" A extraordinária Visão"

  • Antero e a Filosofia do  meta-realismo

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

            

       

  Realidade da Distância

[  Perspectiva da Ilha do Pico.    ( Ilha do Faial, Açores. 2001) ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


 

 

       O poeta filósofo Antero de Quental (1842-1891) viveu quase sempre à margem do seu tempo. Veio de um passado que rejeitou para se tornar arauto do futuro. A prosa e a poesia combinam bem neste ponto, pois a sua filosofia só se revelou fragmentada. No mais, ainda quase menino, surgia o poeta romântico, depois o polemista com verve rutilante que deslumbrava os amigos e derrotava os que o não eram.

    O seu tempo foi o de alguém que adia e se angustia numa espiral de lutas interiores e apelos sociais que só dilaceram.

      Várias foram as tentativas para expor o que ele considerava a “sua filosofia”. No remanso de Vila do Conde, escreve a um dos seus mais brilhantes e lúcidos confidentes, Dr. Francisco Machado de Faria e Maia: “Continuo pois especulando, e tenho lido e pensado bastante, possuindo hoje, como quem diz, (…) o meu sistema[1]”.

       Encontramos, no último escrito de Antero[2], um vago castelo filosófico profético em que colocava em sistema o realismo considerando-o a nova forma que iria adquirir a filosofia do futuro. Diante disso, António Sérgio recusa dar aval a essa parte do texto, se bem que seja onde Antero realmente expõe uma original síntese, embora apressada e vaga, como não podia deixar de ser.

      Na primeira parte, quem a compusera fora o Antero historiador, de escrita escorreita que apresenta a filosofia em várias épocas com ascendência e quedas de sistemas. Agora não, é o Antero visionário das “auroras do futuro” que anuncia, sem aquele rigor tão querido do pensamento sergiano, uma filosofia para um futuro sobre o qual muito pensou e sonhou. Pouco se encontrará aqui de comum entre o pensar anteriano e sergiano para além da admiração e excelente trabalho que este último dedicou ao poeta filósofo.

     Claro que não podia dar mais do que um esboço dessa grande obra que reflectira a vida inteira. Teve de abandonar o rigor e os pormenores pelas linhas mestras do plano. Mas não há ali apenas sentimento, como nos quer fazer crer. As ideias perpassaram pelos seus escritos ao longo da sua vida e ali ganham a força de criar uma luz que nada mais seria do que uma indicação do rumo que as ciências iriam seguir, os conflitos que se resolveriam e os que seriam fonte de mais pujança para a clareira do pensar que é a filosofia.

    Nesse fim de século, desenharam-se altos castelos da ciência e consequentes incertezas. Hegel (1770-1831) já não contactou com as teorias da evolução de Darwin[3]. O seu evolucionismo é do Ser e da Razão a realizar-se teleologicamente apenas na História da Humanidade. Antero tem já uma noção do homem dialéctico e pretende reunir, sob um princípio de humanismo universal, o que define como unidade orgânica da actividade criadora.

   Depois de estudar e reler a prosa de Antero, concluímos, como outros que bem o estudaram, reconheceram: “Ele tinha uma filosofia pessoal”. É assim que, embora sem sistematização, no seu último escrito sai da “vereda socrática”, em que Joel Serrão o coloca e Barata Feio o imaginou na belíssima escultura que representa socraticamente Antero Sob o manto grego, ele é o Mestre que os discípulos admiram, os amigos e colegas escutam. É o Verbo e o encantamento que deslumbrou para sempre Eça e o fez escrever “Um génio que era um santo”, esculpindo pela pena o seu célebre retrato. 

       Tragicamente o seu temperamento arrastava-o sempre para um mais além, naquele signo de Caronte, ou da “travessia arriscada” que o levava a deixar para traz o que poderia ser uma obra única. Os seus esforços foram sempre gorados e os escritos destruídos. Exemplo claro disto, é o trabalho “Programa para os Trabalhos da Geração Nova”, cujo título manifesta claramente que se trataria de uma orientação que queria deixar aos seus companheiros da chamada “Geração de 70” que, como ele escreveu saíra para sempre da tradição após as querelas de “Bom senso e bom gosto”.

     Contratempos diversos e dificuldades pessoais causaram esse embaraço e adiaram os projectos de Antero. Mas, em cartas, muitas vezes se refere ao facto de sonhar com o dia em que, readquiridas as forças, escreveria essa obra que ele sonhava e sabia que tantos esperavam dele. Um dos problemas mais esquecidos é que Antero era um pensador activo e em constante evolução, ao ponto de parecer mesmo que se contradizia. Temos de recordar que a obra sonhada era cada vez mais impossível de realizar pois visava uma cartilha de actuação em função de um fugidio provir. Não se tratava de uma “tarefa da filosofia” como Hegel pretendia de “pensar a vida”, em relação ao passado, mas um desígnio para o futuro. Era para as auroras do futuro que Antero desejava deixar um escrito. Mas nenhum tempo é próprio para explicitar o futuro que é sempre nebuloso e vago. Esse anseio de futuro, de novos caminhos está bem visível na poesia. Mesmo que reconheça desvios, devaneios e pessimismo, o futuro está ali como forma de realização, quer pessoal, quer da Humanidade.

      Curiosamente, assume que: “Na espontaneidade inconsciente da matéria está a raiz do que na consciência e na razão se chama verdadeiramente liberdade[4]. Seria pois pela consciência e razão que passaria para além do positivismo sem perder o seu espírito lógico, mas a sua interpretação numa unidade superior e que se pode denominar hoje por “meta-realismo[5]”. Esta noção, que os dois irmãos cientistas e físicos, Guichka e Igor Bodnanov desenvolvem, em diálogo com o filósofo Jean Guitton, é o resultado de muitas descobertas científicas que levam a designar a nova realidade que se impõe à filosofia.

 

 

   Afirmando uma ruptura epistemológica, como nunca antes existiu, os dois físicos Bodnanov e o filósofo Jean Guitton, sugerem a necessidade irrefutável de uma nova visão revolucionária do cosmos. Uma concepção completamente despojada dos conceitos habituais até ao século XX. O que era a realidade “objectiva” passa a ser bem mais a construção do espírito pois “o universo que nos envolve torna-se cada vez menos material: já não é comparável a uma máquina mas a um vasto pensamento[6]”. Esta nova concepção filosófica estaria aquém do espiritualismo mas também muito além do materialismo. Como se esbate a barreira entre o espírito e a matéria deram-lhe o nome de “meta-realismo[7].

    Curiosamente, muito tempo atrás, o mesmo já surgia em traços ténues mas proféticos no pensamento anteriano. O facto foi assinalado igualmente como “meta-realismo” por Fernando Catroga[8] atribuído ao pensamento final de Antero.

   Essa visão marca já o que, de facto, se verificou depois da teoria quântica mostrar quanta ilusão e falso determinismo existia na própria ciência. A necessidade de uma nova lógica face à descoberta dos limites do conhecimento do que se denomina realidade parece impor-se. Antero não podia ter acesso a modelos científicos mais elaborados mas indica por onde se caminhava:

   “A sua determinação [da liberdade] é agora um facto absolutamente seu (…) é desdobrar-se indefinidamente numa íntima actividade que, criando um mundo seu, se cria ao mesmo tempo com esse mundo”. O fatalismo e a realidade como mecanismo determinado esfumam-se. Mais um passo ainda e (…) o universo fenomenal desaparece como uma fantasmagoria: a realidade única verdadeira é agora o acto simples dum ser todo ele ideia pura e causa e fim da própria ideia, criador em todos os seus momentos[9].

     Ora, podemos ver como se ultrapassa aqui a realidade, tal como a supunham na época, e é ao pensamento que Antero atribui a construção e interpretação do universo com uma lógica muito para além do materialismo. Se bem que a vertente da realização moral da humanidade seja a que encontra, é uma forma de manter um hegelianismo que se transfigura porque se enraíza nos dados da natureza através do que chama um transcendentalismo para um realismo original.

     Esse mundo que, nos nossos tempos, “desaparece”, pelas novas teorias da relatividade e quânticas, obriga-nos a constatar a ilusão e abstracção da realidade. Mesmo o que se considerava inegável e adoptado, é refutado e surge a incerteza no que foram antes absolutos, tais como o tempo/espaço/matéria, estaticidade, determinismo e tantas analogias há muito aceites.

     Em Guitton podemos ler ecos surpreendentes do que Antero vislumbrava:

    Porque se trata de um pensamento novo? Porque apaga as fronteiras entre o espírito e a matéria. “Por isso decidimos dar-lhe este nome: meta-realismo. Este novo espaço do saber, em cujo seio se organiza pouco a pouco um pensamento revolucionário, de tipo meta realista[10].   

     Efectivamente, surgiu uma outra realidade que rompe com toda a outra ordem e introduz um limite ao que pode ser cognoscível. Só que, ainda mais nos surpreendemos em descobrir que no mais profundo desse seio caótico reina uma ordem que atinge ínfimos pormenores e que a razão é capaz de descobrir.

    É curioso que, no texto anteriano, se captou essa possibilidade do pensamento do futuro, mas descrita de forma metafísica. O cientista para Antero é o filósofo e este deverá dar lugar ao justo e ao santo. Ele que realiza o bem.

      Nas acesas querelas entre cientistas, racionalistas, criacionistas e materialistas, a filosofia, com as suas argumentações especulativas acaba por ser o pano de fundo das obras desses autores neste novo milénio. Nas conclusões dos pensadores, deparamo-nos muitas vezes com citações, teses de vários filósofos e um irreprimível desejo de regresso à filosofia.

     Antero reiterou a ideia de que a oposição e divergências, bem como os pontos de vista irreconciliáveis, existirão sempre na rivalidade da ciência e da filosofia e como que profeticamente escreve acerca do lugar que esta sempre ocupa no seio da Humanidade: “O que dela aceitam e fazem seu os que não são filósofos de profissão constitui afinal, historicamente falando, o que ela é realmente”.

     A obra do espírito aspira à perfeição, como ao dever ser. O apelo ao cientista para ser o homem que realiza o bem é a tónica que ecoa em todos os augúrios dos filósofos

    Antero foi um pouco mais longe das especulações do cientista e astrónomo Laplace, acerca de uma possibilidade de existência de uma inteligência única de tal modo que “Fosse tão poderosa para submeter esses dados à análise, abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os dos átomos os mais ténues, nada para ele seria incerto, e futuro como passado seria a seus olhos presente. O espírito humano oferece na perfeição que conseguiu dar à astronomia um leve esboço dessa inteligência[11].

        Ora, a ciência do século XXI parece-se mais com uma construção da inteligência, mesmo que se ignore, do que com o mecanicismo anterior.

       Antero, com o seu espiritualismo realista, completa, como ideal de ser livre, absolutamente livre: “Deus, se Deus fosse possível, seria esse ser absolutamente livre. Mas, por isso, que não é real é que é verdadeiro.”

  Se bem que coloque em termos hipotéticos, insiste nesse meta realismo, ao rematar que o segredo das coisas só se revela na consciência e “é a razão o seu intérprete soberano. Só pela razão somos verdadeiramente[12].

    É outra realidade, para além da fenomenológica, das induções dos cientistas, das especulações dos sistemas que conhecia. É aqui que vislumbra um futuro e desenha um sistema.

    O retorno a Kant está presente, se bem que com uma noção de graus na evolução, quer da natureza quer do ser humano. Ambos repudiam o egoísmo, que o kantismo expressa no “querido eu que sempre sobressai”, assim como no “amor prático em vez do patológico”[13].

   O ser realiza-se pelo dever ser humano que renuncia a todo o egoísmo e “termina na libertação final pelo bem”.

   Ironicamente, já em contradição com o saber da sua época, aceita o materialismo que vai frutificar com um espiritualismo idealista. Se a forma da construção não corresponde ao que a ciência trouxe, o materialismo como que cria um “espiritualismo idealista” ao fazer desaparecer o tempo e o espaço e ao afirmá-los como abstracções e ilusões. A esta concepção corresponderá o meta realismo.

    Nesta explanação anteriana, agora e com os dados da ciência, vemos que aqui se lança um esboço de uma construção que hoje já se manifesta.

   Lido no seu tempo, entendido com os vocábulos da sua época, sem dados mais científicos, não se lhe podia dar o valor que hoje se lhe pode encontrar. É um escrito que precisava de um outro devir histórico para ser lido. Assim testemunhavam os que o conheceram e o leram.

   A ciência veio dar razão à filosofia. Aqui e ali estão a surgir dados para a grandiosa síntese que Antero ergueu em sonhos. É como a formação de um novo puzzle que nos obriga a ver um outro cosmos. O tempo tinha de atingir outras dimensões, múltiplos sentidos e inserir-se no universo como “heterónimo” da realidade.

    A relevância da interioridade temporal, de que só o homem tem consciência, é uma lenta descoberta. De qualquer modo, leva a nova perspectiva do cosmos que mais nos leva à relatividade e incerteza do que a um sólido e estático conhecimento. Fundamentalmente, há uma espantosa revolução no pensamento. Somos nós que temos o domínio do tempo nas múltiplas vertentes que nos aparece. Não é um domínio de um só senhor, mas de milhões de seres vivos que não sabem reunir as peças do puzzle, nem têm a perfeição das mónadas de Leibniz, recurso que Antero tentou, por não possuir conceitos mais científicos.

   Desaparecido o tempo e o espaço, como antes eram entendidos, vendo o cosmos, tal como os cientistas o desvendaram e constroem, temos um idealismo que se ignora e um espiritualismo que não se quer conhecer.

    De facto, não vemos clara afirmação de valores nesta babilónica Polis da ciência. Só quando como faz Pagels[14], no último capítulo da sua obra, “Simetria Perfeita”, se insiste na necessidade dos cientistas se darem ao trabalho de reflectir e, ultrapassando o seu enciclopedismo, além do saber, querem entender o cosmos e o sentido da existência humana. Já era essa a crítica que Antero[15] insistia pois tudo está entre o saber e o entender.

      Revisitando o pensamento anteriano encontramos não só uma lúcida análise da sua época, mas o anúncio de uma revolução científica e de um novo humanismo. Em Portugal, Antero deve ter realizado a última tentativa de síntese de um sistema. Depois disso, só podia ter um pensamento profético. Assim o ajuizaram os amigos, ao afirmar que só passado mais de duzentos anos Antero seria melhor compreendido.

 


 

NOTAS
 


[1] QUENTAL, ANTERO DE, Cartas, II, (1881-1889), Organização, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins, Lisboa, 1989.p.729.

[2] QUENTAL, ANTERO DE, Tendência gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Edição Fundação Calouste Gulbenkian,  Lisboa, 1991

[3]  DARWIN, CHARLES, Origem das Espécies, 1º Edição, 1859, Ed. Portuguesa, Biblioteca Racionalista, Porto, Chardron, de Lelo & Irmão, Porto,

[4] QUENTAL, ANTERO DE, Tendência gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Edição Fundação Calouste Gulbenkian,  Lisboa, 1991, p. 99.

[5] GUITTON, JEAN, Deus e a Ciência, Editorial Presença,   Colecção Ciência Aberta, nº. 14, p. 9

[6] IDEM, op.,cit., p.8

[7]Idem, op., cit., p.,. 9.

[8] CATROGA, FERNANDO, Conferência proferida no Liceu Antero de Quental, em 1991 no centenário da morte de Antero.

[9] QUENTAL, ANTERO DE, op cit. p.100

[10] GUITTON, JEAN, op., cit., p

[11] QUENTAL, ANTERO DE, op cit. p.100

[12] IDEM, IBIDEM.

[13] KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Biblioteca Filosófica, nº. 12 Editora Atlântida, Coimbra, 1960, pp , 24 e 37.

[14] PAGELS, HEINZ, Simetria Perfeita, Edição Gradiva, Colecção Ciência Aberta, nº.38, Lisboa, 1990 Capítulo final  A ciência na primeira pessoa.

[15] ANTERO DE QUENTAL,  Testamento Filosófico de, Apontamentos para o Ensaio sobre as Bases Filosóficas da Moral, ou Filosofia da Liberdade, Organização, prefácio  e  anotações de  Sant´Ana Dionísio, Seara Nova, Lisboa, 1946,