" O sorriso de Pitágoras"

  • Magia e Fascínio dos Números

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

      

       

  Ideias claras

[   Praça de Liége ( Pormenor de  jardim. Porto, Primavera 2008) ]

© Levi Malho - Imagem digital

 


   

      De onde nos vem a fascinação pelos números? Todos temos uma atracção por esse mundo onde misteriosamente os símbolos comandam tudo e a linguagem esconde mistérios e segredos imensos. Claro que não se trata do rigor ou do dédalo das matemáticas, que criam os seus medos e desesperos a uns e dão segurança a muitos outros. Na nossa era, a falta de paciência, de empenho e gosto por exercícios demorados, tornam o estudo afincado pouco atraente. Todavia os números são um labirinto de magia e fascínio.
        Os bons alunos de matemática podem tornar-se pessoas incapazes de aceitar as injustiças, indefinições e hipocrisias da vida, onde não encontram o amado rigor e a calma certeza dos números. O mundo dos algarismos traz toda a sua disciplina mental, paz, método e lógica para tudo. Um desafio matemático é bem mais aliciante e seguro do que enfrentar uma guerra, uma doença, um desastre ou uma ideologia. A resposta não causa a destruição de vidas. Pelo menos, temos a ingenuidade de pensar que assim devia ser. Paradoxalmente, esquecemos que, oculta numa equação matemática, pode estar uma revolução do planeta inteiro. Vivemos num mundo estranho.

         Tal como reflecte o físico e matemático, Michael Guillen, “… observamos a transformação da ciência como fonte de luz e esperança, numa fonte de escuridão e terror.”
[1]. e tudo isso está codificado na linguagem abstracta e como que desprovida de realidade que são as equações matemáticas.


          Só agora estamos a ter consciência da mudança da vida, no próprio quotidiano, causada nas ciências com a sua formulação matemática. Desde meados do século XX, exige-se muito mais a presença das matemáticas em todas as áreas científicas. A sua linguagem é como que o código da ciência.

        Verificamos todos que esse código é real na sua abstracção. Não tem nada a ver com a Numerologia, Astrologia, Alquimia e códigos secretos que servem para um imaginário colectivo animista e mágico que se alimenta de ilusões e fantasias.

        Ler o horóscopo é um antiquíssimo hábito tão estulto que obrigaria a reflectir no facto de que biliões de pessoas, só porque nasceram na mesma data, vão ter vidas, amores e negócios similares. É assombroso como a Astrologia é levada a sério nos nossos dias. Eis um ponto em que ciências e teologia, quando levadas a sério não se degladiam!

            Os números, como formas ilusórias de dominar a Natureza e contrariar as suas leis, ao longo da História, foram uma fonte de rendimento para adivinhos, astrólogos ou alquimistas e hoje as suas actividades continuam bem prósperas. Há uma áurea de mitos, enigmas, mistérios e curiosidade intensa no uso dos números paralela à ciência e toda a sua lógica fria e racional.

          Que nos atrai, nessa estranha realidade? Afinal, os seres matemáticos só existem graças à razão mas como é que se aplicam eficazmente às coisas, aos objectos, ao tempo e às leis?

         Se bem que a lógica está tão presente em tudo, já os números são seres puramente da razão mas quantificamos quase tudo o queremos. Ganha foros de veracidade, um resultado estatístico acerca do comportamento dos seres humanos se bem que cada um continue a pensar que é livre nas escolhas que faz.

        É um enigma estranho que os algarismos estejam “escondidos” na própria Natureza, nas leis do que queremos medir, entender, construir! Mais ainda, como conseguimos transformar as coisas em números e depois, sem milagre e já sem coisas ou objecto algum, só com números criarmos um mundo abstracto, espantoso de leis e fórmulas que se adaptam para o entendimento dos problemas da Natureza? E ajustam-se de tal modo que tudo obedece a essas entidades.

        Quando o genial Newton descobria a sua famosa equação, era já o resultado de múltiplos dedicados matemáticos na estrada percorrida por Arquimedes, Platão, Descartes e tantos outros.

         Apesar de toda a distância, Einstein seria um herdeiro de Descartes como este foi herdeiro do sonho pitagórico.

        A proeza ainda se complica mais ao verificarmos, como fez Guillen, que a chegada do homem à Lua, imaginada por um Júlio Verne visionário, se realiza com todo o rigor que as descobertas de Newton permitiram. “Ao longo dos anos, a equação de Newton permitiu aos astrónomos calcularem a órbita da Lua com uma precisão tal que os engenheiros da NASA podiam saber exactamente a posição do alvo lunar a qualquer instante
[2]. A aplicação da equação foi simultaneamente feita à Terra, à Lua e ao foguetão considerando a situação gravítica dos três objectos o que, até para qualquer leigo, se apresenta como um feito prodigioso com uma complexidade que nos assombra. Foi uma empresa realizada sob o poder da matemática que os seres humanos descobriram e causa admiração, interrogações e sobressalto.


         Em todos os tempos, dominar a natureza através de métodos não científicos foi, para muitos, um fascínio. Ao lado dos resultados rigorosos das ciências, floresceram a Numerologia, a Astrologia, com todos seus cálculos e rigor mas com resultados mais do que falíveis e falsos. Todo esse extenso uso da matemática é paralelo à ciência ou à religião, invoca-os para manter uma aparente solidez.

       Temos mesmo dez, vinte ou setenta anos, ou é apenas a ilusão de relacionar as voltas que a Terra deu ao Sol com a nossa vida? Para Hubert Reeves
[3] , um pêndulo ou a própria Terra funcionam como relógios e até o Sol com as suas vinte voltas à nossa galáxia tem essa propriedade de poder ser medido por necessárias convenções numéricas. Afinal, por muito que se queria recorrer aos astros para contar os anos, acaba-se por incorrer em erros pois uma pessoa pode ter dado as mesmas voltas ao Sol e não ter a mesma idade mental, psicológica ou mesmo fisiológica.
        As probabilidades dos astros guiarem o nosso destino e o marcarem com caracteres próprios é tão irracional como a nossa existência ou sorte dependerem deles. Contra todas as evidências científicas, a Astrologia abunda e aumenta em todas as épocas para bem das algibeiras dos cartomantes, astrólogos e tantos magos ou videntes.

        Somos nós que ligamos o número à realidade e depois criamos outras realidades. O fascínio estará nesse união de facto, ou casamento indissolúvel. Magia? Crença? Mitos? Infantilidades de uma mente com raízes num passado povoado por dragões, bruxas e demónios? A crença no “horror ao vazio” da Natureza, da geração ou combustão espontâneas, do homúnculo ou o ouro dos alquimistas são provas de enganos do passado, mas não sabemos que erros se escondem no nosso presente.

       Segundo a Numerologia, os nomes que nos deram ocultariam números e esses governariam o nosso destino. Esse seria um factor que a nossa vontade pouco poderia alterar. Então, surgem os “conselhos” dos astrólogos e videntes. Como tudo estaria escrito nos astros, as vidas humanas transformam-se em estranhas e complicadíssimas cartas astrológicas que vêm da antiquíssima Babilónia e da Suméria. Mas, se bem que não se fale nisto por não ser politicamente correcto, se os reis tinham os seus astrólogos e antes consultavam os oráculos, a superstição não escolhe extractos sociais. Estranhamente, políticos, presidentes e pessoas de alto prestígio continuam a consultar astrólogos e a acreditar nas suas previsões. Astros a biliões de anos-luz de distância e com tamanhos quase inexplicáveis seriam a causa de alegrias e tristezas dos pobres mortais. Naturalmente, a exploração das mentes ingénuas continua a ser uma habilidade que obriga a previsões vagas e possíveis de múltiplas interpretações que emprestam veracidade revestida de fascínio.

       Tomamos a sério os algarismos, mas não para crer que repetir sete vezes uma lenga-lenga à volta de uma mesa, ou pôr sete pelos de gato preto e duas penas de ganso no travesseiro vai mudar a sorte. Mesmo as indulgências e orações numeradas não parecem ter o toque da fé e da prece pois escondem o desejo de dominar magicamente os acontecimentos.

        É claro que precisamos dos números, mas em função do real. Aí se pasma como é que se adaptam e se tornam a linguagem da física e de outras ciências! As leis são descobertas e não inventadas pelos seres humanos. Quando se ajustam a problemas da Natureza, conseguimos desvendar mistérios assombrosos. Mesmo que a realidade seja muitíssimo mais complexa e superior ao que dela percebemos, o segredo e o espanto está no ser humano acertar com um foguetão na Lua, construir torres, curar doenças, fabricar aparelhos cada vez mais arrevesados. O fascínio pelos números é uma homenagem à inteligência humana.

       Se bem que fossem visionárias e desprovidas de rigor, as teorias de filósofos antigos e escritos míticos foram o cadinho que depois a racionalidade matemática realizou. Os mitos da criação, o dualismo platónico, a visão do finito e infinito de Nicolau de Cusa, o mecanicismo cartesiano ou o mundo das mónadas de Leibniz têm um cunho profético que nos leva a pensar num eterno retorno e nos limites do pensamento humano.

       Bachelard chama a atenção para a capacidade de sonhar que tem o ser humano. Só assim se explicaria a “loucura” de lançar-se numa frágil embarcação e enfrentar os terrores do mar. O sonho ou a curiosidade são a causa mais provável do sucesso da evolução do ser humano, pese embora toda a incerteza e risco que encerra. O homem é o único animal que pergunta. Porém, nunca se satisfaz com a resposta.

       Em vez de olhar para as matemáticas com desconfiança ou usá-las sem coerência, como os astrólogos tanto do passado ou até da “New Age” do presente, devíamos entender como as ciências precisam da sua linguagem e a tecnologia põe à disposição dos cientistas recursos que jamais se sonhariam apenas há alguns anos atrás.


          Temos de reconhecer que a matemática está ainda na adolescência e teve uma infância muito longa. Os algarismos, ainda crianças, nem sempre são bem comportados e a revolução está ainda no seu início, pois, só a meados do secular XX, principiou a sua verdadeira expansão na maior das revoluções das ciências.

         Sem entrarmos no esoterismo como alguns pretendem, nem na Numerologia, na Cabala ou nos livros de adivinhação, recordamos o sábio Pitágoras de Samos, a quem se deve o uso da matemática como raciocínio abstracto e dedutivo e a ele se atribui o teorema com o seu nome. O número é algo perfeito e místico, carregando múltiplos segredos e significados. Entre o lendário e a realidade, para Tobias Dantzig
[4] os pitagóricos foram pioneiros da “concordância entre coisas geométricas e aritméticas”,com o teorema, “viram a união entre a geometria e a aritmética,” e por isso havia a harmonia celeste. Desde a harmonia celeste à música havia uma essência sagrada, segundo o aforismo:”O número rege o universo”.
          Para além dos quatro elementos primordiais, podemos bem acrescentar mais um “quinto elemento” que, com o filme com esse nome, só tem de semelhante é o título. Trata-se da descoberta do poder dos números. Com eles a revolução do pensamento humano atinge o domínio da abstracção no seu estado cada vez mais puro.

       Se as quatro substâncias, terra, ar, água e fogo, puderam dar explicações cosmogónicas e míticas, lendas, e até teorias acerca das origens e formação do Universo, o número traz a descoberta do rigor, do alcance da quantificação e concede preito à genialidade dos pensadores helenos.

          O número um é esse incomparável e primordial que tudo unifica, mas o três, é a tríade da dialéctica hegeliana, em que o ser é e não é só isso, por ser o todo e “mais”.. É a lógica e a ontologia que se tornam no todo que a si mesmo se transcende. Há séculos de mito, magia, misticismo e símbolo dessa unidade trinitária. Já o sete pode representar o infinito ou a perfeição. Mais prosaicamente, os dias da semana, as sete marés, os sete anões da Branca de Neve, os sete pecados, as virtudes, as botas de sete léguas, os sete irmãos, os sete selos, as sete trombetas de Jericó, ou até as sete colinas de Lisboa ou de Roma. Doze são as estrelas da bandeira da Europa, os apóstolos, os meses do ano, as horas, a dúzia de ovos, que não se compram às dezenas mas às dúzias. Por uma teima insistente, vinda da antiga Suméria, os pratos, talheres ou copos ainda se compram à dúzia. Depois temos o desgraçado do treze, o desequilibrado e pior de todos o seiscentos e sessenta e seis, números errados, do azar, das quedas e do erro. Porque só há-de dar sorte um trevo de quatro folhas?

          A Astrologia, que se intitula uma ciência, segue a falácia que Jorge Buescu
[5], físico e matemático português, refere, já que se não se consegue provar que é falsa, logo talvez seja verdadeira e acaba ironicamente pela sentença “Se pode ser verdadeira, mantenha a mente aberta”, ou ainda referindo-se a uma astróloga portuguesa:”Não negue à partida uma ciência que desconhece”. Há um estranho abandono da razão para seguir tais pistas, em aditivos de comportamentos ditos mágicos ou religiosos.
           Ao contrário do que os Iluministas sonharam, a irracionalidade e o pensamento mágico crescem juntos com a razão como o trigo e o joio.


           “Chegámos ao ponto de “um critério de verdade espantoso aceitar como verdadeira até que alguém prove que é falsa
[6]. Os números são reais, mas não tornam sólidos quando inseridos num objecto. Dizer que uma cadeira tem 4 pernas é possível mas depois somar as pernas da cadeira com as de pessoas e mais uns tantos animais faz grande confusão e deixa de ser um raciocínio claro. «Muitas eras devem ter passado», diz Bertrand Russell, «antes que se descobrisse que um casal de faisões e um par de dias eram ambos ocorrências do número dois»[7]. Por isso e muito mais, porque há sempre uma axiomática subjacente ao mais elaborado raciocínio. Bertrand Russell dizia com ironia que «A matemática é a ciência em que não se sabe do que se fala, nem se o que se diz é verdadeiro». Aqui está um filósofo que consegue um prémio Nobel. Curiosamente, embora seja um matemático, é como literato que tem honras de prémio. Zero para a Matemática e para a Filosofia!
         Lá na distante pré-história, um homem risca uma pedra e começa a contar. Entra nos primórdios da abstracção e na dualidade entre as coisas e a sua representação mais simples. Quando se conta, mesmo com palavras concretas, já existe um raciocínio mais perspicaz. Assim, por exemplo, “eu”, seria igual a um, “asas,” representaria o número dois, o trevo seria o três, as patas já é óbvio que eram o quatro e a mão, o número cinco.” Isto foi um começo de uma aventura em que a ciência, toda a ciência exacta é o conteúdo e o número a linguagem.

          A propriedade privada e a necessidade de contar devem ser da mesma idade. Só muito lentamente se abandona o concreto pelo abstracto, mas este é uma enorme conquista na arte do cálculo, palavra que significa pedras. Foi a contagem que “consolidou a noção de pluralidade concreta, e portanto heterogénea, tão característica do homem primitivo, num conceito abstracto e homogéneo do número que tornou possível a matemática.
[8] .
         Muito lentamente, os números foram-se libertando dos sentidos e passaram a ser cada vez mais racionais e abstractos. Paradoxalmente, por serem mais racionais e mais abstractos aplicam-se melhor às coisas, descobrem-se leis, até parecer quererem confundir-se com o próprio universo.

         O banho do matemático Arquimedes deve ser o mais famoso da história da ciência como a maçã de Newton a mais conhecida. Passo a passo, as ciências foram usando a matemática e esta arrasta a racionalidade para campos desconhecidos mas possíveis de desvendar só pelos seus símbolos. Por isso, a matemática além de ser uma linguagem, é também um instrumento tão poderoso que não sabemos ainda o que temos entre mãos, nem o que legaremos ao futuro. A tecnologia veio trazer asas aos números e operações de enorme complexidade e lentidão são feitas agora em segundos.

       Se a origem dos símbolos dos nossos números veio das primitivas tribos, dos Fenícios e da Índia, uma constatação bem simples mostra que eles são deduzidos dos nossos dedos.


         Há alguns séculos atrás “para o homem educado era elegante usar os dedos para contar
[9],  era  um hábito difundido na Europa Ocidental e não havia então  nenhum manual sem uma exposição de tal método.  Já, para nós, havia o velho e repetido aviso e reprimenda “Não contes pelos dedos”  a marcar quem não queria usar um elemento superior  e fugia para o concreto com o uso das mãos por se opor a um maior esforço mental. Intuitivamente esta reprimenda anunciava a revolução da matemática que por fim libertaria o homem, o mundo e o próprio Cosmos.
       O tempo terreno é muito breve e o Cosmos não podia esperar mais. Desde sempre as estrelas levantaram problemas matemáticos e pareciam esperar que um habitante deste planeta trouxesse uma revolução para uma mudança sem paralelo. Como foi lenta e penosa a descoberta do valor dos números e o seu precioso uso, capaz de tornar cada ciência cada vez mais complexa e perfeita.

        Por fim, surgiu Isaac Newton e o mundo mudou. Descobria-se mais uma “mentira” de Aristóteles mas da qual todos eram culpados por nunca terem verificado experimentalmente a veracidade das suas afirmações.
         Olhando as estrelas numa noite bem escura, podemos pensar que temos biliões e biliões de galáxias, estrelas, planetas e astros e que, uma mente dotada de uma inteligência supra humana e de um tempo sem fim, chegaria a contar todos esses astros. Não se confundem porém com o infinito.

         A indução tem sempre um “se” que se oculta e uma axiomática que se ignora. Não se trata de uma noção fechada mas aberta. Cada conjunto depende de um todo apenas ideado. Se aplicarmos o infinito à realidade, condenamos a realidade ou temos de rejeitar a quantificação absolutamente exacta. Há sempre a possibilidade de pensar num número depois de outro e não se podem esgotar. É uma prova muito modesta de um modo do infinito que até as crianças experimentam, mas faz reflectir que descobrimos dentro de nós pela transcendência que se nos impõe. A nossa mente recusa-se a aceitar que um conjunto fechado não possa ser perfeito. Num conjunto aberto entra também a noção de imperfeito. Temos ainda aqui a presença da sombra de Aristóteles.

       Só com muita reflexão, notámos como os nossos preconceitos não são só sociais, raciais, de marcas de roupa ou de qualquer outro assunto. Ocultam-se por toda a parte. Há esquerda e direita nos números, zeros e vazios, espontâneo e necessário, hábitos e causalidades, irracionalidades aceites com toda a seriedade deste mundo e a Numerologia ou os sombrios horóscopos são uma prova disso. Estão sempre a espreitar um momento de distracção da razão para invadir o campo estritamente racional com a erva daninha das emoções e crenças.

         As noções de absoluto, de perfeito e de imperfeito são ontológicas ou qualidades e estas implicam sempre, quer relatividade, quer valores. Ora, a teia dos números é como o avesso da realidade como se ela fosse a tapeçaria de Penélope. A sua veracidade é frágil, embora aparente coesão e força. A cada passo há hesitações e erros. Já os pitagóricos, na Antiguidade, tinham sido vítimas disso e a perfeição que encontraram pouco tempo durou, mesmo que quisessem manter em segredo a imperfeição que tinham descoberto.

        Pitágoras ao dizer que, por trás das coisas estão os números, antecipava o dualismo platónico? Mais não fazia que afirmar que tudo é um? Teria razão ao dizer que tudo são números?

        Que belíssima descoberta fez, se bem que imaginária ou ilusória, da harmonia celeste. As estrelas têm uma melodia que nós, por estarmos surdos às coisas do alto, nem sequer ouvimos. Mas Pitágoras descobriu, usou-a na sua lira e sabia a música das estrelas.

         De repente, entramos pela porta do cavalo na axiologia, o que nos faz cair desastradamente na filosofia e ficamos atazanados com os seus problemas. A ontologia dos números leva-nos à sua existência racional e idealidade e encerra-nos na nossa.

          Porém, parafraseando ingloriamente Galileu, podemos dizer: - E todavia eles adaptam-se. Os números movem-se maravilhosamente por toda a parte. O paradoxo do hábil Zenão vem desatar o nó górdio do tempo e do espaço contínuos, enfia o infinito na mente humana mas não sabe depois tirá-lo para a realidade. Obviamente, Aquiles deve apanhar a tartaruga. Mas também a pensar não se pode apanhar nada. Está certo e errado ao mesmo tempo! A seta está sempre imóvel em todo o seu percurso e não se pode negar que pode matar se formos tontos em nos pôr na frente.


     Coloca-se um “Se” antes de tudo. Como um bom meteorologista que nos afirma: “Amanhã pode chover”,  há uma distante possibilidade de tempestade ou um dia de Verão. O jogo das probabilidades brinca com a incerteza, tal como o futuro com o passado, numa desordem, que convém clarificar ser só aparente mas que nos atrapalha e coloca em causa as mais belas obras de arquitectura do Universo.

         Probabilidade, axiomática, acaso, indeterminismo, eis que se instalam no seio das matemáticas. Só que lá chegam de mala de viagem os números para dar mais uma volta ao mundo, não em oitenta dias, mas ao mundo melódico das ciências. As revoluções acontecem mas as pessoas podem nem dar que o mundo mudou. Tem de pensar de novo ou olhar sem ver nada para o quotidiano e escrever no nosso diário o que o infeliz rei Luís XVI da França diz ter registado no dia a tomada da Bastilha: “Hoje não aconteceu nada”.

        Os “ses” todos escondidos não dizem como a lei é axiomática. A nossa querida noção de infinito zanga-se com a causalidade cortada ao meio para aparecer um espontâneo como um vírus fatal condenado desde a eternidade pelo bom entendimento e implacável rigor científico. Já não estamos protegidos nem pela querida evolução e abrem-se as portas aos dragões do caos.

       Se. A tudo o que pensamos basta esta pequeníssima palavra – se – para destruir o que se pensa ou diz razoavelmente numerado e científico depois de aceitar o terrível  «se»..

        O “Se” serve para nos tornar humildes e nunca fechar a porta ao erro pois é sempre pelo erro que se começa ou recomeça. A história dos erros da ciência é bem mais rica e espantosa do que a versão oficial histórica de cada época.

        No seu modo finito temos algarismos por todos os lados. Dominam-nos, rotulam-nos, colocam-nos numa creche, num super mercado, numa escola, ou num cartão. Esses números são mais a nossa presença do que a nossa pessoa. São também os números que nos revelam o grau de saúde e determinam o que comemos, tomamos, o que devemos pesar, até a nossa roupa já há muito passou a ter número, como os ocultos códigos que a memória tem de guardar secretamente mas deve recordar no momento certo. O poder dos números tornou-se enorme desde meados do século XX. Agora precisamos de saber mais e mais e termos a coragem de abandonar muita superstição e crendices com números para os tomar a sério.    

         Seguimos um caminho humano convencidos que podemos antropomorfizar o Cosmos com os terríveis números e toda a matemática que neles dança.

       Toda a razão a Pitágoras, no século XXI. Tudo são números! Ficámos por saber é se os números nos obedecem ou somos nós que obedecemos aos números.


         Abrimos a porta mágica e fascinante para espreitar uma história da humanidade cheia de erros, de hesitações, de preconceitos, tradições, retrocessos, profecias e onde o acaso tem um forte papel, as coisas simples podem ser grandes descobertas ou obstáculos inopinados. O gosto pela penumbra impede que se saia da caverna platónica onde nos guiamos por sombras que achamos muito mais seguras.

        Precisamos de segurança pela nossa incapacidade de viver num caos de objectos e seres imprevisíveis. Um pouco como o aluno de matemática que, esquecido do real, se debruça sobre os enigmas dos seus problemas e se esquece que há fome e guerra mesmo ao virar da esquina. Assim conta a lenda acerca da morte de Arquimedes de Siracusa em 212 a.C. que, absorto nas suas deduções, não deu pela invasão da cidade e foi morto por um soldado romano.

         Do caos à ordem é uma estrada de libertação mas cheia de riscos. Entre a liberdade e a racionalidade pode existir uma das mais decisivas escolhas para a sobrevivência do homem no Cosmos.

        Uma questão surge para aumentar a nossa perplexidade. Encontramos, sob múltiplas roupagens, as mesmas questões em todas as épocas. Será que estamos confinados a um eterno retorno? Ao confrontar a noção de Cosmos de Carl Sagan e a de Hubert Reeves, o primeiro afirma que o Universo é finito e ilimitado, enquanto que o segundo afirma-o como infinito.

        A visão de Sagan apresenta-se mais adaptada ao pensamento pelo seu paralelismo com ele que é igualmente finito e ilimitado e ajusta-se facilmente à nossa compreensão. Porém, deparamo-nos com a questão dos nossos próprios conceitos carregarem sempre um antropomorfismo que não podemos ultrapassar. Reduzir o Cosmos, por muito complexa que seja tal redução, à nossa compreensão, com todas as explicações que possamos elaborar tem muitas imperfeições. Por vezes, os astrónomos falam de uma visão do Universo como se o pudessem observar “de fora”. Mas somos observadores subjectivos e inseridos no todo dessa imensidade, à qual não podemos assegurar que a razão humana realmente capte e se ajuste. A questão continua a ser, como é que um raciocínio pode abarcar o Cosmos, ou dar-lhe essa ordem, se fazemos parte integrante dele e, inevitavelmente, só podemos imaginar e deduzir de uma perspectiva mais axiomática e limitada do que o enorme Mistério que queremos a todo o custo desvendar. De novo a curiosidade parece ser a força maior da nossa evolução.

       Foi muito lenta a evolução da matemática. Mas, repentinamente, tudo se acelerou. Jamais uma só geração assistiu a tantas mudanças. Não vamos vaticinar futuros como os videntes ou astrólogos. O certo é que as possibilidades que as tecnologias dão à mente humana nos abrem as portas a uma possível evolução já não natural, mas cultural que anuncia as maiores revoluções e desafios ao estranho e misterioso ser que, negando todas as probabilidades, surgiu neste Cosmos.

 

 


 NOTAS

 

[1] Guillen, Michael, Cinco Equações que mudaram o Mundo, Edição Gradiva, Colecção Ciência Aberta, n. 96.3ª. Edição, Lisboa, 2004,   p. 14.

[2] Guillen, Michael, Idem, p. 61

[3] Reeves, Hubert, Um Pouco Mais de Azul –A Evolução Cósmica ,  Gradiva, Colecção Ciência Aberta, nº, 2, 1986.

[4] Dantzig, Tobias, Número, A Linguagem da Ciência, Editorial Aster, Colecção Marco Polo, nº. 3,Lisboa, s/d, pp. 108-109.

[5] Buescu, O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, pp. 164-165.

[6] Idem, Ibidem,

[7] Dantzig, Tobias, Idem, p. 17.

[8] Idem, Ibidem Idem.

[9] Idem, Ibidem, p 21.