" Nós já lá estamos"

  • Carta 1ª ao Século XXI

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

            

       

  Do que ainda se não vê!

[  Madrugada de chuva. Jardins do Campo  Alegre. Porto. 2008 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


 

  

                          

 

        Para o bem ou para o mal, as utopias realizam-se. Já vimos muitos dos seus resultados na prática. O futuro, que se punha muito distante, num horizonte que nem nos tocava, entra no dia-a-dia, confunde as gerações atónitas, altera hábitos seculares, revoluciona o sentido da moral e da própria religião.

     A passagem do milénio deu-se sem o “crash” dos computadores acontecesse, a “New Age”, avança com Reiki, crianças índigo, com os seus remédios, panaceias e “banhas de cobra” do pensamento positivo que afasta as energias negativas, nome suave para a antiga superstição do mau olhado. O imaginário colectivo povoa-se de seres saídos da ficção cientifica como se fossem reais e, ao nosso lado. A pobreza do fantástico é estupidificantes e tão elementar mentalmente quanto mais os efeitos especiais, enigmas e mistérios se elaboram. Pessoas, com estimada reputação social de qualquer quadrante, aceitam obras de valor duvidoso como se fossem bíblias, conselhos bem pagos de novos gurus e professores astrólogos e os infindáveis livros de auto-ajuda que se difundem a toda a velocidade. O lucro económico de tudo isto varia na razão inversa dos tristes resultados da simplificação e superficialidade do pensamento.

    Pensar pode parecer o mais simples e pessoal que temos e afinal ser uma amálgama de pensamentos alheios ou até ao que de mais perfeito e belo foi dado ao ser humano.

   A maior parte de nós, pouco saberá o que é mesmo a biologia molecular, mas reconhece os seus efeitos na revolução da fertilidade e reprodução humana, envelhecimento, pecuária, agricultura e consequências no mercado mundial.

    Eutanásia, interrupção da gravidez, eugenismo, comportamentos inconscientemente condicionados, fundamentalismos, ídolos e reformas ideológicas estão já por aí. A moda orientaliza-se e o Oriente capitaliza-se sem médio nem centro. De Buda parece só restar a gordura, de Gandhi, o Óscar de Hollywood e de Cristo, a ceia e as memórias da infância de Leonardo Da Vinci. Fotógrafo oficial de um cristianismo sem transcendência serve para turistificar massas crédulas e sedentas de novidades e fortes emoções.

 

      O gosto de “perder países, /ser outro constantemente/ por a alma não ter raízes/ de viver de ver somente ” banalizou Pessoa, escalpelizou o rebanho de japoneses e chineses que chegam, vêem e vão-se embora. Tudo já foi fotografado, só a alma fugiu, como Daphne de Apolo, ou do excesso de Sol.

    O gigante da China boceja e o mundo estremece. Grandes cheias, grandes fomes e grandes guerras foram o seu destino milenar. E agora? A Europa será mesmo esse “acidente” histórico, como lhe chamou Garaudy, o pensador convertido ao islamismo? Face às economias emergentes, demonstra uma divisão e indecisão egoístas e assustadoras. O progresso é cada vez mais veloz e as mentalidades não. A mulher de Loth é um símbolo para os nossos dias. Os riscos de avançar são imensos, mas não se pode parar. Se pararmos, seremos implacavelmente ultrapassados como estamos a ser. É hora de pensar em termos globais e deixar de olhar contemplativamente para o umbigo. Como é exasperante ver as pessoas perderem tempo com questiúnculas e banalidades quando é gritante a necessidade de abrir os olhos para realidades que se instalam na nossa casa e por toda a parte, demonstrando que há mesmo uma revolução. Cronos, o Tempo, alimenta-se cada vez mais dos próprios filhos. Não conseguimos ser contemporâneos da nossa própria realidade?

   O futuro chegou e instalou-se como previam as terríveis e sedutoras utopias de Platão, Tomas Morus, Campanella e tantos outros do século passado. Um século em que pulularam as utopias assustadoras na prática e nos livros. Zamiatine, Bradbury, Orwell e Aldous Huxley são dos que mais êxitos tiveram com suas sombrias predições. Huxley, autor da aterradora utopia “O Admirável Mundo Novo”, de 1932, era filho de um grande biólogo e irmão dum fundador do evolucionismo. Reprodução, eutanásia, fosso entre povos “desenvolvidos” e “selvagens”, condicionamento inconsciente até do pensar estão aí presentes e não estamos já isentos do resultado das sementes plantadas para o que François Gross intitulou na sua obra “A Civilização do Gene 1989. A bioética é titubeante, as Igrejas recuam, os fundamentalismos avançam lado a lado com uma timorata tolerância em nome de um vago e perplexo ecumenismo.

   O espírito cala-se quando a fome bate à porta. É certo que foi o espírito que nos trouxe até aqui. Mas o cientista, qual Pigmalião, cego de paixão pela sua obra, nem se apercebe da revolução que, como um lento mas inexorável tsunami invade o velho mundo.

    A Natureza evolui, os ciclos cumprem-se e a Terra, depois de ser o centro do Universo, passou para um lugar secundário, até se tornar num grão de areia por entre biliões de estrelas e astros.

   “Quem guarda os guardas?

 

    As elites perdem autoridade, os analistas vivem de frases feitas, os comunicadores discutem novidades sempre velhas, as criancinhas engolem anúncios, telemóveis e a adoração  dos logótipos e do Bezerro de ouro. Lançam-se foguetes no ar e, noutra parte, lançam-se bombas e minas! Os pés de barro da monstruosa civilização tremem.

    Que mensagem tem para dar, se não escutamos o grito de desespero que se ergue dos que já são esmagados? A desgraça chega ao nosso lado, mas viramos pudicamente a cara. Temos as “mãos sujas” e não há água que as lave. Se, ao menos, entendêssemos que isto não é um presente mas o futuro que chega. Saber mais e mais, ensinar, preparar, libertar as novas gerações para os novos tempos, é uma imensa tarefa. “Os mortos que enterrem os seus mortos” e feche-se o livro da História que nova página se irão escrever. As letras de ouro ou sangue serão escritas por todos.

   Face a todo o conhecimento que desejamos teimosamente ignorar, discutimos sobre o tempo que fará amanhã, quando o dilúvio já atinge o casco da arca de Noé. Mais seguros do que os seres estranhos desta civilização em que nos tornamos, estarão os grupos de Tuaregues do Sahara, ainda independentes de toda a alienação tecnológica e à civilização da pirâmide do petróleo?

   Entretanto, porque “ainda dá tempo”, que tal mais uma festa?