" A invasão do Futuro"

  • Carta 2ª ao Século XXI

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

            

       

  Espírito do Vale

[    Vale glaciar do Zêzere. Serra da Estrela. 2001 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


 

     Três grandes marcos da história da humanidade: Hegel, o filósofo, Darwin o naturalista e Teilhard de Chardin, o cientista, pensador e visionário, parecem tão distantes e vindos de áreas tão desiguais que nada teriam em comum. Porém, todos têm um marcado cunho evolucionista. Tanto Hegel como Teilhard de Chardin apreendem o homem no cerne da evolução. Já Darwin coloca a evolução num processo global em que o homem aparece.
     
Com Hegel, “a tarefa da filosofia é pensar a vida”, sendo a História do passado a explicação metafísica do presente. Com Teilhard tal não se passa. É um visionário que pretende abrir as portas do futuro.

   
Como paleontólogo vai descer ao vale das investigações, onde Darwin encontrou a origem das espécies, revolucionou o método de pesquisas em paleontologia e participou na descoberta do “Sinantropos” na China, mas também sobe outra montanha bem mais alta e audaciosa a vislumbrar objectivos e esperança sem limites.

      
Entre a época de Hegel e Teilhard há toda a investigação científica que alterou a ordem da percepção do lugar do Homem no Universo e aí se situa a laboriosa pesquisa de Darwin. Curiosamente, devido à obra “A Origem das Espécies ", de 1859, embora ainda não se referisse claramente ao ser humano, daí em diante, impeliu à construção de um novo paradigma que revolucionou para sempre a mentalidade anterior.

    
Como cientista e pensador, Teilhard de Chardin alcança muito mais longe do que todos os anteriores, se bem que não tenha um sistema, nem se possa ler com o rigor de um teólogo, ou de um filósofo em que se tornou “malgré lui”.

  
  É bem estranho ver como a sua visão perpassa em tantos autores que não o citam, mas a marca da sua influência e dos caminhos que, como pioneiro, traçou estão inegavelmente presentes. Entre muitos, o pensador Edgar Morin será um dos seus “filhos” com toda a notoriedade e publicação em vida que Teilhard só pôde ter depois de morto.

   
A grande construção do novo paradigma científico, filosófico e cultural que desponta em vagas abruptas no século XXI deve muito ao labor destes três pensadores que bem podem complementar-se muito para além do que imaginaram.

   
Temos diante de nós o que nos parece ser a mais vertiginosa e incalculável revolução desde a pré-história. Reúnem-se em múltiplos processos de investigação que abalam fronteiras e expandem novos campos do conhecimento. Depressa parece que o sociólogo Mc Luhan (1911-1980) é ultrapassado pela própria tese. Se chamou a atenção para o modo como vemos o mundo, com a sua noção de “aldeia global” e formas de comunicação
[1] que já hoje se põem em crise.
   
Foi a partir da reflexão acerca do uso da palavra “crise” que procuramos aprofundar uma das ironias da História.

    Ao iniciar o estudo de um autor, deparamos logo com a afirmação acerca da época de crise em que viveu. Depois fomos ver outro e outro pensador. Estavam lá diversos temas a debater, mas a palavra crise também lá presidia Fomos ao passado mais distante e ao presente mais comum e o termo aparece sempre, e tanto se acentua para o pessimismo, como para o optimismo. Carência, ataque, perigo, escassez. Fomos ao Dicionário[2] que nos remete para a Grécia e elucida que é mais: “situação anormal e grave, situação aflitiva, momento grave, decisivo, perigoso, num negócio, II Situação de um governo cuja conservação encontra dificuldades muito graves”.
   
Esclarecidos e paradoxalmente divididos entre o que é normal e anormal, concluímos que não se pode escrever crise  sem uma notória generalização com perigo de deturpar ainda mais a interpretação das realidades.
  
Serve-nos de judiciosa consolação as belíssimas reflexões com que Dickens inicia a sua obra “A Tale of Two Cities”.

 
  O melhor e o pior dos tempos, a era da sabedoria e a era da loucura; a época da fé e a época da descrença, a era das luzes e a era das Trevas; a Primavera da esperança e o Inverno do desespero; tudo nos era prometido e tudo nos era recusado; elevávamo-nos até ao céu e voltávamos-lhe as costas
[3].

    Não nos pareceu que estivesse, como realmente estava, a falar do ano da graça de 1775, mas dos nossos dias com a longa fila de cientistas que temos e nunca foram tantos, a loucura do hedonismo, os satanismos demoníacos florescentes, as guerras prometidas e cumpridas na Terra e a descoberta de água em Marte, a esperança e o descontentamento unidos e de mãos dadas.
 
  A diferença entre estar ou não em crise parece-nos depender para onde aprendemos a olhar. Os factos históricos somos nós que os herdamos e transportamos. Por si nunca ganham sentido.

   
É por gostarmos muito do futuro em que nos tornamos, que reflectimos mais sobre o passado.
   
Entre o espanto e o medo, assistimos a descobertas e inventos que alteram o quotidiano, as mentalidades, todo o planeta sofre uma alteração que terá consequênciaa
gigantescas para a Humanidade. Nunca, como nos nossos dias, se tem de falar em Humanidade em vez de olhar para qualquer região privilegiada.
    
A ideologia evolucionista pode estar eivada de extrapolações indevidas ou fora de qualquer rigor, todavia rebentam por toda a parte manifestações do espírito cujas consequências descobrem abismos aterradores e cumes sublimes.  
  
 
A herança dos grandes pensadores nunca lhes é fiel, navega no curso de um devir carregado de casualidades e determinismos imponderáveis. O que fora o mundo até ao século XIX, com gerações e gerações de seres humanos que só lentamente evoluíam sempre com alguns traços de unidade e concepções estáveis, rompeu bruscamente todos esses limites e a Humanidade espreitou para novos céus e nova terra. Tal não significa que as mentalidades conseguissem acompanhar as “vagas de futuros” que as assolam e assimilassem esses novos mundos. O sentimento de crise e perplexidade, de limites e de inadaptação cresce, como se a Humanidade, ao acelerar assim as vagas de mudanças, mostra facetas como se fosse uma adolescente indecisa e entusiasmadas, cheia de interrogações, narcisismo e aquele misto de “tudo ou nada” que sente o ser humano numa fase em que é criança e adulto ao mesmo tempo, sem ser nunca uma coisa ou outra definidamente. A adolescência é cruel, terna e correr risco de dispersão, de fascínios contraditórios ou isolamento 
   Rebeldia e saudosismo, medo e audácia acompanham uma convergência global inevitável.

  
Se bem que a globalização foi sempre procurada pelos homens, agora toma dimensões e sentidos novos. Já no passado mais distante, a curiosidade ao ver um estrangeiro com o seu fardo de palavras diferentes para contar estranhas histórias e conhecimentos mirabolantes aliava-se às trocas de conhecimentos. Agora, o fenómeno toma grandezas completamente transformadoras das culturas.

    No passado, às estradas da romanização veio juntar-se bem mais tarde a mobilidade dos Jesuítas, com suas Casas estrategicamente espalhadas pelas setes partidas do mundo, e que criaram uma rede de extraordinária velocidade de comunicação por todo o mundo[4].
   
Para entrar na sua Companhia de Jesus, as qualidades intelectuais e a mobilidade de acção dos seguidores de Loyola eram fundamentais. Esta escolha era premeditada e tinha um objectivo religioso por trás do científico ou cultural.

  Até então, qualquer ordem religiosa que tinha um nível intelectual elevado estava num local fixo de ensino e se, pelo contrário, era itinerante, o nível de conhecimento não era essencial. As Casas dos Jesuítas alteravam tudo o que até então existia nas ordens religiosas, pois as ordens monásticas dos estudiosos estavam fixas em algum local e aquelas que se movimentavam não reuniam um alto saber. Agora, espalhando as Casas dos Jesuítas pelo mundo uma rede crescente da teia de cultura e poder enorme com uma mobilidade e velocidade espantosas em que transitavam notícias, dados científicos, boatos, informações, cartas ou objectos. Era mesmo uma comunicação deveras impressionante e que nunca antes se conseguira. Na China, os jesuítas que queriam chegar, através dos meios científicos e culturais, aos poderosos governantes, logo, de acordo com o seu método, isso implicava a escolha de sábios, matemáticos e astrónomos especializados, para terem forma de mostrar superioridade de poder cultural e espiritual no meio de uma civilização tão antiga como culta.

   
A extraordinária travessia por terra de toda a Ásia pelo nosso Bento de Góis
[5], cerca de 4 500 quilómetros cheios de mil perigos e peripécias, partindo de Goa, na Índia até chegar à China, foi, de algum modo, apagada por já se encontrar em Pequim, na corte do Imperador um outro jesuíta, o sábio, geógrafo, astrónomo e matemático, Mateus Ricci, (1552-1610). No fundo, chamar-se-ia hoje inculturação à sua obra evangelizadora, pelo respeito que mostrava pelas tradições e cultura chinesas e o modo como viveu “como chinês na China” conseguindo antecipar-se séculos com o seu espírito lúcido e diplomata. Se superou as dificuldades em cativar esse povo, não conseguiu a compreensão da sua própria Igreja pelo excesso de preocupações de rigor da Contra Reforma[6].
   
Por ironia da História, querendo apagar o possível perigo que Teilhard de Chardin representava para a ortodoxia da Igreja, foi também para o distante Império do Meio que este aventureiro do espírito foi enviado de França, em 1926, por obediência a ordens da Igreja. A rede de missionários que encontrou tornava a sua investigação científica mais profícua e foi em Pequim, durante a segunda guerra, que escreveu a sua principal obra: “Fenómeno Humano”.
    A globalização dera já uns primeiros passos, faltava dar o grande salto a que agora assistimos, deslumbrados e temerosos, diante do tsunami
de um futuro invasor.

 

 


NOTAS:

[1] http://www.mcluhan.ca/bibliography.phtml 08-08.08

[2] MACHADO, José Pedro, Dicionário da Língua Portuguesa, Coordenação de., Sociedade da Língua Portuguesa, Vol. II, p. 744, Lisboa, 1960.

[3] DICKENS, Charles, Duas Cidades, um Amor, Edição Romano Torres,  Col. Obras Escolhidas de Autores Escolhidos, nº. 53, Lisboa, 1960, p. 5.

[4] Leitão, Henrique, Comunicação 11.04.07, Cultura e Ciência dos Jesuítas entre a Europa e o Extremo – Oriente, proferida no Quarto Centenário da Morte de Bento de Góis em Vila Franca do Campo.

[5] SIMAS, Costa Melo, Lúcia,  BENTO  DE  GÓIS --- a paixão da Distância. http://www.geocities.com/Athens/Parthenon/7429/lucia-28-bento-goes.htm. 14.08.08.

[6] http://www.pime.org.br/mundoemissao/evanmatteo.htm 14.08.08.