" A era dos Almanaques"

  • Problemas velhos e novos

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2009 )

 

 

             

       

  Beleza dos Almanaques

[    Pormenor de azulejos Arte-Nova. Casa Comercial no Bolhão.Porto. 2008 ]

© Levi Malho - Imagem digital

      

 


 

Em tempos passados, a cultura chegava às ilhas na lentidão dos barcos e só bem mais tarde por aviões. Se em muita casa, algum livro anual se comprava, era o Almanaque do Camponês e o Almanaque Bertrand. Depois apareceu o Almanaque de Santo António mas sem o pitoresco de um, ou a cultura do outro, nem as mesmas finalidades.    
    Lidos até por crianças, mal algum lhes fariam, e o fino humor britânico era educativo, apresentavam muitos enigmas e problemas de complexa solução e também episódios anedóticos de tempos ainda mais antigos que a época e que causavam forte curiosidade pelo passado ou por cultura mais aprofundada que ali se esboçava como convite.

    Descobrimos que, o dinâmico coordenador do Almanaque Bertrand foi um General, Fernandes Costa, (1848-1920) poeta, ensaísta, historiador e linguista muito culto e até Membro da Academia das Ciências de Lisboa.

    Durante anos, estes livros reflectiram preocupações pedagógicas e muito bom gosto em toda a concepção gráfica. Os mais antigos revelavam forte influência do estilo da “ Arte Nova” com capas alusivas a mitos do Tempo, às estações e às horas, bem como profusão de desenhos nesse estilo que são sempre dignos de nota.

    Hoje, esses exemplares são uma raridade, obras muito sui generis, que marcam, na sua transformação, a própria mudança de mentalidades e contam o modo nostálgico de olhar cada ano com o que se imaginava para o futuro.

    Para nossa admiração, foi através da Internet que encontrámos notas sobre Fernandes Costa
[1], zeloso coordenador, anos a fio, desta obra, e que é referido por Marco Dias, no site da “Poesia Eterna”, espaço da lusofonia que pretende imortalizar nomes que podem cair no esquecimento. O seu esmero é tal que tornou acessível para os cegos a audições desses poemas.
    Há mais de cem anos atrás, o exemplar para 1900
[2], trazia um problema científico que muito intrigou os leitores. Fernandes Costa, assinalando esse facto, retoma, no Almanaque para 1911, o assunto. Refere-se que o livro se esgotara pelo interesse que criara à sua volta e o tornara, raríssimo e, por isso mesmo, valioso em extremo. Por tais razões, o artigo foi reproduzido, se bem que sem nome do autor.
       Intitula-se “Onde é que o dia muda de nome?” e aborda o problema de relacionar uma data com os locais do mundo inteiro. Partindo de um exemplo, de quando em Paris é meia-noite e um minuto de um Sábado [de Setembro], as deduções revelam-se desconcertantes.

  “Caminhando para Leste, acharemos que em Viena de Áustria, será uma hora da manhã (…) Se, por outro lado, calcularmos caminhando para Oeste, acharemos que são 10 horas da noite, da véspera, 30 de Setembro” .
   

Levanta-se o paradoxo de num lugar ser Sexta feira e Sábado ao mesmo tempo e, se acaso, uma linha imaginária separasse o tempo no espaço, podia ser Sábado de um lado da rua e do outro lado ainda ser Sexta feira!
         Sabemos que, antigamente, cada povo tinha o seu calendário e datas próprias, sem qualquer impedimento, pois não precisavam de se entenderem entre si nem se importavam uns com os outros. Na velha China, os problemas com o calendário e suas datas, envolveram grandes matemáticos e, na sua elaboração, colaboraram sábios jesuítas. Na senda do matemático e homem das ciências, Mateus Ricci (1552-1610), os jesuítas ganharam a confiança do Imperador e a eles se deve, em parte, o calendário chinês.

    Se foram os portugueses os primeiros a dar volta ao Globo, logo outros povos os seguiram. Os sarilhos logo surgiram como se escreve em 1900:

 “Como cada nação conservou, a bordo dos seus navios, a sua maneira de contar, resultou dai que, no meridiano antípoda, os habitantes da ilha Formosa, receberam Segunda-Feira, no momento em que as Marianas, colónia espanhola, recebiam Domingo. Existe a linha de demarcação das datas. Não segue exactamente o meridiano de 180 graus, contorna as ilhas Marianas e as Carolinas por Oeste, para ir passar a leste das Novas Hébridas e da Nova Caledónia. Na prática, o que é importante, é esta linha não atravessar nenhum ponto habitado: é inteiramente oceânica. Quando os navios a atravessam, dobram o dia; repetem a mesma data n caderno de bordo, se navegam de Oeste e, pelo contrário, saltam um dia se navegam no outro sentido. No primeiro caso, os marinheiros recebem mais um dia de paga; no segundo caso; um dia menos. "

 

   O que fazia a perplexidade dos nossos avós, é agora a realidade que vivemos. Podemos mesmo falar de uma deslocação para fora do tempo cronológico e ficarmos apenas no espaço virtual onde o tempo toma uma dimensão diferente. Em primeiro lugar, através do telefone, depois pela interacção das teleconferências ou outros meios virtuais utilizados por um simples computador, podemos estar em contacto simultâneo com pessoas de vários locais do planeta, sem dias da semana nem horas que se esfumam nesse novo espaço. Por isso, ainda é mais curioso o que o artigo, nesse longínquo ano de 1900, afirma:

   “Mas se, então, no estão actual das coisas, ninguém sabe onde começa Segunda-feira e onde acaba Domingo, como sucede que ninguém dê fé de tal ignorância, e que pareça entenderem-se todos tão bem sobre o globo inteiro, quaisquer que sejam as viagens que se façam, quaisquer que sejam mesmo os telegramas que se cruzam de todos os lados à superfície da Terra como a rede nervosa da humanidade operante e pensante?

Se todos se entendem tão bem, é porque, no fim de contas, se não entendem absolutamente.

 

    Repare-se na alusão à “rede nervosa da humanidade” que hoje são essas camadas de espírito a circular, cada vez mais velozes através dos meios de comunicação, numa crescente globalização. A cada segundo aumenta o número já enorme de pessoas a entrar nessa comunidade “operante e pensante” de que falava este velho artigo.
     Em relação a tudo o que existiu antes, a grande mudança destas ligações é a interactividade que transforma os utilizadores em presenças virtuais. Enquanto nos outros meios de comunicação, livros, jornais, TV, eram consumidos passivamente, agora as pessoas são activas e ligadas, para além dos seus tempos cronológicos, num novo espaço. O entendimento comum era posto em causa nessa altura, e agora também suspeitamos não existir.

    Uma nova ética já se exige, quando se diferencia os “hackers”, como é exemplo Jimmy Wales, e a promoção da cultura através da Wikipédia, 2001, e usam esses meios informáticos de modo positivo. Do outro lado, os “crackers”, vândalos e tantos outros, não respeitam a ética ou usam de modo egoísta ou perverso esses meios.

       O sonho de uma civilização global é bem antigo com unidade em interesses e valores:  

  Imaginemos, por um momento, que em vez de ser entrecortado por oceanos, desertos, países incultos e selvagens, povoações bárbaros, o nosso pequeno planeta é todo coberto por uma população homogénea, civilizada, falando a mesma língua, ocupado nos mesmos interesses, intelectuais ou materiais. Pois bem! Nessa hipótese, seriam impossível saber em que dia se estava, a não ser por uma lei especial do governo da Republica terrestre!

 

    O apelo à lei surge sempre numa sociedade. Agora que tanto se luta pelos direitos humanos, bom seria haver coragem de ver também a necessidade de deveres. Se, ao longo da História, a cidadania foi demasiadamente uma submissão revestida de sagrado para com a Polis – cidade – ; não podemos querer que a reivindicação de direitos se transforme num caótico individualismo unido por um Estado só para assegurar exigências cada vez maiores. Chegando ao extremo oposto, o Estado parece ter só deveres, o sagrado já não existe, nem na cidade nem em lado algum. O filósofo e sociólogo, Slavoj Zizek (1948-)  é muito controverso nas suas afirmações, mas não deixa de ter razão quando avisa que provavelmente esses direitos humanos estão a ter um “rosto demasiado europeu”. A globalização não pode dar direito de exclusão dos que não pensam pelos nossos parâmetros. Por outro lado, há o risco de uma maioria democrática não só nos obrigar a seguir o chefe, mas também a amá-lo. “2000, Tu Puedes  - sobre el superego pós-moderno[3].

O perigo da sociedade, em que o Poder de uma democracia tirânica é excessivamente forte, pode ser a imposição de sonhar com coisas que não nos fazem felizes, mas que nos constrangem a querer.
    Ainda pior será se esta sociedade nos criar um inconsciente em que o dever - super ego - nos obriga a nos sentirmos felizes por uma “lei” do colectivo inconsciente. Depois seremos terrivelmente infelizes porque somos incapazes de ser felizes dessa forma hipócrita do “politicamente” correcto”. 

  

 


 

NOTAS:

 

[1] http://br.geocities.com/poesiaeterna/poetas/fernandescosta.htm

[2] Almanaque Bertrand, Coordenação de Fernandes Costa, Lisboa, pp. 45-47.

[3] Zizek, Slavoj, Tu Puedes, sobre el superego posmoderno.

Extraído de LRB, Vol.21 N. 6, 18 de marzo de 1999 Traducción para Antroposmoderno-