" Baile de Máscaras"

  • Dos sorrisos e amabilidades

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

            

       

  Tudo é possível

[    Grupo escultórico. Jardim Central. Guimarães. 2007 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


 

 

 

     A origem da palavra comédia contraria um pouco o uso que hoje se lhe dá. Antigamente tanto podia tratar de peça de teatro com assuntos satíricos e cómicos, como dramáticos e tristes. Já hoje temos apenas a conotação com cómico ou humorístico. Contrariando essa forma de pensar acerca do conceito de comédia, na Itália a obra-prima de Dante, (1265-1321) “A Comédia” a que o autor não deu o título como é conhecida hoje, adjectivada como divina.
        Pela metáfora da viagem, o poeta debruça-se sobre todos os males que os homens causam durante a sua vida terrena e consequências que teriam após a morte. É uma fulgurante análise da Humanidade, examinada pelo lado dos crimes, erros e pecados, depois pelos pequenos delitos e por fim pela beatitude a que só os puros de coração, arrependidos e eleitos atingem junto com a glória de Deus. Muito do que a tradição e a religião cristã tomou como infernal, deriva de Dante e o horrível pode ser dantesco pela força que esse espantoso poema emanou.

   Com a centelha de luz que trouxe o Renascimento, o tipo de comédia que surgiu traz para o teatro uma liberdade inovadora.

Em imitação da vida, a “Commédia dell´Arte”,  satírica e realista, trazia o improviso e independência de argumento ou texto escrito pois o lema era o improviso.

    Sem argumento, trama ou enredo tudo era anónimo e dependente apenas da improvisação dos actores. A tónica era centrada nas figuras e no cenário, sendo toda a acção um constante improviso dos actores que tinham sempre os mesmos papeis e neles se tornavam exímios em satirizar, castigar modas e costumes, criticar situações sérias ou ridículas, sempre numa improvisação que permitia exercer uma função libertadora do meio social.

    O actor, sempre com o mesmo papel, adaptava-se às circunstâncias, tal como na vida cada um de nós o tem de fazer e aprende a representar se bem que sem ter noção de estar no palco, nem de merecer apupos ou aplausos. Assim, a função do actor era, se bem que exagerada e sem consequências, a mesma que a cada dia exercemos a representar na grande comédia do mundo. Todo o estudo dos actores não se baseava no enredo teatral, mas na personalidade que tinham de saber para convencer.

  Se, com Molière, as figuras tornaram-se mais definidas e com um argumento a seguir, os tipos ficaram como o avarento, o médico, o criado, os enamorados ou outros ainda recordados, como o Arlequim e a Columbina. O nosso Mestre Gil Vicente também iniciara a sua assombrosa obra com um improviso para celebrar o nascimento do príncipe João.

   Quando observamos a vida que nos rodeia, parece-nos que estamos diante da arte da comédia. Seria nestes termos que o inigualável Shakespeare teria escrito que afinal todos somos actores, pobres actores que aparecem no palco para logo desaparecerem e as histórias que contamos parecem ser ditas por um tolo, cheio de raiva e de fúria sem significar nada.

 

All the world's a stage,

And all the men and women merely players:

They have their exits and their entrances;

And one man in his time plays many parts[1]

 

   A sociologia veio demonstrar que sem papel social não somos nada nem existimos sociavelmente. O papel determina a função e o estatuto. Sabemos muito bem esta parte da lição. O problema começa quando reparamos que, na vida real, os papéis não são distribuídos de acordo com aptidões, saberes ou idoneidades subjectivas. Assim exerce-se a função por causa do papel, mas tal como em “A Commedia dell Arte”, não há, em parte alguma, o guião para orientar cada ser humano. É o improviso e a experiência que trazem o selo do palco da vida.
     Entre o papel, a função e o estatuto, o burocrata criou as mais variadas teorias, desde a legislação, formas politicamente correctas de convivência social às ciências de comunicação, psicologias e mil disfarces para burilar a mais complexa de todas as artes, a representação! Assim, as pessoas transformadas em papéis com manuais, códigos, regras, livros de auto ajuda, legislação, estatutos e mil recursos teóricos, cada vez mais se transformam em tipos com normas a que obedecem cegamente.

    Se eu não sou eu sem um papel, como o cumprir quando os papéis se enrolam como as cascas de cebola? Já ninguém sabe muito bem a quem deve respeito, obediência ou apupo.

    Afinal não se inventam papéis. Improvisa-se com mais ou menos habilidade e disfarce. O rosto cada vez mais se esconde por traz das máscaras que vendem sorrisos, amabilidades e bem-querer. A pessoa que no seu trabalho nos atende toda sorrisos e amabilidades, vira a cara ao passar por nós na rua. Aquele rosto responsável pelo Outro e de que o filósofo Lévinas falava, mas ironicamente também ocultava quando interpelado também se negava a qualquer gesto fraterno, pela mesma incapacidade geral de ser leal e fraterno com todos. Bem lá no fundo, sabemos inconscientemente ou não, que esta vida é uma comédia e que, quando as circunstâncias mudam quem nos acarinha também nos pode apunhalar pelas costas, quem nos despreza pode tornar-se muito amável. Assim o diga qualquer um de nós querem se punha no papel de sem abrigo ou de vencedor do euro milhões.

   Para quê pagar bilhete ao teatro se vivemos no palco? Basta um pouco de atenção para imaginarmos como seria infernal o nosso mundo de papéis, se essas máscaras caíssem.

 Infelizmente, o palco da vida é tudo o que temos e não acaba nunca. Ao menos, quando se tratava da “Commedia dell´Arte", vinha um actor ao palco e declarava: “
Palaudite, amici, commedi finita est.” Assim teria dito Beethoven ao morrer e antes dele o célebre Júlio César depois de ver quem o apunhalava e exclamar:

   --- Também tu, Brutus.

 


 

NOTAS:

[1] Shakespeare,  As You Like It 2/7)