" Aldeia global

  • De Atenas a Cabul

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

 

              

       

  Depois das fronteiras

[    Visão de Praga num dia de Verão. Praga. República Checa. 2005 ]

© Levi Malho - Imagem digital

      

 


 

 

    Que terá ficado pelo caminho labiríntico percorrido pela Humanidade? Quando Spengler (1918) rejeita a ideia de que "não há humanidade velha", coloca, no âmago da questão, a relatividade das culturas e a noção de história universal que tem sido estudada como se tudo se centrasse sempre à roda do Mediterrâneo.

   Se bem que, com o rancor próprio de avós que se sentem rejeitados, a Europa tem os olhos postos nos seus netos espalhados no continente americano com os erros ou vitórias dos EUA, e os modelos de vida nas restantes regiões. O que de novo se aceita, no velho continente europeu, traz a marca do pragmatismo, da alegria de viver, dos valores religiosos, políticos e modelos económicos que nasceram do lado de cá.

   A sombra de um passado, que se insiste em glorificar, parece que demonstra medo do futuro e da mudança.

    Por não ter mais referências do que a sua história, o pensamento europeu expressa-se como se, do outro lado do mundo, as imensidões da Ásia e da Africa nem existissem, ou influenciassem como sempre aconteceu.  O paradigma em que o pensamento ocidental assenta é incapaz de aceder ao pensamento índio, russo, chinês ou indiano como acontecia no passado aos antigos gregos com os restantes povos a quem chamavam bárbaros. Traduzimos Aristóteles para o nosso tempo, assim como a palavra de São Paulo, sem referenciar o que de circunstancial e morto por lá já se encontra. É muito arriscado ressuscitar os mortos sem saber depois como lidar com eles.

   A noção de cidadania que colocamos no pensamento antigo, em vez de se fixar aí, refere-se a um cidadão que mais parece modelado pela Revolução Francesa. Os deveres sagrados que um grego ou romano tinham para com a sua cidade, retiravam-lhe até a própria noção de liberdade. Não vamos sequer referir os conceitos de igualdade ou fraternidade.

   Construímos o passado num imaginário que Fustel de Coulanges em "A Cidade Antiga" laboriosamente analisou mas que em nada correspondia aos nossos erros. A realidade veio mostrar que estamos ainda olhar para um passado que não conhecemos.

   Optar pela tábua rasa e olhar para o "bom selvagem", tão europeu e bondoso, não dá resultados favoráveis. Também enaltecer povos ou civilizações que, por diversos motivos, só a meio do século XX, como aconteceu com China, despertaram do neolítico de nada adianta.

  Temos de ter mais benevolência para connosco nesta onda de pessimismo que se alastra. A cidadania que desejamos tem mais a ver com o futuro do que com o passado. Falamos em direitos que para o cidadão romano eram só deveres. Não é em vão que cognominamos esta nossa época de “Era dos direitos”. A sacralidade que tinha o Lar passou para a cidade e esta era sagrada. O cidadão tinha de lhe sacrificar tudo em nome da sagrada Pátria e do seu solo.

   Quando a torre da Babilónia cai, ou a Babel do consumo se constrói, para onde vai o espírito forte que deve ter o tal cidadão do mundo que dizemos querer ser?

    Vendo a queda do Império de Roma, Santo Agostinho escreveu mostra a cidadania do cristão que pertence à cidade celeste e não à cidade terrena. O cidadão terrestre distingue-se do outro pela intenção da sua acção, pois vive para o terreno e o celeste vive para o Eterno. Para ir mais além!

 

   Só há um meio de olhar o futuro. Com toda a esperança. A outra hipótese que resta é a do completo desânimo e pessimismo. A meia medida não dá coragem para dar um salto para uma “aldeia global[i], (1988), onde "muitos são chamados e poucos os escolhidos" pois iremos para lá sem saber quem somos nem o papel que temos a desempenhar.

  Com todos os seus preconceitos e racismo intolerante, acabamos por admirar os ingleses que, diante de uma situação nova, sempre têm uma frase a citar de Shakespeare. O mesmo não sabemos fazer com o nosso Camões e Fernando Pessoa aparece tardiamente em sonhos de um passado, mesclado de ironias excelentes sobre o presente mas nada saudáveis para alimentar espíritos jovens.

    Talvez o conceito de cidadania seja mais fácil para um português pela índole de viajante e mais ainda para um açoriano que tem o mar por estrada. Assumir uma identidade transnacional pode afectar o desinteresse pelo nossos valores ou então criar melhor consciência de identidade a partir desses mesmos valores transcendentes que dão uma raiz para poder arrostar o mundo trazendo a sua própria narrativa para o tecido da comunicação.

   As estruturas com que pensamos o mundo são raízes que não se podem remover. Assim pensamos o mundo e o valorizamos. Mas mudamos e esperamos que sempre para melhor. É muito divertido e benéfico ler um jornal com mais de um século a festejar o Ano Novo. Lá estão os medos e lamentos, crises e pessimismos, tal como nos sucede agora.

   Não há justiça, a vida é cruel, o egoísmo impera. Mas isso pode ser escrito em qualquer época.

 

  Os nossos gregos somos nós mesmos, com a sua democracia, o cidadão romano é a lei que temos, a Revolução Francesa é a nossa liberdade de expressão, de escrita, dos direitos que já consideramos banais, mas que foram uma tão lenta conquista. Onde pomos o nosso Cristo Jesus?

   Claro que não pode ser na velha Galileia, nem nas ruínas que Santa Helena, mãe do imperador Constantino, (século IV) piedosamente descobriu. Jerusalém divide-se por três monoteísmos e é um exemplo dos nossos paradoxos como seres humanos. Roma e o Vaticano são pilares de prudência e avisos de bom senso.    Jesus não tinha bom senso nem o podemos atribuir ao Pai. O risco da demagogia espreita cada palavra, o medo coloca-se na madrugada e o sonho transforma-se em pesadelo.

   De algo porém temos a certeza. Apesar desses perigos do bom senso nos tornar tolos, de arriscarmos a dizer excessos ou de ter pesadelos ao acordar, o medo é mau conselheiro.

   Reparemos na inocente segurança de qualquer criança que acredita plenamente nos seus pais, mesmo que eles o não mereçam. Jesus acreditou no homem assim como se fosse uma criança.

  Dizem que " o mundo clama pelo salvador" mas Ele já veio, está entre nós. Os justos não dão nas vistas, nem fazem ruído como o Mal. Os bons continuam as suas tarefas, sem esperar por um elogio. Os heróis salvam vidas e morrem por causas nobres. Os generosos dão sem conta nem medida e não esperam ordens para continuar. Os magnânimos perdoam e esquecem sem ressentimento.

   Na cidade antiga, escravos eram torturados, crianças eram criadas para prostíbulos, as mulheres não tinham direitos. Em Atenas foi proibido ensinar filosofia[ii]. Roma estendeu “a solidão em torno de si” pelo extermínio de povos, cidades e campos. São Paulo ainda escreve “O homem não foi tirado da mulher, mas a mulher do homem; nem o homem foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem.”1. Cor. 11.8.
     No celebrado Renascimento, a mulher perdeu estatutos, que antes ocupara nas ditas "trevas medievais", e o Código de Napoleão (1804) colocou-a sob a "protecção" do pai e do marido. O nosso eficaz historiador Oliveira Martins discorria em 1883 deste modo acerca das mulheres “atacadas pelo desvario do individualismo, pretendem conquistar o que chamam a sua emancipação: saírem do poder do marido e representarem na sociedade um papel igual ao dos homens (…) sem esposo, sem filhos, a mulher fica um pária. É esse o ideal para onde vamos?
[iii].

 

  O bom selvagem mata e come um pobre qualquer que apanhe, sem olhar a credos ou a contratos sociais.  

   Teilhard de Chardin, exilado para os confins da Ásia, escrevia o Hino ao Universo e na fidelidade e obediência à Igreja e à sua Ordem. Profeticamente na sua visão mística redigia: " É possível (…) que eu me ache quase o único da minha espécie? - o único a ter visto?[iv]

    Não sabemos onde está a porta nem quando passamos da cidade à aldeia. Também no futuro as redes planetárias criarão possibilidades de nos dar novas percepções inimagináveis. Se a nova cidadania se estabelecer, o tempo semanal não terá sentido, o dia ou a noite serão um só e poderemos estar em toda a parte e em parte alguma.

   Convergimos para uma aldeia global onde pode circular o menino de Atenas e o de Cabul, o de Jerusalém e o de Bóston. O que os unirá mais?

  O jogo! Depois descobrirão as regras, a necessidade dos valores e, de súbito, entenderão a urgência do respeito e o amor à Verdade. Sempre entre eles, Jesus repetirá o seu convite para a subida da espiritualidade e convergência cada vez maior até que tudo seja Um.  

 

 


 

NOTAS:

 

[i] MCLUHAN, M.POWERS, La Aldeãa global, Edição Edisa, col. El Mamífero Parlante, Barcelona, 1995.

[ii] FOUSTEL DE COULANGES, A Cidade Antiga, Estudo sobre o Culto, o Direito e  Instituições da Grécia e de Roma. Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1919,2ª Edição, Volume I, p.402

[iii] OLIVERIA MARTINS, Guilherme, Quadro das Instituições Primitivas, Guimarães & Cª. Editores, Obras Completas, Lisboa, 1953, 5ª. Edição, pp. 82-83.

[iv] CUÉNOT, Claude, Aventura e visão de Teilhard de Chardin, Livraria Morais Editora, Col. Convergências, n.8, Lisboa, 1966, p. 71.