e atravessavam gerações. Tal como os objectos que agora “vemos nascer, viver e morrer”,[vi] a uma velocidade que é cada vez maior, assim acontece com os nossos valores, crenças, amores e afectos que, tornados líquidos, se adaptam a uma mudança constante.

    Vivemos cada vez mais entre objectos e não entre pessoas que se relacionam através dos objectos que possuem. A nossa própria transformação em objecto é a manipulação da Moda que nos torna mercadoria e consumidores insaciáveis porque “estar na Moda” exige o sacrifício total, quotidiano, até à nossa própria destruição e substituição. 

   Criamos um imaginário de empatia com um perfume, com um vestido, um penteado, umas botas e nem vemos que nisso está a ocultação da pessoa e da sua condição humana. Diremos que tem tudo o que é preciso para agradar da cabeça aos pés. Mas estamos a referir-nos à aparição de um objecto, a uma ”máscara”, com todo o imaginário que a sociedade lhe atribui. A arma do ridículo é extremamente poderosa e, sob o manto da Moda e sua estética, estão as forças sociais que suportam um equilíbrio da pirâmide em que no seu cimo está a Moda e toda a criação artística que se lhe atribui.

   Como num jogo de sombras chinesas, ou na velha caverna de Platão, estamos a confundir a realidade com a sua sombra, a trocar a nuvem por Juno. O mais trágico deste sistema é a crença no efémero que afinal é a causa da nossa própria condição infeliz. É a mercadoria transformada em fetiche e objecto estético inalcançável.

   A sedução nunca é feita de luzes fortes e, assim o desejo nasce do imaginário colectivo criado à volta do que se não tem e que nos ensinam, firme e teimosamente, por meios sofisticados, a criar desejo de ter. Identificam-nos com Bárbara Guimarães, com Lili Caneças, ou uma celebridade, mas para os hesitantes há mais opções. Cristiano Ronaldo também serve para vender imagem. O comércio de imagem é uma escravidão já pouco subtil do aparecer. A Moda está lá, é ela que dita o que é feio ou é belo, o grotesco e o elegante. Amanhã pode não dizer o mesmo. Há sempre opções na fábrica dos desejos à espreita da vítima ideal.

    As classes dividem-se nos seus conflitos internos para bem do sistema e sua prosperidade. Marx não previra isso e existiriam conflitos entre as classes mas cada uma seria coesa. Isto é ainda o capitalismo, porém “o capitalismo foi reformado a ponto de ficar irreconhecível”[vii].

  Tal como os objectos e vestuário, a religião perdeu o sentido funcional porque a ocultação do prático é a ocultação do corpo e da real condição humana. As armas do ridículo, do “incorrecto” ou da exclusão do centro servem de escudo ao efémero e da negação de sentido. A religião transformou-se e usa os grandes valores no discurso mas perdeu o sentido da condição do corpo. Assim “os seres humanos só eram essenciais para tal economia num aspecto: como compradores de bens e serviços.”[viii].

    O imaginário cola-se à Moda, torna-a desejada, inalcançável, algo que tem tudo para ser religião, mas é a mais pobre das formas de religião com a idolatria da aparência. A proximidade da religião afirma-se na aparência e o cristianismo parece reduzido a um lugar para a estética. A Moda, em vez dos grandes valores cristãos vazios do corpo, é agora a esperança e a promessa do brilho, felicidade, alegria e apanha todos na sua rede.

    A degradação dos valores faz da religião uma mística estética como última forma de aparição social. Como realça Frazão Correia, o cristianismo fornece “um tesouro de linguagens, símbolos e ritos[ix], reutilizado agora como função decorativa do vazio. A Moda alimenta-se da recuperação de fragmentos desarticulados para ocultação do corpo que a religião também esconde.

   O vestuário é que melhor esconde e simula a presença do humano. Pode-se pretender que a Arte está lá, mas no dia seguinte terá desaparecido por completo.

   A sedução do fetiche esconde o verdadeiro desejo da unidade do corpo e do espírito que todo o ser humano carrega, que a Moda não satisfaz e o discurso religioso não arriscou ainda ou não encontrou uma reconfiguração do humano, depois do abandono da “ideologia da estabilidade[x]. Quantas vezes caiu a ilusão do centro até se instalar a insegurança e, quantas vezes ainda terá de cair, até assumirmos o risco de estar de passagem, sem lugar seguro?

 

    Foi o abandono do centro e a ida para a periferia que colocou o novo cristianismo no risco da fronteira mas lhe recuperou a força da promessa em vez da saudade da relíquia. No lugar da fidelidade ao passado só na renúncia aos muros que separam do Outro é que se pode afirmar que a Verdade cresce no mundo. A hospitalidade, em lugar da hostilidade, é um desafio para quem sabe que tem uma mensagem de Verdade mas reconhece que sem o Outro nunca se completa. Não se trata de tolerar ou abdicar mas de associar a fé e o amor para que todos sejam um.

    A generosidade da atenção transborda de graça, altera o olhar e transforma os fragmentos de tempo e espaço, em que surge a condição humana na sua totalidade sem os discursos imperativos de Moda. A libertação de moldes efémeros e constrangedores aniquilaria a Moda e a tirania do olhar controlador de um sistema de referências mutiladoras no falso palco social. A exclusão de todos os que não são modelados pelo rígido padrão desvenda a ilusão do círculo do pequeno grupo de eleitos. A exigência do sacrifício dos mártires, testemunhas da moda, inclui enorme sofrimento com as operações cirúrgicas, a anorexia, as dietas, a manutenção da falsa juventude, num combate impossível contra o tempo que os destrói. 

    Em vez desse combate por uma ilusão, depois da saudade da solidez das tradições e da sombra reconfortante das certezas, o Espírito tem de existir num organismo que não pode ser um edifício ou um corpo institucional mas na unidade de um cristianismo vivo na condição humana de só poder ser com os outros. O tu, que personaliza e derruba as máscaras, vive entre nós. O regresso do Outro da filosofia não basta porque um diálogo não é com um outro mas com alguém com um nome, uma presença que se revela na prece ou na condição fraterna do humano. Tal como nos recorda De Certeau: “pas sans toi”[xi].

   Por entre os escombros dos objectos, a Ressurreição do corpo exige uma audácia nova e ocupação de um espaço de fronteira para além da Moda e do seu círculo de paradoxos.

 

 


 

   NOTAS:

 

[i]  Morais, Paulo, Arte e Moda, Brotéria, Vol. 139, 1994, p. 42.

[ii] Morais, Paulo, Arte e Moda, Brotéria, Vol. 139, 1994, pp. 41-53.

[iii] Marx, Karl, O Capital, Edição Centelha, Coimbra, 1974, p. 110.

[iv] Ferreira, Vergílio, Invocação ao meu Corpo.

[v] Bauman, Z, Modernidade Líquida, José Frazão Correia, Crer na fronteira, Habitar novas fronteiras , Brotéria,,Vol. 168,  2009, p. 32-33..

[vi]Baudrillard,  Jean ,Sociedade do Consumo, Edições 70, 1981.

[vii] Hobsbauwm, Eric, Era dos Extremos: o Breve Século XX: 1914 - 1991

[viii] Idem, Ibidem.

[ix] Correia, José Frazão, Crer na fronteira, Habitar novas fronteiras , Brotéria, 2009,Vol. 168, 2009, pp, 23-48.

[x] M. De Certeau, in ,  José Frazão Correia, Crer na fronteira, Habitar novas fronteiras , Brotéria, 2009,Vol. 168,  p. 34.

[xi] Idem, Ibidem, p. 42.