" Fragmentos do Futuro"

  • "In Memoriam". Antero de Quental.

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

        

       

  Terra Incognita

[   Centro Histórico de Guimarães.  ( Património Mundial, Pormenor de  janela. Guimaráes, Verão,  2007) ]

© Levi Malho - Imagem digital

 


 

Há cento e sessenta e seis anos nascia Antero Tarquínio de Quental

 18 Abril 2008

 

 

    Apesar de brilhante e lisonjeira, a incontornável biografia de Bruno Tavares Carreiro, (1948) não descobre toda a profunda realidade intelectual anteriana. A atracção pela sua poesia durou muito tempo, criando uma influência e sombra sobre muitos poetas açorianos, como o florentino Roberto de Mesquita, o faialense, Bernardo Maciel ou ainda mais micaelenses como Botelho Riley e tantos outros. O acesso ao pensamento de Antero através dos versos parecia mais viável do que pela prosa multifacetada e com uma evolução complexa e árdua de captar devido às influências que adquiria. Só o tempo cuidará de demonstrar como o seu pessimismo e a força do seu Verbo exerceu influência na cultura portuguesa e não deixou ir mais além do que as “auroras do futuro” que ele anunciara.   
   Ironicamente, os críticos literários estudam os seus versos e encontram formas e figuras abstractas, relâmpagos de ideias filosóficas, uma formosura de estilo que se prende ao ouvido, com uma estrutura exemplar. A designação de poeta filósofo nunca se pôde transformar em filósofo poeta. Esta metamorfose que a maturidade pode trazer a muitos, que são só poetas na juventude e bons prosadores na maturidade, não se realizará em Antero. Por isso, afirmam convencidos que serão os filósofos quem melhor o entenderão. Mas estes, prisioneiros da lógica e do rigor, conhecedores de sistemas, da explanação lenta e grave de uma página filosófica, não encontram nos poemas senão aquela beleza fugidia e inefável que nunca será chamada seriamente o amor à sabedoria. O mesmo sucede com os políticos ou os psicólogos que não o conseguem enquadrar num modelo que a sua multifacetada personalidade e seus desajustes, conflitos, derrotas e triunfos encerra e continua a ser esse enigma que fascina.
  Antero foi um revolucionário que sonhava, mas não realizava, foi um político, mas nunca seria um tribuno que defendesse a mesma causa toda a vida. Tinha a habilidade socrática da ironia, mas nunca seria um jurista, nem condescenderia com as intrigas de bastidores.
      É nas cartas que o seu pensamento melhor se descobre e mais se revela, na índole bondosa e torturada com todas as suas antinomias inconciliáveis. Os estudiosos anterianos recorrem por isso a esse testemunho de um pensamento vivo que nunca se sistematizou. Muito se pode especular acerca do extravio de material epistolar, nomeadamente a trocada com amigos, como Francisco Machado de Faria e Maia, colega e conterrâneo. A profundidade do pensamento de ambos e as confidências acerca de trabalhos e da metafísica denotam um trato que deixa perceber como a visão filosófica de ambos se relacionava. Por outro lado, o pendor socrático para grandes diálogos e hesitações acerca de escrever a obra, que mantinha suspensa e deixou fragmentada, podem explicar as lacunas da escrita. Assim, sintetiza este mesmo Francisco Machado de Faria e Maia: “deslumbrado com tanto brilho, repelia a própria obra, fugia de si mesmo e (…) ia atirando a um e outro lado aqueles fragmentos do próprio ser, que outros recolhiam…” .
  Já na maturidade, escrevia a João Machado de Faria e Maia, que acabara de enviuvar, reflexões acerca da dor que seria transparente e luminosa, não opaca e soturna, pois “a Realidade é mera a aparência e só existe o símbolo e veículo da vida moral”. E mais adiante escreve: … “a nossa vida (…) é só a vida da nossa alma, do misterioso e sublime EU que somos no fundo; ora esse EU ou essa alma tem a sua esfera na região do impessoal;” (…) em suma, as virtudes seriam o meio de atingir o Bem, “ renunciar ao indivíduo natural e de tudo o que o limita, algema e obscurece é que consiste a sua misteriosa individualidade”.
   Queria a aceitação do sofrimento como libertação e apelava à alma e ao Bem. Houve por trás até do romantismo, uma eticidade que passava pelo cristianismo. A visão hegeliana de Cristo como “promessa de liberdade” não é assumida pelo Jesus de Antero que nunca abandonou, apesar do seu teísmo “meta realista” final. A sua concepção de liberdade evoluiu, tal como a noção do Bem.
       Nos seus últimos escritos “Tendências da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”, (1890) há um retorno a Kant na vida moral, numa visão em busca do futuro que tentou sempre vislumbrar. Essa busca pode ter-se transformado em angústia central da sua existência. Daí as tentativas logradas de escrever uma obra, tal como queria que fosse, uma síntese da sua geração em que o ideário político, social e filosófico ficasse patente. A destruição do trabalho “Programa para a Geração Nova” é mais uma prova de que a vida do seu pensamento encontrava sempre a tentação de um mais além que não lhe permitia escrever.    
     A sua natureza era contraditória em extremo. Sonhou lutar ao lado de Garibaldi, partir para a Índia e instalar-se lá. Depois o combatente pela liberdade transmuda-se em tipógrafo em Paris, numa fraternidade proletária que não conseguiu e regressa combalido de corpo e alma, mas já com novos sonhos. Nunca poderia ter tido essa vivência doutra época. Não se conformando, como faziam seus amigos e companheiros, em abandonar os sonhos pela realidade, viveu sempre entre luzes e sombras, entre acontecimentos exteriores que o agitavam e o faziam despertar para a luta e a luz forte da realidade e da podridão moral desse “pobre Portugalório” onde “o agiota, ou o intrigante político, são tão naturalmente inocentes ou tão naturalmente infames como o chacal ou o milhafre. Triste é (…) quem os vê e entende, nem se quer lhe é dado odiá-los”.      
   O coração entrava em conflito com as ideias políticas, românticas, religiosas e filosóficas que a razão, “a fada negra”, lhe mostrava e lhe destruía os castelos de ilusão que construía. Assim se compreende que, após a sua vida de estudante, toda a sua aparição social era fugaz e logo buscava a solidão.
  A sua vida é a de um aprendiz de uma sageza intemporal com as interrogações acerca do Homem, do Cosmos e do seu sentido. Entre o absurdo, a arte e a Morte rondam as suas inquietações. Recusa a realidade social à qual nunca se acomodará, ainda hoje é objecto de estudo, de reflexão e múltiplas interpretações. Estas percorrem uma galeria de intelectuais infinda e um longo caminho de poetas que o seguiram e nunca o defrontaram ou se descobriram.

         Os seus amigos, Eça de Queirós com “Um Génio que era um Santo”, Oliveira Martins “com a sua apreciação aos “Sonetos”, depois António Sérgio atribuindo-lhe as suas próprias facetas apolínea e dionisíaca e o seu racionalismo, Eduardo Lourenço, colocando a Noite a coroar um “Lutero de Quental” na sua “solidão ontológica e moral”, Natália Correia que o vê como mensageiro do futuro, Fernando Catroga que o interpreta num devir hegeliano matizado de socialismo francês, Antero de Figueiredo, Sant’Ana Dionísio e a sua visão socrática, Joaquim de Carvalho com as suas lições de cátedra, Lúcio Craveiro da Silva e a exaltação do pendor místico e tantos outros que traçam perfis e interpretações e se rivalizam. Sem consenso geral, a sua poesia tem a beleza indefinível de um sonho, a filosofia as marcas do seu tempo e fragmentos de futuro, as cartas desvendam um amigo generoso, um crítico lúcido, um doente que se lamenta, um pensador numa constante inquietação, um aprendiz ávido de conhecimentos e sabedoria. Houve sempre o apelo de um “mais além” até um final há muito adivinhado.
    O seu suicídio, mais do que muitos outros, é um enigma que se enraíza em toda a sua geração que, de algum modo, nele se reviu e consciencializou dos caminhos por onde o pessimismo português a condenou a trilhar. A última ilusão do futuro torna-se na questão mais séria da filosofia tal como vê Camus: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio”. Na coragem e fatalidade de Antero, polariza-se uma geração inteira. Entreviram as auroras do futuro e recuaram. Envergaram as vestes do conformismo, do passado e do cepticismo e assim se omitiram. A coerência interna de Antero, contra toda a sua paradoxal vida, foi como o símbolo de uma Fénix que só ele assumiu na sua geração.