"Um espelho para a Medusa "

  • Carta 6ª ao Século XXI

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

 

                 

       

  Interdições do Olhar

[    Cartaz na fachada do "Teatro Nacional de S. João". Praça da Batalha. Porto. 2008 ]

© Levi Malho - Imagem digital

   

 


 

 

   Na sua sabedoria, a mitologia grega dava à terrível Medusa o poder de petrificar todo aquele que a fitasse nos olhos e, só por um engenhoso ardil de um escudo polido como um espelho, o herói Perseu a conseguiu matar. Em vez de a enfrentar de frente, obrigou-a a olhar-se no espelho, foi ela que ficou petrificada e pode ser morta. Apesar disso, a sua força era tal que Perseu colocou a sua cabeça num saco, pois os olhos não perderam o poder de transformar em pedra quem a fitasse.

   A Medusa pode ser o nosso maior inimigo, pois nem sempre podemos enfrentar os perigos e problemas de frente. Ofuscados pelo fascínio do Mal, em vez da sua revelação, podemos ficar seus prisioneiros. 

    A crise, com todo o Mal que espalha à sua roda, é um pouco a nossa Medusa que nos envolve e imobiliza. Se a olharmos de frente, não nos apercebemos como nos cercamos de erros e a nossa percepção fica contagiada por eles. Petrificados pelo seu olhar mortal, nem sequer podemos entender o que vemos.

    Admiramos a argúcia de La Rochefoucauld ao afirmar "Nem o sol nem a morte se podem olhar de frente" pois só demonstra a prudência de quem conheceu e aprendeu a temer o egoísmo e a crueldade humana.

    A velha Europa, na sua tradição, tem na Revolução Francesa um dogma que se aplica e ninguém repara que usufrui de muitos direitos que até considera naturais. Todavia a dicotomia do que será o natural e o jurídico nunca teve ponte que fosse segura.

   A natureza não dá dignidade ao ser humano, nem lhe fornece direitos. Nesta crise, muitas interrogações acerca do que considerávamos direitos adquiridos se colocam. Não estamos dispostos a abdicar de um progresso absurdo mas não se lhe colocam objectivos, além de reprodução de estruturas caducas e não temos coragem de olhar como vai o resto do mundo com milhões de excluídos.

   Encontramos sempre um contrato social entre o homem e a sociedade, quer esta seja opressora ou libertadora. Sem a sociedade o ser humano não existe. Nunca haverá um contrato justo nem perfeito. Nem Hobbes nem Rousseau acordaram nas razões da existência do contrato com toda a desigualdade social do lado do suíço que tanto influenciou os ideais franceses, nem do inglês com a crueldade do egoísmos que afirma a condenação do “homem a ser esse “o lobo do homem”. Mas ambos se curvam à carência de um contrato. De algum modo, o Leviatã assemelha-se à Medusa.

   O Poder é a força que não pode sofrer nem uma beliscadura, ferida ou fenda. E com todo o seu esplendor torna-se cada vez mais aterrador e monstruoso. Não há máscara ou plástica que oculte o vazio que está por traz da dissimulação. Mesmo se uma máscara caísse nem se notaria, pois a flexibilidade e horda de disfarces é apanágio do Poder e pelo Mal se chega ao vazio. A sua perversidade leva à carência de tudo, e nessa estranha plenitude, mais se nota que é perverso. Os tempos dourados do homem bom, os tempos em que a luta não existia entre as sociedades são um mito que se inventa para o remeter para o passado ou para o lançar para o futuro e nunca para o sentir minimamente presente.

    As utopias inventam-se para fugir do Mal ou para o denunciar. O risco é que se podem cumprir no seu lado mais negro que se denuncia mas também se profetiza. O grande medo das crises não deixa lutar porque não se é capaz de ver o perigo ou o Mal. A violência será sempre uma resposta ruidosa que atrairá mais ruído e menos Bem.

    Se bem que a História seja um mau recurso para reflectir sobre o presente, o Grande Medo acompanha a força da mudança e busca resistir-lhe. Mas a ascensão do Homem, no seu esforço de transcendência e de tornar o pão de cada dia um trabalho anónimo de progresso para o Bem onde as margens estreitam o rio e entramos num mundo onde seremos muito poucos diante da multidão da fome e da miséria geral. 

    O Grande Medo que tomou a França, nos primórdios da Revolução Francesa, em que os assaltos aos castelos e terras dos nobres e cartórios da província se seguiram à tomada da Bastilha, a 14 de Julho, e se iniciaram logo até ao mês seguinte, mostram como o povo não sabe ler os livros da História.

    Diante de uma luta que seria a sua libertação, reage contra si mesmo, porque os boatos mais terríveis de toda a ordem e vagas de pânico instalaram-se entre os pobres e espalhou-se pelo país. O historiador Georges Lefèbvre chamou-lhe “O grande medo de 1789 e parece repetir-se agora em escala mundial, nos nossos dias. Na província o alarme geral causava discursos como este:

 

 Um alarme geral se espalhou nesta região em virtude do boato de que um bando de salteadores vinha assaltar-nos para nos levarem os nossos bens, e pior do que isso, tirar as vidas das nossas mulheres, dos nossos filhos e a nós próprios.   

  À calma que devia seguir o desaparecimento do perigo seguiu-se uma desordem atroz (…) uma pilhagem inaudita.” “[1]

 

    Era a queda do feudalismo, reduzindo a cinzas os documentos, ferretes de um jugo injusto, mas também a violência que o medo do desconhecido trazia e arrastaria tantos inocentes por anos de revoltas.

    Já antes, Santo Agostinho escrevia a obra “A Cidade de Deus”, com os vândalos invasores às portas de Hipona, e a transposição da insegurança terrena para paz da Cidade Celeste. Era a reacção para salvaguardar os melhores valores do Espírito e toda a transformação assustadora que abalava os fracos alicerces do Império Romano em derrocada.

  Ainda na Idade Média, em 1358, a “Jacquerie”, mostrara, por breve e terrível revolta dos camponeses, os prelúdios de uma consciência da injustiça, da opressão dos pobres e das crises contraditórias do feudalismo. O lema “O nosso inimigo é o nosso senhor” revela o humanismo latente que apenas se anunciaria pelo lado mais negro do Mal, os ferozes ataques dos camponeses, seguidos da repressão de que foram alvo imediato. Os “lobos”, gente que nada tinha a perder, em bandos de salteadores cruéis, aterrorizavam as populações e os castelos que se viam à mercê dos bandidos, em quem se tornaram os desafortunados camponeses vistos quase como animais pelos seus senhores.

    A Revolução Francesa é bem a afirmação teórica dos direitos humanos. Mas na prática a realidade é sempre bem outra. 

    Agora o Grande Medo é a nossa peste que contamina tudo. Crescem receios que transformam o Outro em perigo latente. O medo por causa das consequências da revolução cientifica, dos povos que emergem na cena mundial, da inaptidão da democracia para travar a corrupção, a crescente intranquilidade no quotidiano instalam um novo Grande Medo com a face multifacetada da crise a esconder o Mal que nos devora. A nova era desafia-nos.

   Mas não podemos lutar, se estivermos no círculo devastado pela Medusa. Estaríamos petrificados e seus prisioneiros. As franjas do sistema demonstram como ele se torna cada vez menor em proporção com tudo o que é rejeitado.

     Ao acordar para aceder à condição humana, vemos uma tal imensidade de seres que, só pensado neles e na privação dos seus direitos, o nosso dever já se ergue. Hoje, não se trata de alcançar direitos mas muito mais de preparar deveres. Dizia Madre Teresa de Calcutá, com a sua humildade e sentido do que é ser justo, que “o dever é muito pessoal, advém da necessidade de entrar em acção e não da necessidade de insistir com os outros para que o cumpram”. A hora de agir é nossa e do aparecer é alheio, no espaço de mudança que começa a existir em nós, na mensagem para o outro, no som que faz o silencio dos que trabalham nas beiras do caudaloso rio da História, porque, na cena da Vida, a Medusa ainda tem cabeça firme sobre os ombros.

 

 


 

NOTAS:

[1 ] -  Freitas, Gustavo,  900 textos e documentos de História, Lisboa, Plátano, s/d, v. III.”O Grande Medo do Delfinado”.