" Hegel e o teatro do Mundo"
Carta 3ª ao Século XXI
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )
Força do Destino
[ Porta e batente. Rua de Florença. Itália. 2008 ]
© Levi Malho - Imagem digital
- As metamorfoses dos labirintos
Decididamente, as portas à estabilidade fecharam-se com fragor e, se bem que sem pompa, arrastam toda a circunstância. A velocidade da mudança, em todos os quadrantes, anuncia-se num crescendo assustador. Tem como selo, que a distingue de tudo o mais, o evolucionismo. Está bem presente, quer o pensemos de modo filosófico, com Hegel, com cientistas e seguidores de Darwin, ou com os visionários que apenas esboçam traços gerais da evolução tal como Teilhard de Chardin. Este, vivendo entre a ciência, a teologia e a filosofia pensava que não havia meio termo nesta convulsão há tanto anunciada, ou assumimos toda a esperança, ou todo o desespero.
Isso é tão evidente que nos apercebemos, mesmo contrariados, fascinados ou aterrados, que entramos num estranho labirinto que já nem Teilhard visionou, pois seremos a primeira "civilização do Gene", uma era de tecnologia e globalização cinzenta vagamente informada por potentes medias e outros poderes menos visíveis.
O papel do biólogo do futuro passará a ter uma visibilidade social como nunca antes teve. Gros, sendo escritor e biólogo, alerta para os perigos que tal exposição social levanta e em que as ideologias mortíferas e os critérios de pesquisa científica se tornam num desafio assustador. O próprio Gros manifesta apreensão diante de um repto científico que atinge dimensões globais e já causadoras de metamorfoses do mundo que conhecíamos.
Para o grande público, o que é real conhecimento mistura-se com informações dispersas e vagas, boatos e profecias, entre a ciência, a superstição e o imaginário. A constatação de mudanças no quotidiano a cada passo é tão alarmante como assombrosa e todo esse conjunto que chega do futuro obriga a despertar para uma era de perplexidades, de descrédito ou de forte pessimismo.
Raro será quem hoje se atreve a ser optimista se olhar para o presente da sociedade e o seu futuro imediato. Nem por isso se pode deixar de estar atento e buscar alguma preparação. Para além da técnica, toda a ética é bem vinda, toda a axiologia é premente e toda a força moral indispensável.
Não há possibilidade de nenhum ser humano deixar de ser afectado pelo novo paradigma. Na construção deste arquétipo ficará de fora não o que se pensava antes mas sim o modo de pensar. Entende-se muito bem que todas as pessoas podem pensar sobre o mesmo assunto, mas temos de admitir que não pensarão com a mesma perspectiva .
Possivelmente, as práticas políticas, económicas e particulares não são tão obscuras que não deixam de denunciar os interesses ocultos que nada têm de altruístas. As comunidades científicas, com todos os seus tentáculos que atingem os povos, as linguagens, os hábitos e o quotidiano, nem sempre trabalham pacificamente. Só com conceitos e linguagens comuns aplicados à interpretação da realidade se poderá falar de uma mentalidade comum. Nas comunidades científicas nunca reinou qualquer paz. As polémicas e atritos entre colegas, grupos ou equipas são fortes e levantam conflitos que a sereníssima história das ciências não deixa passar na narrativa. Nem todos os paradigmas passam no teste. Os conflitos ficam nos obscuros corredores da história dos erros da ciência. O que se torna patente neste espantoso progresso é a evolução, quer se revele nas práticas vertiginosas, quer na alteração do nosso próprio modo de pensar.
O inelutável filósofo
Hegel foi o remate do idealismo alemão e, com o seu sistema, integra um todo tão perfeito e lógico que nada escapa à implacável coerência do seu racionalismo. Desafiar este pensador, ou mesmo discordar da sua argumentação, é tempo pedido pois, só negando a construção de qualquer sistema, tal como intentou Kierkegaard, o existencialista cristão para derrubar o invencível pensador.
Nascido em 1770, na cidade de Estugarda, no seio de uma abastada família, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, teve acesso fácil a sólidos estudos. O desinteresse pela sua biografia contrasta curiosamente com a notoriedade da sua obra grandiosa. Bom aluno e investigador incansável, era um homem metódico, paciente e voluntarioso que, nos seus primeiros estudos, se dedicou à Teologia e à História. Só depois se interessou pela Filosofia.
Afirmar a importância da dialéctica, sem insistir no movimento e no seu resultado, é ver o sistema só em esquema, ausente da sua substância. A obra é um todo, com uma unidade que pode parecer inexistente, mas a sua inspiração abarca. Se o génio de Hegel revela a dialéctica, é ela que lhe permite construir o sistema, com uma tal perfeição que o transforma no último filósofo sistemático.
Imaginou, como tantos outros, que a Revolução Francesa traria a liberdade a um mundo novo. Napoleão era visto como um salvador e libertador dos povos e Hegel sofreu forte decepção com a viragem dos seus fins políticos. Teria mesmo chegado a dizer, no meio do seu entusiasmo ao ver Bonaparte chegar com as suas tropas, que: "Vira o Espírito do mundo passar a cavalo".Segundo se escreveu acerca de outro admirador de Napoleão, Beethoven também o apreciava "como o arqui inimigo da realeza e o salvador do género humano". Este compositor dedicou-lhe a sua Terceira Sinfonia que escreveu com grande entusiasmo, porém, ao saber que o "pequeno corso" traíra os próprios princípios e se aclamara imperador, cheio de ira, rasgou a dedicatória. Substituiu o nome da sinfonia por "Heróica", porque era a de "Um homem cujo corpo ainda vivia, mas cuja alma já morrera".
Apesar dos problemas com as guerras napoleónicas e de múltiplos contratempos, Hegel chegou finalmente a Berlim onde se tornou famoso pelas suas aulas e a obra incomparável que deixou. As viagens que fez não foram muitas. Nunca saiu de um certo ambiente e contexto europeus. A sua morte, aquando de uma epidemia de cólera, em 1881, pôs fim à vida de um dos maiores pensadores de sempre que influenciou os acontecimentos sucedidos a milhões de pessoas num futuro que nunca viu e nem sequer possivelmente sonhou.
O seu lema, se assim podemos intitular, como tarefa para a filosofia era «pensar a vida». Embora seja um filósofo, qualquer politico, jurista, economista, sociólogo, ou quem quer que seja, que deseje entender melhor as teias do real com uma argumentação segura e profunda, não deixará de encontrar em Hegel um mestre que abre sempre amplos horizontes.
A acusação de dogmatismo justifica-se, em parte, pela dedução que encerra todo o real num racional sem deixar nenhuma parcela da realidade por estudar em termos evolutivos.
Nas obras de Hegel, pela sua densidade, os textos têm de ser lidos pelo que diz e pelo que não diz mas também que se pressupõe que lá esteja, pela propriedade rigorosa da linguagem e da profundidade das frases polissémicas. Ao atingir um determinado ponto da leitura da sua obra, é-se impelido ao seu aprofundamento para mais e melhor entender e não perder o sentido do que já se conhece. O fio da teia não se quebra e o sistema é, ao mesmo tempo, fechado e aberto, numa espiral evolutiva a realizar-se na História que tudo envolve.
É perfeitamente natural que o filósofo, ao ser interpelado pelos seus alunos ou amigos, acerca de dúvidas das suas aulas, respondesse apenas: "Vá ler os meus livros".
A aparente insensibilidade e o desinteresse pelos que assim o interrogavam, têm a única resposta lógica possível, porque o particular exige a relação com o todo. Sem contextualização no sistema e com reduções ou simplificações, o seu pensamento não é fiel ao que pretendia.
Ao repelir o indivíduo, é a evolução da Ideia que coloca em seu lugar e o que interessa na Arte, na Religião e no Direito não é o homem, mas sim o círculo desse "saber absoluto" e a obra realizada. O Universal precisa do individual para realiza-se pela mediação, mas o subjectivo eleva-se ao objectivo com o raciocínio que é a forma da partilha do universal. É, a cada passo, a vitória da Razão.
O abstracto, no sentido hegeliano, serve para uma "falsa" separação da parte do todo. Só pela necessidade da argumentação se realiza a separação. A partilha é uma necessidade do uso da razão no ser humano, mas não dela própria. No devir da História, a actividade nunca se interrompe pois é o próprio movimento heracliticamente falando desse rio em que nos movemos.
Filosofia sem código histórico
Considerado por Châtelet, com todas as reservas das comparações, como o "nosso Platão", (…) Hegel não é simplesmente a ocasião de Kierkegaard se lamentar, de Marx realizar, de Nietzsche recusar: define um horizonte, uma linguagem, um código no seio do qual nos encontramos ainda hoje. É aquele que delimita – ideológica ou cientificamente, positiva ou negativamente – as possibilidades teóricas da teoria.".
A vida é a forma inicial do aparecimento do espírito tal como o processo químico é o da natureza. Tudo evolui para a realização da Ideia pela consciência que se torna Espírito e ao qual nada pode ser alheio. Sendo a Natureza a alteridade, ou seja, o Espírito "fora de si", ou exteriorizado, a sua evolução é mais uma etapa necessária para permitir a existência da vida e preparar o movimento ou devir do mundo físico, orgânico e atingir maior transcendentalidade no homem.
Através da História dos povos, a Ideia toma consciência de si, mas logo os abandona. É a famosa metáfora da "astúcia da razão" inspirada no filósofo grego Anaximandro, que leva o homem a agir para os seus fins individuais, realizando, sem o saber, os fins universais. Neste sentido, não é o homem que se liberta, pois ele serve o devir da liberdade do Espírito, faz parte desse devir, mas só o Espírito continua em marcha. Tal como na natureza podem existir erros e aberrações que não lhes permitem subsistir, assim também só as paixões dos grandes homens é que os guiam para realizarem o progresso e a libertação do Espírito, mas os seus fins não são mais do que meios para a razão.
A História traça a evolução do Espírito, mas a lenta auto consciencialização da Humanidade só pode ser entendida como um todo que se vai transcendendo na evolução e acompanha o esforço para a realização da "epopeia do Espírito".
Quando escreve, diante dos sinais de liberdade e evolução do Espírito na História, Hegel parece tomado de um entusiasmo e optimismo que o levava a sonhar com uma Humanidade em crise, mas com uma nova e magnífica luz. A sua teleologia é uma evolução em que cada etapa preparar o aparecimento da Ideia em processo.
O exemplo da flor é dos mais conhecidos. Se uma flor fosse apenas e só flor, permaneceria eternamente flor, a flor nega-se ao transformar-se em fruto, mas é a sua nova manifestação do espírito.
A Natureza que Hegel observa, é o espírito visível ou adormecido, como diria também o filósofo Schelling. Necessária, mas não adequada, pois é o reino da contingência e não da liberdade. Porém, Hegel insiste na sua necessidade porque só no finito se manifesta o infinito. A Natureza é vista como "uma queda" mas também como uma etapa para uma realidade absolutamente racional. Este ponto demonstra como Hegel está para além do panteísmo pois na matéria seria menor a presença de Deus.
A causa de não ter dedicado maior atenção à filosofia da natureza é simples de contextualizar. A história das ciências da natureza não se encontrava, na época em que o filósofo escrevia, preparada para uma configuração num sistema com o rigor requerido.
Já a História, com as suas etapas de progresso, apresentava esse cenário exemplar em que Hegel inscreve o seu sistema. É assim que na História se demonstra a forma como a evolução mais se patenteia aos nossos olhos. O Espírito do Povo, sendo particular, tem de o abandonar. Sendo isso a tese hegeliana, chegamos a uma noção de História Universal que está sempre nos fins dos tempos. Em cada dia recomeça porém a marcha para prosseguir a caminhada da humanidade.
É à luz da evolução que se pode entender a frase:"Os povos felizes são as páginas em branco da História", pois nada menos está conforme com o progresso e a evolução como quando reina a paz e o homem não transforma o mundo. Por isso, temos, coerentemente que, para Hegel, a guerra seria o estado natural de um povo. O progresso e as transformações são muito mais profundas em épocas de crise.
Assim o fim da História é uma armadilha para o pensarmos com um qualquer objectivo alcançável pela nossa visão do futuro. O curso da teleologia aparece quando o Espírito se vai manifestando infinitamente em toda as suas formas finitas.
Evolução – Quem paga?
O Alfa e o Ómega da evolução centram-se na Ideia que é o Ser Absoluto, quer no início, quer no fim. A sua actualização é a possibilidade, entre todas as possíveis, que se efectiva na realidade a que se chama necessidade de acontecer e realiza o Absoluto. Só o Absoluto se transcendentaliza a si mesmo para ser "mais" porque é sempre o Absoluto no tempo. O tempo é só o devir desse Absoluto e a História traduz o que é a efectivação de «mais ser» num progresso que só se dá plenamente na Ideia, a mão que detém o plano da sua realização, essa astúcia sempre presente da razão.
Por traz das máscaras dos seres que se movimentam e pensam dirigir o curso dos factos históricos, está a Ideia a realizar-se num devir que pode parecer um agora estático para nós. Mas é importante recordar que a lógica e a ontologia são as duas faces do sistema hegeliano. Estudar ou tentar perceber uma sem a outra é ser infiel ao seu autor. Os factos sucedem-se no devir numa marcha em que toda a humanidade caminha e é a sua epopeia que conduzirá à realização da Teodiceia.
O plano está muito para além do poder do homem e é na evolução que se realiza.
O homem, como indivíduo, seria um mero instrumento do Espírito. É aí que se insurge o individualista Kierkegaard porque não aceita pensar a vida e olhar o passado. Pelo contrário, o indivíduo é único e a sua liberdade é a sua escolha, que o torna conivente com um tempo e um modo qualquer de existir, mesmo que não sejam plenamente os seus. Ainda assim, ninguém se liberta do seu lugar na marcha da humanidade, nem sequer escolhe onde vai na caminhada sem uma cedência dolorosa ou inconsciente.
Todos pagam o custo da evolução. A tragédia está em que poucos aceitam o seu lugar sem enlouquecerem ou conformarem-se. Felizmente, a maioria só dá por isso uma ou duas vezes na vida, se tanto.
A filosofia está diante de um impasse e de uma nova democratização. É o indivíduo que existe e a História deixa de ter sentido. Surge pois um novo público que quer avidamente conhecer o pensamento dos filósofos. São muitos os que escolhem esse conhecimento pelo lado errado. A biografia de um filósofo pode ser extremamente decepcionante porque as suas dores, tragédias e angústias são mudas. Nem sequer estão nos rodapés dos livros, nem nas ficções pseudo artísticas ou pseudo "qualquer-coisa" que tanta venda e lucro trazem a esse filão da escrita.
A curiosidade pelos mistérios, enigmas ou segredos de que vagamente se pressentem, já acabaram no que se refere aos "três filósofos da suspeita" e podem-se tornar todos suspeitos desde que se consiga construir uma intriga ou boa conspiração à sua roda.
Esse mesmo público quer captar a ideia que os textos ocultam mas sem aquele labor rigoroso e dedicado em que os verdadeiros filósofos se empenham toda a vida, e a si mesmos exigem, apesar de ser com o risco da própria existência, com todos os desentendimentos, solidão e isolamento que lhes advém de defenderem a verdade.
Ele filosofa, tu filosofas, eu filosofo….
Ironicamente como se sabe, parece também que o pior que pode acontecer a um filósofo é tornar-se célebre. Com a proliferação das obras de divulgação, para o grande público ávido de campos ignorados, os filósofos, pelo menos alguns, foram considerados vendáveis e rapidamente consumidos.
"Platão em cem páginas" ou "Antologia de Hegel para principiantes" são calamidades tão graves como dar a recém-nascidos um cozido à portuguesa ou uma pratada de feijoada à brasileira.
A apropriação de forma apressada e distorcida das ideias filosóficas de um pensador, mais afasta mais do que aproxima de quem quer perceber o infeliz filósofo, sem se dar ao trabalho de o estudar, com aquele rigor, seriedade e desprendimento que faz da filosofia uma arte e de cada aprendiz de filósofo um potencial artista.
Para mais, uma das maldições da filosofia é que, qualquer leitor com dois dedos de testa, por mais modesto ou mal preparado que se encontre, se considera capaz de entender a obra de qualquer filósofo. Depois, o mais certo é aborrecer-se e atribuir a culpa à obra, à loucura do sábio, ou à perda de tempo com coisas que tão inúteis lhe parecem. Ora, é certo, que o mesmo leitor muito hesitaria em se aventurar nos campos desconhecidos da neurologia, da genética, da matemática ou outra ciência.
Ter a arte das palavras na sombra do que está escrito é o anátema de um texto. Basta perder um só conceito, esquecer ou ignorar, por instantes que sejam, o seu contexto, logo se confunde a nuvem por Juno e se insiste em perceber a num nível de entendimento do entusiasmado leigo que, por saber abrir a porta, se confunde com o dono da casa.
"Sei ler, logo percebo isto!"Acontece que muitos são os cientistas, técnicos e peritos nos seus domínios, que invadem, sem receio ou escrúpulo algum, o campo sempre minado da filosofia, essa terra de ninguém em que todos parecem caber, mas com resultados desastrosos.
A noção de que nada é mais obscuro do que a simplicidade, ou o uso de conceitos sem conhecer a sua génese e delicadeza da aplicação certa para cada termo, redunda na incompreensão e adulteração do pensamento alegremente proclamado como compreendido e ainda melhor interpretado.
O abandono da filosofia sistemática e essa riqueza dos recomeços da aventura do pensar efectiva-se nesta nossa era, com um ser humano, individualista, ávido de saber, por vezes real, mas que também é um homem de hábitos consumistas, a quem a profundidade excessiva, o esforço e compromisso com a sua própria humanidade são afastados ou mesmo negados
Foi assim que a possível democratização da filosofia se tornou um risco porque a quantidade parece diluir a qualidade. E o tempo, avaro como sempre, atraiçoa a bela frase decorada com ternura e usada à sobremesa sem a presença da verdade que não frequenta nunca tais encontros e banquetes de encenação intelectual.
Todos somos convictamente intelectuais
A sociedade da "belle époque" com os seus mitos, os seus intelectuais e tiques era profundamente diferente da que surge na Europa após a segunda guerra e depois se estende por todo o Ocidente. O ano de 68 trazia no seu seio um tsunami só comparável em imensidão com a inconsciência de quem vive o seu quotidiano sem se dar conta de que tudo desaba em seu redor e se preocupa com a chuva que lhe estraga um piquenique, enquanto um dilúvio se prepara para o dia seguinte.
O evolucionismo hegeliano parece um crepúsculo mas, depois da noite, traz uma aurora incerta e uma luz completamente nova. O interesse de Hegel, devido ao contexto europeu, centrou-se em obras como "A razão na História" ou a "Fenomenologia do Espírito". Se não escreveu mais acerca da filosofia da natureza, foi pela simples razão das ciências não terem alcançado na sua época uma dimensão maior.
O desenvolvimento das ciências, pouco tempos após a sua morte, tomaram um incremento de tal ordem como nunca antes aconteceu. A história da humanidade prepara-se para uma mudança como jamais deve ter sucedido desde a pré-história.
Esta é a época histórica de maior celeridade de mudanças em todos os sentidos. O mundo torna-se cada vez mais pequeno e global e o que podia ser considerado apenas um simples facto local pode alterar todo o tecido da sociedade.
A avidez pelos resultados científicos da parte dos senhores detentores do poder, ou dos "bem pensantes sociais" não parou de crescer assombrosamente desde os fins do século XIX mas Hegel já não assistiu a isso. Ainda não era chegada a época em que se podia encontrar um filão, ou mina de ouro numa descoberta de laboratório ou de cátedra filosófica. Os antigos alquimistas nunca souberam o que era a pressão dos trabalhos de investigação ou a espionagem sofisticada dos bastidores do saber e de que tão pouco se quer falar.
Entende-se bem que o evolucionismo não depende de nenhum indivíduo, mas da Razão, numa marcha de todos os seres humanos, se apreendermos o que Hegel escrevia. O palco da História universal é o lugar onde se manifesta melhor o devir e o progresso da Ideia absoluta.
Consideramos que o sistema hegeliano se apresenta como um evolucionismo optimista na busca da realização do Espírito. O seu pessimismo é em relação ao indivíduo. As pessoas têm fins particulares e pelas suas paixões realizam um fim que ignoram. "Essa massa imensa de desejos, de interesses e de actividades, constitui ao instrumentos e os meios de que se serve o Espírito do Mundo (…) para atingir o seu fim." . Embora sem o saberem, os indivíduos inconscientemente realizam a marcha do Espírito e o seu processo com todas as revoluções que produzem.
À superfície de qualquer lago, as águas são límpidas e tudo parece sereno. Toda essa beleza e tranquilidade dependem da profundidade de uma multidão de vida que se esconde até ao lodo. Das margens, os intelectuais contemplam um falso lago convictos de estarem a contemplar a realidade.
A miopia invisível
O Espírito tem uma evolução e progresso que ninguém pode impor ou travar. Para Hegel, nenhum indivíduo podia ultrapassar os limites da consciência geral em que está mergulhado. Tudo o que forma a substância que é o Espírito de um povo num dado momento histórico é o que move os seres humanos. Cada povo tem um processo vivo a realizar o Espírito.
"Na história do mundo os povos não contam. Cada um, segundo o seu princípio, tem o seu momento culminante, o seu momento histórico. Depois parece deixar a cena para sempre. Não é de maneira fortuita que chega o seu fim".
Hegel, como filósofo, jamais admitiria ter qualquer valor ou sentido, quer o sebastianismo, quer o saudosismo. O historiador que foi poderia iludir-se, como lhe aconteceu com Napoleão, Lutero, o seu país, ou essa visão da liberdade histórica através de povos uns em detrimento de outros numa sucessão de formas. Mas para o astuto filósofo isso não acontece! Para ele não se coloca esperança alguma num salvador da pátria ou dos povos. Como exemplo, distante e fácil, apresenta o insucesso em terras de Espanha da aplicação de uma constituição mais livre e com mais progresso mas que não é aceite pelo povo nem tem resultados positivos. Isso justificar-se-ia porque o Espírito do Povo não se elevara ainda até essa etapa do Espírito e dessa nova liberdade e não a soube usar. O mesmo exemplo serviria para um qualquer país tribal a que se queira dar alguma libertação democrática com resultados catastróficos que muito vão para além do exemplo espanhol. Esse fatalismo é só para um povo, e num dado estádio de progresso, mas não para o progresso da Ideia desde a Eternidade. Assim se justifica que "Os indivíduos não impedem o que tem de acontecer". Os homens que podemos chamar heróis na História são mais um acidente, no todo em que se movem, do que uma causa pois só os podemos localizar no contexto global e estão em relação com a substância universal embora não estejam cientes disso.
A brevidade da nossa existência, por certo nos perturba a visão dos factos. Estamos tão perto da pré-história como distantes dos dias de ontem. A multiplicidade de acontecimentos confundirá sempre o historiador preocupado com a explicação de factos que, no contexto mundial e da temporalidade, perdem o significado que lhes é comummente reservado. Privilegiamos sempre algum evento, quantas vezes em detrimento da massa anónima mas palpitante de vida e de aspirações que são como a mola oculta a activar acontecimentos que talvez sejam apenas a ponta de muitos icebergues.
Se, como dizia Antero, "Hegel não tem razão" é no aspecto pouco assinalado, de ser apanhado na sua própria teia de historiador. O seu sistema filosófico ultrapassou-o. A evolução passou por ele como um sopro e logo a razão continuou a sua epopeia. O filósofo não errou, o erro atinge apenas o historiador, levado pelo seu contexto. Ninguém se liberta da sua época, por isso pôde ver a inadequação no caso da nova constituição em Espanha e no fluir do Espírito do Mundo, mas não o entendeu ultrapassando o esplendor da Reforma, na sua múltipla realidade. Era só mais um momento no devir do Absoluto no seio das suas contradições.
Quando Spengler escreveu, com toda a sua intensa visão acerca do declínio do Ocidente, não havia ainda, como sentimos hoje, aquela noção de progresso da Humanidade como um todo.
A noção tão comum de que o mundo se torna mesmo cada vez mais pequeno, não podia ser pensada em 1918, data em que Spengler publicou a primeira parte da sua obra. Reconhece-se que a globalização, que poderia ser em princípio tecnológica e científica, se traduz em construir também uma noção completamente nova do ser humano a nível planetário em que a interacção se faz mesmo que se tente contrariar com todas as nacionalizações, purezas da identidade dos povos ou outros movimentos contrários. Os contornos políticos, religiosos, éticos e todos os valores em geral que se podiam verificar em Spengler eram tão fortes que nos espanta como as distâncias e proximidades se diluem ou alteram.
O nosso vizinho pode ser alguém da Nova Zelândia e nem sabermos o nome de quem vive do outro lado da parede. Isto mostra como se altera e paradoxalmente se ignora uma globalização de seres humanos sujeitos a uma selecção cultural conjunta com a mudança de técnicas e aprendizagens desconhecidas que, por si sós, se nos impõem.
Se, para alguns pensadores, estamos a viver os últimos tempos do homem na Terra, para outros é ainda uma lenta saída da pré-história o que acontece. A globalização não retira a identidade dos países ou povos, mas dá realidade virtual a uma frase de Terêncio: "Sou homem e nada do que é humano me é estranho".
A visão teleológica de Hegel encerra "tudo" no seu sistema tão perfeito que não se pode derrotá-lo senão negando todos os sistemas. Todavia, nesta era de proximidade global, parece que se pode ainda realizar um sistema que concretize de forma planetária o sonho do filósofo.
Com todas as reservas que nos permite o risco da frase de Goya (1799), ao menos, como aviso, merece ser lembrado que: "O sonho da razão gera monstros".
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