" O Tema da viagem iniciática na Filosofia "

  • Sobre Parménides

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

 

 

Limite da eternidade

[ © Porto, 2005. Variação sobre acácia em flôr. Jardins do Campo Alegre ]

[Foto digital tratada. Levi Malho ]

 


 

     Os gregos foram sempre um povo de navegadores. A multidão das suas ilhas, a sua insularidade e trato com o mar tornavam esse belo mar uma fatalidade para o seu destino. A sua mais antiga tradição literária relaciona-se com viagens e o tema será retomado muitas vezes desde a genial poesia de Homero, o mais antigo e mítico poeta grego que se diz ter educado a Grécia, até à literatura helenística. E a Ilíada e a Odisseia são viagens, idas para o longe, retornos trágicos e terríveis para as ilhas. 
      As viagens são um tema que atravessa tempos, povos e culturas.
   Sem ir mais longe já se escreveu “Viagem à roda do meu quarto” por Xavier de Maister, “Viagens à roda da Parvónia”, peça de teatro em que entraria Antero de Quental e Guerra Junqueiro, ou as conhecidas de todos “Viagens na minha terra” de Almeida Garrett. 
  Se a própria vida é uma viagem, há sempre uma proposta de caminhada, em que qualquer paragem não é mais do que uma falsa paragem porque obriga a analogias cada vez mais amplas e a uma mentalidade aberta e muita curiosidade pelo que é o “Outro” ou o “estranho”. 
     Segundo Bachelard, não é a necessidade por maior que seja, o que leva o homem desde os tempos da pré-história a arriscar-se, aventurando-se em jangadas ou cascas de noz pelo mar fora, é muito mais o sonho, o desejo, a curiosidade sem fim com que é dotada a natureza humana… 
      A importância das viagens foi constante e é prova disso a vida de Tales de Mileto ou de Heródoto, chamado justamente o pai da História. Era da tradição que não se podia alcançar a sabedoria sem viajar, correr países e ir iniciaticamente ao Egipto e aí colher o mais antigo conhecimento que se poderia alcançar. 
      Mais tarde, para nós, os portugueses, o mar foi sempre fonte de inspiração e de experiência. As epopeias gregas e lusitanas e até as italianas são temas de viagens. Não podemos esquecer a grande obra-prima de sempre “A Divina Comédia” de Dante .
      A nós, a viagem maior, no tempo e no espaço é “Os Lusíadas” mas a tragédia tocou-nos de perto e lá estão “ A História Trágico-Marítima, “A Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, as “Cartas” de viagens de fé e de sofrimento de Bento de Góis em busca do lendário Reino cristão do Cataio que afinal era a China! 
    O longe é aspiração dos povos que têm o mar por fronteira ou talvez desafio e que ao contemplarem esse aparente infinito sentem a aspiração de ir longe, muito mais longe… 
      A partir da contemplação dos horizontes sempre misteriosos podem nascer interrogações e anseios de mais conhecer, de mais saber… A coragem, a determinação e a curiosidade para enfrentar o desconhecido e os perigos são bem mais fortes do que a necessidade de viajar. Essa coragem dá aos gregos uma dimensão de exploradores e curiosos sobre tudo o que se pudesse investigar.      
     Por isso não é em Atenas mas em Mileto que se inicia a filosofia ou a curiosidade pelo conhecimento. Pertencente ainda aos sete sábios da Grécia, Tales teve a fama de ser distraído como se diz ser apanágio dos filósofos e, por tanto contemplar as estrelas caiu num poço!   É uma criada trácia que lhe irá censurar saber o que se passava no céu sem ter sequer cuidado em saber onde pôr os pés.[1] Pode ser que desta queda venha a claudicação da filosofia que a torna diferente como Jasão também herói de viagens, o era pela falta da sua sandália. Merleau-Ponty não deixou esse defeito por apontar,”O coxear do filósofo é a sua virtude[2] mas essa singularidade traz preciosos ensinamentos, ambiguidades e uma tensão entre o céu e a terra, entre o andar e seguir caminhos. A filosofia na sua peregrinação em busca da verdade, do absoluto ou do sentido, não vai seguir caminhos, vai antes inventá-los.
   Eleia, terra do filósofo Parménides, (IV-V a.C.) que também era um respeitado e famoso legislador, será outra região onde o interesse pela natureza se manifesta, ao mesmo tempo que a aspiração de haver Justiça já não está entregue aos deuses, mas torna--se uma necessidade terrena entre os homens
.
A Justiça (Dikê) vai ser a reveladora da verdade. Através da Justiça o homem liberta-se da multidão sem discernimento e atinge um Bem que só ela permite obter. A Justiça é a legisladora da Natureza, a oculta verdade de tudo e uma necessidade para o homem que quer ser justo e aspira à sabedoria. Sendo Parménides um jurista, não espanta a sua veneração pela Justiça, a quem no seu poema chamará Deusa e dela partem as virtudes.

    Todas as virtudes, coragem, lealdade, amizade são formas de – arete, geradora do ideal de homem, vai existindo de acordo com cada época, como sucede com a coragem de lutador de Aquiles, o dos pés velozes, que enfrenta o inimigo de peito aberto, frente a frente, no poema “A Ilíada”, ou depois com a astuciosa coragem de Ulisses, o rei de Ítaca, na “Odisseia”, que já não vence lutando fisicamente, mas com a esperteza de quem conhece as fraquezas dos inimigos e com elas joga. São já dois tipos de sabedoria e coragem que se manifestam nos dois poemas homéricos, sendo “A Ilíada”, o mais antigo e a “Odisseia” mais recente. É curioso notar-se que o cão é ainda um animal selvagem no primeiro poema, enquanto na “Odisseia” é já um animal doméstico, até mesmo um animal fiel, pois só o cão de Ulisses o reconhece quando este volta a Ítaca, a sua ilha, depois de muito longa ausência e errância.
    A divulgação destas obras levou a considerar-se pelo valor atribuído a estes poemas como “educadores da Grécia” segundo o helenista Werner Jaeger
Tales de Mileto, designado, talvez impropriamente, como o primeiro filósofo grego, foi um viajante. Vai até ao Egipto,  terra de enigmas de um saber oculto pelos sacerdotes, guardiães de uma verdade nunca revelada, e, como muitos outros sábios, considera que, quem não for até à terra dos Faraós, não obterá um real conhecimento, não atingirá a origem das coisas e do cosmos, não mergulhará nos insondáveis mistérios guardados eternamente pela Esfinge que desafia todo o
homem.
     No fundo é a atracção da Esfinge que todo o homem tem de enfrentar alguma vez na vida e a viagem talvez seja o pretexto para este indispensável encontro. Parménides, notável pensador pré socrático, muito embora fosse fundador da escola eleática, poderia teria sido esquecido se não fosse em viagem até Atenas onde conheceu Sócrates e dialogou com ele e Sócrates considerou-o, segundo a tradição, muito sábio mas também incompreensível.Daí terá surgido o interesse que os filósofos seguintes dedicaram à sua obra que de outro modo nunca teria chegado até nós É provável que Parménides tenha sido muito influenciado por Xenófanes de Colófon Todavia devido a Xenófanes ser um pensador com uma vida errante, de pela sua afirmação da unidade do Ser e pela sua poesia filosófica
[3]. e muitas viagens por toda a Grécia, não deveria ter fundado a escola eleática Estamos porém, perante uma grande metáfora. A viagem é um meio de falar de mudança, travessia, saída do mundo quotidiano e muito mais...
Infelizmente só chegaram até nós fragmentos do poema – Da Natureza [4] ----- nome dado a todos os escritos desse género e que tem imagens de grande beleza poética fascina o leitor e viajando nas palavras encantatórias vai chegar à Filosofia.     
    A descrição, logo no início, evoca o início de uma peregrinação profundamente complexa pela densidade da palavra que se desdobra em múltiplas vertentes e significados. A beleza do poema não deixa de cativar quem viaja pelos fragmentos que o Eleata nos legou, muito embora só restem passagens incompletas, quase sempre muito difíceis de uma interpretação consensual acrescida das dúvidas que as lacunas levantam.
    Também podemos ver aí um poema didáctico e pedagógico porque se trata de uma incitação dirigida aos discípulos, alguns deles bem famosos como Melissos de Samos e Zenão de Eleia. Há algo ainda de iniciático que liga este Poema aos Mistérios.
      Para o filósofo actual, Trindade Santos, é uma viagem de sentido essencialmente cósmico[5]. Antes de tudo tratar-se-ia de percorrer o universo. Todavia começa por ser também uma viagem que estrutura toda a caminhada filosófica, toda a viagem espiritual que o filósofo tem de realizar para ser mesmo «o amigo da sabedoria». A filosofia é, como a própria vida, uma viagem sem retorno e cada paragem apenas um repensar de temas para nova caminhada. Regressar não é possível porque todo o viajante vem diferente e não é impunemente que se lida com estranhos e novos mundos. Quem diz regressar ilude-se porque ao partir começa a mudança interior, a aprendizagem do Outro e do Diferente e nunca mais pode haver retorno daquele que partiu. É assim a vida, é assim a filosofia.     O filósofo poeta fala de si mesmo como sendo ainda um jovem, mas não sabemos em que altura da sua vida o poema foi escrito. Todavia a insistência na juventude tem como justificação o querer afastar-se bem novo ainda da doutrina filosófica dos pitagóricos de quem recebeu uma influência inegável.
   A beleza do poema é bem realçada pelo aspecto descritivo, impetuoso, com que a viagem começa e avança pela Noite. Este conceito da Noite ganha profundidade mística e mítica que remete para um sentido de ignorância que é preciso vencer e de uma Noite que reúne os iniciados, tal como nos Mistérios do Orfismo, para depois serem iluminados pela luz e tirarem das cabeças os véus próprios de discípulos que são agora integrados no “mistério” que não se podia revelar a estranhos, sob pena de terríveis castigos, por ser doutrina apenas do conhecimento dentro da escola e dos seus adeptos. Estes véus podem ser tomados como a ignorância em que estavam mergulhados e ao tirá-los e serem iluminados pela luz passam para o campo do conhecimento.

    A viagem, feita num carro possante puxada por velozes corcéis com a ajuda das donzelas que ensinam o caminho “famoso”, atravessa o mundo, a multidão dos ignorantes, rompe a escuridão da Noite e vai passar para a Luz, para o Dia claro. É então que as filhas do Sol, as Hélides, vão persuadir a Justiça “com palavras brandas”, a abrir os portões do caminho da Noite e do Dia para o jovem poder entrar na mansão da Deusa Dikê, a Justiça “que muito castiga” - a lei e a guardadora da verdade -. As filhas do Sol, são representações das virtudes, do Bem que deve guiar o amigo da sabedoria.
Para ter a revelação da verdade é preciso transpor o “abismo hiante” que separa o comum dos mortais da morada dos Deuses, onde se encontra a  sabedoria e esta só se alcança,
de acordo com o pensamento de Parménides, pelo exercício das virtudes. Ao contrário de Platão, o conhecimento só surge depois da prática do Bem. O ignorante deve afastar-se dos seus vícios se quer atingir a Verdade e a Luz. A viagem é pois espiritual, purificadora, só para aqueles que forem guiados pelas filhas do Sol, metáforas das virtudes, que levam a enternecer a Deusa Justiça, a aceitar o filósofo poeta
. O filósofo, se o quer ser, tem de se transmudar, passar do comum dos mortais para se tornar um homem sumamente virtuoso, só assim terá direito a que lhe seja revelada, isto é, desvendada, a verdade. Podemos notar que Platão recebeu alguma herança de Parménides na sua famosíssima “alegoria da caverna” pois usa a mesma metáfora da viagem, na caminhada para a ascensão da saída da escuridão da caverna, do custo com que esta viagem se faz, dos perigos da subida da Treva da ignorância, da “doxa”, (simples opinião que ainda não é a verdade) para a Luz e para o Bem.
    Com Parménides é realmente a viagem verdadeiramente filosófica que se inicia visto o Eleata ter marcado a passagem para uma nova forma de conhecer. Agora é o próprio conhecimento que é objecto de estudo e a viagem leva-nos ao pensar. Toda a busca da origem da natureza dá lugar à origem do pensamento, à lógica, ao Ser para além de toda simples e ilusória aparência. 
               
        Curiosamente neste poema e nesta filosofia, é a virtude que torna o homem digno da sabedoria e da revelação da verdade. Não é, como no resto da tradição grega, que chega aliás até Descartes, o Bem que nos torna virtuosos. A virtude – arete – personificada aqui pelas filhas do Sol, as Hélides, que acompanham o jovem Parménides na sua arriscada travessia, são quem vai dar azo a assumir um ideal de vida, de pureza e de virtudes que os homens comuns, sem virtude, nem iniciação nos “mistérios” jamais conhecerão. A ascensão para o conhecimento é pois fruto do esforço do homem de se libertar do erro e com este do mal, “da multidão sem discernimento.” 
   A viagem termina para dar lugar a outra. As Hélides conseguem passar “o abismo hiante “ e levam Parménides até junto da deusa “Dikê“a deusa por excelência para revelar a verdade, para dar as leis férreas das quais nenhum mortal pode escapar. As leis que são da Justiça são também as do pensamento lógico sem as quais o pensar não é possível
      Abriu-se aqui uma ruptura com os filósofos da natureza. Estes estão interessados na “archê”, na origem do universo. São ainda como que cientistas, místicos, ou filósofos, sábios, uma acepção da palavra com um sentido muito lato. Até agora, tratou-se do conhecimento da natureza (fisis) agora trata-se de conhecer a natureza do próprio conhecimento! 
     Com Parménides, não há meio-termo. Afirma que o ser é e que o não ser não é, nem é caminho que possa ser trilhado. A racionalidade é enaltecida e desaparece o interesse centrado apenas nas origens, nas aparências, na natureza. De algum modo a ciência como conhecimento do mundo envolvente separou-se da filosofia, como amor à sabedoria, estudo do próprio conhecimento como algo só próprio do ser humano, estudo das leis do pensar e da linguagem. Criou-se assim uma dualidade entre o sensível e o inteligível. 
     A filosofia Ocidental afirma-se separada do Oriente para todo o sempre. A unidade quebrou-se porque o pensar ficou separado da sensibilidade. A palavra assume um valor novo. A linguagem é também considerada como uma realidade sem a qual não se pode exprimir o Ser. 
     Descobre-se a lógica como lei férrea a que nenhum mortal pode fugir. Este é o fim da viagem de Parménides. Mas, para a filosofia, esta é a viagem iniciática. Sem Parménides a filosofia teria seguido outros rumos. Platão é herdeiro do Eleata. Zenão de Eleia e toda a sua argumentação contra a pluralidade e contra o movimento são uma defesa do Uno de Parménides. Sem ele, Aristóteles não teria escrito a Lógica que nós conhecemos. Não sendo o fundador da Lógica é muito mais do que o seu fundador.  Todavia para Bertrand Russell “o  que ele inventou não foi a lógica mas a metafísica baseada na lógica”.
[6] 
     A analogia entre o Ser de Parménides e o Deus de Moisés “Eu Sou Aquele que É” pode ser aprofundada com muita atenção para novos caminhos espirituais e metafísicos. E ainda George Thomson[7] chama a atenção para uma analogia entre o Ser e Yahvé do profeta Isaías, Aquele que é omnisciente, omnipotente, único e eterno presente. Há que reconhecer como o Ser Puro  e Yahvé têm os mesmos atributos e atingem a mesma abstracção do pensamento para além do qual nada mais pode ser pensado. 
     Sem extrapolação podemos notar como está aqui “… porque pensar é o mesmo que existir.”, a semente que remete para o cogito cartesiano é certo que num contexto diferente e intencionalidade também diversa. Todavia as linhas gerais estão aqui ancoradas. A Via do Ser e a Via das Aparências   
    A filosofia Ocidental começou com esta ruptura imensa entre o sensível e o racional, a logicidade das coisas e a sua aparência. Antes seria ainda duvidoso falar sequer de ciência, filosofia ou religião. A sua separação só se assinalada pelos historiadores, mas sábios e pensadores da época não tinham noções disso. O próprio Parménides não alcançou resolvera questão da relação entre o ser e as suas aparências e que ainda hoje é o cerne de toda a viagem verdadeiramente filosófica que se inicie. Mas com esta viagem muitas outras surgirão em busca do Logos, do Ser e do Absoluto. 
    Qualquer vida é, a todo o tempo, por si mesma, uma viagem. E encontramos ao longo da caminhada a possibilidade de partilhar com uma multidão de seres humanos o seu legado em etapas do conhecimento, do saber e da experiência desses outros viajantes que, como nós, passaram na estrada imensa da Humanidade onde a sua sabedoria é, para cada geração, a sua preciosa dádiva.

   Afinal somos viajantes podemos ficar pelo caminho, mas a viagem é eterna, projecta-se para lá dos nosso horizontes e encontra-se com o fim dos tempos e a eternidade.

   

  


NOTAS

 

 

[1] KIRK  e RAVEN, Os Filósofos Pré-socráticos, F.C.G. Lisboa, 1979, p. 73.

[2] MERLEAU-PONTY, Maurice,  O Elogio da Filosofia, Ideia Nova, Guimarães & C.ª. Editores, 2ª. Edição, 1979, p. 78.

[3] ABBAGNANO, Nicola, História da Filosofia, Editorial Presença, 2ª. Edição, 1976,  Vol- I pp.64-66.

[4] ROCHA PEREIRA, Helena,  Helade – Antologia da Cultura Clássica, F.L.U.C. Coimbra, 5ª. Edição, pp. 128-133.

[5] TRINDADE SANTOS, José, Testes de Filosofia, Editores ALDA, 1997, p.18

[6] RUSSELL, Bertrand,  Obras Filosóficas, História da Filosofia Ocidental, Edição Companhia Editorial Nacional, S. Paulo, 1969. p.56

[7] THOMSON, George, Os Primeiros Filósofos, II- As novas repúblicas e a razão pura, Editorial Estampa, Lisboa.