"O Grande Medo "

  • Meditação sobre a "desconfiamça"

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

 

                  

       

  Inquietação

[      Reprodução do quadro "O Grito", de E. Munch. Oslo. Noruega.]

[ Imagem digital]

   

 


 

 O medo do perigo é mil vezes pior do que o perigo real

 

  Daniel Defoe, in. Robinson Crusoé

 

                                                                                                                                                                                        

 

 

    A ironia da História será talvez que, quanto mais de perto a vivemos, menos parece que a entendemos. A proximidade não se transforma em conhecimento e ainda menos quando a ocultação da causa dos nossos medos é um esforço constante de defesa e o inimigo não tem rosto nem se sabe qual a sua força.

    Entretanto, temos uma sociedade paralisada, sem lugar para belos sonhos ou ideais, porque o medo torna os outros nossos inimigos e a atitude de defesa rouba a liberdade da acção, do entusiasmo e a coragem de atacar o Mal.

  Começa surdamente mas sobe cada vez mais o Grande Medo que é como um manto invisível que  cobre quase todo o mundo. A noção da mudança, que se concretiza cada dia mais velozmente, não se traduz numa nova estrutura durável e colectiva mas numa adaptação sempre provisória.

   Descobrimos a cada passo que a liberdade que gozamos é a exploração velada do Outro. Isso transforma-se numa culpabilidade e ficamos contagiados por um medo que nos retira a força de lutar e nos faz desconfiar do que desconhecemos e temer a ciência como se esta fosse um risco dispensável. 

   Aí aparece o cinismo que retira a simplicidade a tudo, nos rouba a beleza e nos enfada o espírito. Trata-se do que se pode chamar a passagem da “dissolução em estruturas para a dissolução estruturada.[i]. O Poder actua no paradoxo de aparência de contra poder. É o próprio sistema que se protege pelo cinismo que oculta a dicotomia entre a pertença e a sua negação, numa dialéctica de ambiguidades, num estar de fora, mas actuando por dentro. Assim o mal pode ser criticado, mas cinicamente, não é aniquilado, por ser inerente ao poder.

 

    A mais assustadora das pestes, que agora não tem fronteiras, essa “peste” de que falava Camus, é este vírus de medo epidémico que, manipulado pelo sistema, nos torna presas fáceis de controlar. É o cepticismo moral e a lei do utilitarismo que vemos na lógica que a ideologia esconde.

   Os jovens aprendem as regras de um jogo onde o “copianço” já generalizado, passou a ser objecto de estudo[ii] tendo como conclusão “que a fraude escolar funciona como válvula de segurança perpetuadora do sistema”. A desonestidade dilui-se na massa e o temor alia-se à perda das noções do Bem e do Mal.

  Por traz desta tolerância crescente está a cumplicidade no jogo, o medo da denúncia aliado ao sentimento de pertença de um grupo e a vontade de ser aceite. Isso mostra como funciona um conformismo que revela a cobardia da mediocrassia. O enorme risco do futuro está em ceder ao mal porque se aceita o mal do medo. Se a participação no sistema se inicia por uma imitação de formas mitigadas de cumplicidade no mal pela vida fora, essa perda de responsabilidade torna os outros inimigos e paralisa as iniciativas mais altruístas.

   Perante esta situação, Bento XVI refere a ameaça da “desagregação dos ordenamentos morais através de uma forma cínica de cepticismo e de iluminismo.” A sua visão demonstra o perigo de “por causa dos bens corremos o risco de perder o próprio Bem. [iii]. Esse cinismo, de uma certa ideologia alarmantemente comum a muitos intelectuais, surge cada vez mais patente na forma distante e desumana como assuntos graves são tratados e se alardeia um riso descarado diante da miséria alheia. A pobreza passou a ser como que uma “doença” tal como a velhice ou a dignidade e honra da palavra dada.  

 

   A luta é desigual numa crise em que uns levam a vida a sério e sofrem na pele os dramas do dia a dia, enquanto outros usam o cinismo como arma de ataque que tudo aniquila em seu redor. Mas é uma arma perigosa porque, além de ferir inocentes, agride por fim o utilizador que se perde de si mesmo sem entender que é a sua própria ruína que pressagia. Sem poder olhar o Mal de frente e não o combatendo, aumentam os pequenos medos e soma-se ao medo do que é circunstancial e esquece-se o essencial. Na obra de Kant, o homem essencial tem a mesma presença do homem real, porque o filósofo só os separa para ensinar como nos devemos tornarmos felizes e depois como sermos dignos dessa felicidade[iv]. Mas não deixa de ser bom acrescentar que a liberdade do homem “está radicalmente pervertida[v].

    Não se pode abolir o Grande Medo que alastra por toda a parte, mas podemos adquirir mais conhecimentos acerca da natureza humana. Teremos por começar pela não existência a natureza humana de “per si” mas no seio da família e de uma cultura.

    O Grande Medo alastra-se e separa-nos uns dos outros. Cada qual pode reparar como a sua conduta está a mudar bem depressa. Como se generaliza o temor em deixar a porta aberta, o carro com as chaves, os vidros sem grades, as casas sem fortes portões, com vedações e mais fechaduras. Nas portadas electrónicas, só entramos depois de passar barreiras e começam a surgir os condomínios cercados e vigiados. Os guarda-costas já se notam em lugares que se diriam seguros. Sabemos do vandalismo na casa do vizinho, do fogo posto ali ao lado, do idoso espancado por causa da magra reforma. O medo é inculcado nas crianças em vez da confiança na Vida e nas pessoas. Se bem que os predadores sejam reais, uma criança que viva com medos perde a alegria e o entusiasmo pelas descobertas, aprende a temer a vida em vez de aventurar-se, a ver nos outros inimigos a desconfiar ou odiar. “Quando ficamos assustados, começamos a ser agressivos para as pessoas que nos rodeiam.”[vi]

   A partir daí, nada melhor do que o medo para acreditar cegamente na protecção fornecida pelo sistema e todos os tiranos e governantes sabem disso e melhor ainda usam esse meio para os seus fins.

    Se olharmos para os assaltos de cada dia, a violência de que podemos de repente e gratuitamente sermos vitimas, é lógico que o nosso medo aumente. Mas para isso muito contribui a atmosfera de sensacionalismo violento, a escalada alarmante da agressividade das mensagens e imagens, que sobem sempre, dia após dia. O espectáculo do Mal, a que somos expostos em nome da informação, é contagiante tal como a perda da sensibilidade diante da desgraça alheia.

    Os pequenos medos avolumam-se, tornam-se fantasmas mais perigosos que a realidade e aumentam sem cessar. Assim acontece que: Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos do que realmente importa.[vii]

    O que Lispector refere é a ocultação do medo do Outro de quem o muro da indiferença, aparentemente nos protege, mas também nos isola e causa um mal-estar social crescente.

   Até o nosso imaginário é escravo, doente de medos, o homem do Século XXI teme ver na realidade os seus medos expostos, por isso é nas “máquinas dos sonhos” que realiza pesadelos.

 

   É curioso como se varreu Freud do seu pedestal, onde tão pouco tempo esteve, foi escondido no armário onde se guardam os fantasmas sociais e tudo se faz para esquecer as suas lições. Sobrou um pequeno complexo de culpa que se dissolveu no grande palco onde o imperativo é:

    -- - Sê feliz, mas coloca a felicidade na ponta do arco-íris da satisfação de todos os desejos que a sociedade da abundância nos condena a querer.

   

O paradoxo está em criar o desejo, o fetiche do objecto, essa mais valia encantatória, cada vez mais mágico para aumentar falsas necessidades num acumular de bens que se transformam em males pela sua repetida presença sufocante.

     Com toda a profundidade de sempre, o dramaturgo Shakespeare coloca na boca de Hamlet a força e dimensão da representação do teatro ou da vida: "O teatro é a armadilha onde apanharei a consciência do Rei.” É que, na grande cena da Vida, onde o maior espectáculo é exposto, nós somos esse “rei” que é cúmplice e vítima do que acontece.  

  Representamos sem texto e, se não tivermos consciência do Bem e o procurarmos revelar no nosso desempenho, não faltará quem se encarregue de nos dar textos com valores e crenças para facilitar a representação. Só a nossa consciência pode ser a cidadela da coragem e aí, a última forma do medo deve ser o medo de sentir medo.

 

 


 

NOTAS:

[i] Rodrigues, Rocha, Sílvia, Cinismo, Ideologia em tempos de excepção, http://www.sbsociologia.com.br/congresso_v02/papers/GT25%20Sociologia%20da%20Cultura/Microsoft%20Word%20-%20papersbs2007.pdf 27.01.09

[ii] Domingues, Ivo, O Copianço nas Universidades, O Grau Zero na qualidade,  Edição RES, 21, Lisboa, 2006.

[iii] Ratzinger, Joseph, Jesus de Nazaré, A esfera dos livros Lisboa, 3ª Edição, 2007, pp 216-217.

[iv] Kant, Critique de la raison pratique, p, 139

[v] Gueroutlt, Nature Humain et État de l´Nature chez Rousseau, Kant e Fichte. Cahiers pour L Ánalise Seuil,Fev.,1972, pp3-4.

[vi] Sagan, Carl, O Mundo Infestado de Demónios, Colecção Ciência Aberta, Edição Gradiva.2ª Edição, 1998.

[vii] Lispector, Clarisse, Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Relógio d´Agua, 1999.