" Não sou daqui"

  • Poemas

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

 

Forever Away

[ © Porto, Campo Alegre, 2005. Variação sobre  flôr de castanheiro-da-índia. ]

[ © Foto digital tratada. Levi Malho ]

 

 


 

       NÃO SOU DAQUI

 

 

 

 

 

           Perguntas

 

     Minha ilha fica no Oriente

mas quantos Orientes há no Universo?

     Minha ilha é cheia de árvores

         e palmeiras

Mas quantas árvores há ainda?

   Quantas ilhas são minhas?

    E afinal quem sou eu?

 

 

 

 

1.

 

Um poema deve ser

Como uma flor

Vale pouco, quase nada

Mas toca toda a casa

De perfume

E guarda-se o poema

Como se guarda uma rosa...

Dos espinhos poucos sabem

Só os jardineiros

Que os cortaram pelos caminhos.

 

 

 

2.

 

Tenho um melro negro

Visitante certo das manhãs

Brilham suas penas ao sol

Espero por ele

Como esperaria um mensageiro

Os mensageiros não sabem

Como brilham ao sol

 Mesmo vestidos de negro

Como são esperados

Todas as manhãs.

 

 

3.

 

Um sopro de brisa desce

No canto novo dos pássaros

Tudo está prometido

Se estender a mão

O ar responde

Respirar é novo e puro

Tudo podia começar

Como o dia

Tudo podia ser simples

Como o canto da ave

Mas cai uma folha

E de repente faz frio

 

 

 

 

4.

 

Resplandece o dia como um vestido

Novo e verde de uma rapariga

Resplandece o brilho do sol

O mar, a serenidade dos campos

Como uma rapariga que se mira

Num espelho

Prepara-se para ir para a janela

Ou dar um passeio na alegria

De resplandecer um instante

Da sua juventude

O dia tem sempre um vestido novo

E pode ser resplandecente

O que os olhos vêem só o coração

Consente

 

 


 

O GRANDE RIO

 

Com a concha das minhas mãos

Pedi água de matar a sede

Ao ribeirinho

E depois ele perguntou-me

Muito baixinho:

    -          Por aqui irei chegar ao mar?

O rio era tão grande e largo

Que da margem gritei

- Deixas-me passar?

Mas o grande rio não me ouviu

Nem me atendeu

Era forte e belo

Não ia perder tempo

Com uma criatura como eu.

 

 


COMO CANTA O GRILO

 

O grilo veio cantar-me

A noite

E eu não soube entender

Essa pobre imitação de estrelas

Há palavras tão negras

Tendo dentro tanta luz

O grilo veio cantar-me de novo

A sua pobre canção de verão

Também ele não sabe distinguir

O inverno da sua estação

 

 


 

 

A VOZ DO PLÁTANO

 

- Prende-me aqui a raiz!

Diz o plátano sacudindo as folhas

E solta-as como se fossem longos cabelos

Ou grades da sua prisão

Acabado o verão

Sem folhas, tronco nu, sem sombras

O plátano diz

----          Prende-me a raiz

E sente-se contente

Da sua força

Felizes os anjos que nada disseram

E voaram

Felizes os dias que voam

E nada dizem

Aprendem muito devagar

Os homens e os plátanos.

 

 


 

LIÇÕES

 

Tanto se aprende

Com quem não quer ensinar

Mas o seu querer nada vale

Na ordem misteriosa da vida

As lições mais ricas

São as mais dolorosas e terríveis

Mas quem não quer ensinar

Também aprende

A estagnar na sua concha

Lento como o caracol

Pode ser o tempo

Nada sabe da pressa da vida

Mas não há hora de lição perdida.

 

 


SILÊNCIOS

 

Sento-me muito quieta

Sobre as conversas fúteis

Como se pairasse docemente

Sobre nuvens

Ou num mar de pequenas ondas

A sombra do silêncio

É como uma redoma

Contra tempestades, vagas e marés

Milénios de conversas fúteis

Todas boas e inúteis

Como eu aqui sentada

Tão quieta e muda

A contemplar as montanhas do passado

Lá onde cresceram as árvores

Houve fadas e gigantes bons

Aqui... tudo é pequeno e humilde

Ao contrário do grande rio

Que corre veloz ao encontro da foz

E há muito se esqueceu da nascente

Eu busco devagar, mansa e humildemente

Uma nascente

Por trás das conversas fúteis...

 

 


 ARCANOS

 

A tarde cai como a pétala da flor

Ninguém pode segurar a água

Sem se molhar em vão

Há tanta maravilha na pétala

Como na água ou na mão

Mas cada coisa tem o seu tempo

Tudo está no seu lugar

Algures tudo está escrito

 

 


NÃO É LUZ NEM SOL

 

É transparência de um dia lúcido

Irreal, feito feitiço, cobra, pomba

Bichinho mais prudente

Não é luz nem sol

É muito mais do que isso

É a força louca de raspar silêncios

É a força de vencer o medo incolor

De vencer o bolor arrastado das falas

Do calor do suor de tanto trabalho em vão

Não é luz nem sol

É mais!

Feitiço, mosca leve

Dança sem ninguém dentro

Música sem relógio, orquestra,

Enorme instrumental

Coral, água, pedra ou mineral

Nada disso! É mais...

Aprende-se que não é luz nem sol

Aprende-se e o dia fica lúcido

Sem lógica mas lúcido

Sem frio nem calor só brilho claro

Ninguém por ora me lembre

Que está perto a maré

E há enforcamento!

Ninguém me venha falar de necessidades

Igualdades, fraternidades...

Igualdade é a grande monotonia

E fraternidade modo de dizer burocracia

Ninguém me venha falar de nada!

Ninguém me saiba falar de nada!

Seja, luz, seja sol, seja...

Aprenda calado

E, se não poder voar ainda

Como o milhafre, pássaro ou pardal

Pomba ou outro alado animal

Olhe a mosca! Ouça a dança

Inteira por dentro

E o milagre a acontecer a cada hora

 

 


 

MINHA É!

        Escreveu Gaspar Frutuoso nas suas Saudades da Terra e do Céu, que, quando os primeiros habitantes chegaram ao Ilhéu de Vila Franca do Campo, ouviram um enorme clamor dos demónios que gritavam na Ilha de S. Miguel – Minha é! Minha é! Por isso rezaram missa e só depois deixaram o ilhéu e dirigiram-se a terra.

 

 

 Esta é a ilha dos piratas

Da perna de pau

Da terra dos gatos e dos morganhos[i]

Dos homens de rosto de cão

Que nunca tiveram coração

E as mulheres de rabo de peixe

Que aprenderam as pragas

Que ficam nas bocas fechadas

Esta é a ilha que se achou

Perdida entre homens de má fé

Demónios chegam com a maré

E dizem. – Minha é

Terra onde os calouros são velhos alegres

E o pau é de água

As ribeiras são grandes e estão secas

As vilas são lagoas por fora

E tudo francas moradas

Esta é a ilha das pontas

Delgadas madrugadas e toiros mansos

Calçadas de má cara

E rochas negas e quebradas

Esta é!

A ilha do Oriente até achada

Uma pedreira de terra fria

Algarvia!

Esta é a ilha dos piratas

Da perna de pau

Chã da alegria, pico de El rei

Grotas fundas sem amoras

Mosteiros negros e portos

Formosos

Tudo terras do demo

Onde se aprende a roer carrilhos

De fome e angústias de fé

Por toda a maré sem lei

Tudo

Piratas, ciganas, judias

Mulatas, degredos, segredos

Ruas direitas bem tortas

Aguas retortas e medos medonhos

Tudo por linhas tortas

Aqui é ilha do demo

Valha-nos o Cristo de todos os milagres

Esta é a ilha que o Diabo

Nunca esqueceu

E de noite ronda

O que é bem seu

Terras do demo e sua lei

Essas são as terras da ilha que eu sei

Novelão azul, caiota, maracujá

Só o chá se bebe por cá

Búzio no regaço nunca há

Telhado de vidros isso demais há

Senhora da guia! Da estrela e dos remédios

Senhora da piedade e da agonia a qualquer hora

Nomes de barco em ruas de freguesias

Terras de furnas, ginetes e mil pontes

Nomes, nomes, nomes...

Terras de pobres anjos, demos e meninos

Tudo há...

Piratas em terra quantos são?

E por cima o céu ao Deus dará...

 


NOTAS

[i] Morganho designa um ratinho e este vocábulo açoriano foi levado para o Brasil onde também é usado.