" Das Coisas Simples"

  • A ilusão dos "iluminados"

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2008 )

 

     

       

  Ideias claras

[ ©  Janela em dia de Verão ( Pormenor de edifício. Ponte da Barca. 2007) ]

 

 


 

                                       1 - “Todo o mundo é feito de mudança

 

      Todas as instituições, pela sua própria natureza, pretendem estabilidade. A começar pelo Estado que é, ao contrário do que se está a divulgar, uma instituição com uma Constituição, um povo e um território. A conhecida frase ”L ´État c´est moi” atribuída a um dito de Luís XIV, irritado por ser contrariado, mostrava como a instituição não é uma pessoa, nem todos nós. É muito mais.
   As instituições pretendem dos seus membros uma modelagem boa para tudo se repetir no movimento que parece ser, ingenuamente, mudança.

       A mudança como permanência não dá estagnação, mas sim um desequilíbrio que se complica com nova mudança. A constante mudança de leis, ordens, alterações, programas, projectos, directrizes, a custo dá integração, talvez desastrosa ou conformista e maior perplexidade e desinformação que mudança de mentalidades.

       Uma reforma, por muito que se a proclame, traz risco. Todo o Partido quanto mais revolucionário é ao chega ao poder mais inimigo se torna da revolta.

 

 

                             2   - O mito do ensino obrigatório

 

    Os jovens, como estudantes, são, "a priori", sem estatísticas ou pesquisas, postos diante de curricula a que se submetem de bom grado. A aprendizagem é uma tendência de todos. Tanto faz decorarem oito horas por dia o Alcorão, aprenderem a escrever, a usar armas, ou tocar música.
         De acordo com Pierre Joncour,
[i]  a pseudo união de esforços de pais e professores numa tarefa educativa comum é uma falsa congregação de interesses. “Tal como os moluscos, a família abre-se e fecha-se. (…)… e nós, [os professores]nos nossos caixotes de betão, somos também moluscos, de carne não mais tenra  do que a vossa e não menos intragável.  E este carrossel vai girar durante dez, quinze anos”.

    É patético que esta obra, na nossa era de crescente aceleração e globalização, ainda guarde uma ironia que até aumentou em alunos e anos. No processo de “ensino-aprendizagem”, com as “aulas de contacto” e toda a parafernália linguística das crescentes Ciências Pedagógicas que se estão a transformar num Leviathan, aterrorizante, símbolo de que fala o Livro de Job e ao qual “ninguém é bastante ousado para provocá-lo; quem o resistiria face a face? (....) Quem lhe abriu os dois batentes da goela, em que seus dentes fazem reinar o terror?” 
        Nem todas as Epistemologias, Fenomenologias, ou Ciências Psicológicas reunidas decifram o nó górdio dos valores deontológicos das profissões, para os estudantes, num hipotético tempo, terão um improvável emprego.

          A relação entre estudo, aprendizagem e emprego não parece na prática necessária. Isto não devia ser verdade mas acontece. Os valores vividos que os estudantes têm de assumir no seu papel na prática de hora a hora na complexidade rede social são dados como adquiridos como se o saber fosse o Bem. Um mito tão antigo e tão presente que nos obriga a recuar aos gregos e trepar até à velha torre de Babel.

        Se há compêndios sem fim, como Pedagógicos, Sociológicos, Psicologia da Família, Delinquência Juvenil, Fenómeno dos Comportamentos Aditivos, Juventude e Dinâmica de Exclusão Social, Fenomenologia do Acolhimento, Aconselhamento, a repetição e inevitabilidade de teorizar a transdisciplinaridade leva a usar linguagens e conteúdos extrapolados com enorme fantasia e falta de critério quanto à realidade.

 

 

                                                3 - “O rei vai nu”?

 

    A transdisciplinaridade, que os pós modernos tanto admiram, traz o risco de tratar tudo à superfície sem aprofundar coisa alguma. A seriedade desses trabalhos é posta frontalmente em causa pelos físicos Sokal e Bricmont[ii] que causaram escândalo e enorme atenção pela sua denúncia do mau uso das metáforas extrapoladas das ciências. Os intelectuais franceses e não só usam assim “o teorema de Godel, a relatividade, a mecânica de fluidos, a lógica booleana, a indeterminação de Heisenberg” e tantas outras noções, “de forma gratuita, absurda e sem sentido”. (…) “…todo o processo está mais próximo de uma sessão espírita do que de um discurso racional”[iii]. Assim, Buescu continua:  “Estas referências têm um só objectivo: tornar o discurso incompreensível. Como o público a que se dirige o texto não conhece as noções científicas invocadas, não pode avaliar que está em presença de uma farsa. Pelo contrário: como não compreende as referências oblíquas, presume que isso se deve à sua própria ignorância. O discurso vazio, pseudo profundo e desavergonhadamente fraudulento passa, assim, por erudição científica![iv]”.

    Esta denúncia causou a maior polémica e fama a Sokal, que não esperava tal resultado. Mas o bom senso deve estar presente nos leitores de certas obras que os relativistas e descontrutivistas, literatos, sociológicos, pedagógicos e outros apresentam com uma profundidade aparente a esconder o vazio do discurso. A filosofia e os filósofos têm sido vítimas presentes em muitas dessas obras em que a interpretação denota um espantoso desconhecimento do rigor e contexto do pensamento filosófico. A transdisciplinaridade envolve tanto risco como o barroco das metáforas extrapoladas imaginativamente mas tal pode ser grave quando se lhes dá oportunidade na prática. Os exemplos de insucessos pedagógicos já são por demais conhecidos.
        Sendo a zona dita escolar, “homogénea e truncada” como afirma Bazangar, (1981) o certo é que os estudantes e os médicos são exemplos de dois grupos interactivos com referências ocultas e, por vezes, bem opostas. Só existe numa vaga base comum de valores, uma socialização em que se multiplicam referenciais distintos e contraditórios.  
       Animal cultural por excelência, o discípulo de Esculápio ou segue a cartilha em função dos conhecimentos teorizados, ou está todo o dia a aprender com os doentes, visto a voz comum dizer que “não há doenças e só doentes”.

 

 

4 - By the Book

 

    Os modelos economicistas, humanistas, funcionalistas, legalistas e muitos outros, entram em conflito diante de um “médico-tipo” que, dados os seus valores adquiridos, espera com toda a sua lógica livresca e técnica que lhe surja pela frente um “doente-tipo” igualmente de acordo com a ética adquirida na sua socialização. Se é possível modelar um “médico-tipo” através de anos de informações, já cada doente é sempre diferente de todos os estudos e casos clínicos juntos, que não falam das suas excepções reais. Toda a pessoa é uma excepção, num contexto único.
        Nas salas de aula, analogamente, o “professor-tipo” encontra seres humanos em formação que nem podia imaginar antes de entrar na aula. Mas estão lá, como o futuro, para aprender a ser sistemicamente correctos para sobreviver.

        A eliminação e cortes de tantos temas, conhecimentos e saberes no ensino/aprendizagem são compreensíveis como necessidade de escolher a profissão e a racionalização do trabalho em função dos interesses do sistema e não da pessoa. O conceito de vocação tem vindo a desaparecer e só se põe em variável a escolha da profissão rentável e que o sistema aprova.

      A vocação tinha a vantagem de iniciar a escolha pela busca de um sentido para a vida, em vez de se ponderar todas as regalias, estatuto, prestígio que uma funcionalidade pode trazer pela profissão, descurando por completo o sentido da existência. 

 

 

                                      5 - Onde esconder os pobres?

 

  As instituições também se preocupam com outros questões. No campo dos excluídos, marginais e pobres, há uma urgência enorme em dar outro significado ao conceito de penúria. Ser pobre pode não ter nada a ver com passar forme, ter falta de roupa, desejar ser humilde, abnegado ou caritativo.
        Outrora, segundo Maria José Tavares
[v], “os pobres eram necessários para a salvação dos ricos e dos poderosos, à redenção dos pecados na purgação most mortem e como um investimento no Além”. Era ao doador que esta caridade trazia o passaporte para o Céu, enquanto os pobres até o podiam ter uma dimensão positiva e procurada voluntariamente.
    Os pobres agora são outros, sem acesso às tecnologias, mas beneficiando das sobras da abundância alheia. A caridade deu lugar a um misto de medo e indiferença com que se olha em escala decrescente e depreciativa para velhos, doentes, reformados, inadaptados, pretos ou imigrantes.

     Com isto, a instituição escolar tornou-se no instrumento em que o mais importante é vencer ou permanecer lá para sempre. A competência implica uma desvalorização e agressividade para com o outro. Por outro lado, descobre-se que a correlação entre ser bom aluno e boa pessoa ou vencedor é um mito do já velho sonho iluminista. A sociedade confirma e abençoa esta escolha de valores de sucesso social. Combina bem a desorganização com a estabilidade de um sistema que cada vez mais sustenta à custa de uma enigmática pirâmide social por cujas bases poucos se atrevem a interrogar.

       Estes novos excluídos, em massa crescente de pobres, doentes, imigrantes, inadaptados, marginais e tantos outros sem acesso aos novos conhecimentos aumentam cada dia mais. A maioria nem se revolta nem pensa muito. Busca um emprego mesmo precário, um “part time”, recibo verde, um subsídio de desemprego, e aproveita o que de bom a sociedade de abundância lhe oferece. A chamada classe média desaparece. A preocupação pela saúde, ética e cultura diminui, o dia-a-dia absorve os excluídos.

 

 

6  - As revoluções da ética

 

 

     Os valores não desaparecem, alteram-se apenas, e o trabalho é puro funcionalismo, horários cumpridos sem o prazer de criar, de realizar, de fazer pequenos gestos de humanismo, de fraternidade e afecto aos seres nossos irmãos. Esse humanismo não está em manual algum e só faz perder tempo.
       Se de modo bem pessimista, o filósofo Hobbes assegurava que “O homem é o lobo do homem”, depois Rousseau veio dizer que o bom selvagem é que é o “iluminado” pela Natureza, mesmo que seja canibal, aos Domingos louvaria o Senhor. Hoje, os filiados na teoria perigosamente ingénua mas nada inocente neo rousseauniana vivem o sonho das gaiolas douradas para as criancinhas, onde tudo é cor-de-rosa e contos de fadas. A agressividade é uma capacidade inata, dizia prudentemente Konrad Lorenz e o risco de a ocultar não a faz desaparecer. Se não se dá uma pistola a uma criança não estamos livres dela nos atirar com uma boa pedra à cabeça.

      Os valores são culturais, como o homem e a ligação entre informação e educação está eivada de confusões. A delicadeza, a sensibilidade, hoje quase desprezadas e ocultas como fraquezas, a generosidade, a sinceridade e outros bons, ou reprováveis valores são adquiridos por imitação, recorde-se só o psicólogo Bandura e a sua teoria da modelagem. Neste caso tem toda a razão o povo que diz que “há pessoas que são macacos de imitação”. Mas tais “macacos” são perigosos, têm o vírus da massificação e da organização de sociedades onde todos se parecem estranhamente iguais e vazios, transformando-se em consumistas de coisas, mas fundamentalmente para consumir pessoas. Um novo tipo de escravatura em que o escravo já não tem um só dono, nem sabe que o é. “As cadeias que mais nos prendem são aquelas que menos pesam” afirmava Madame Swetchine
[vi] pois os hábitos e o conformismo são um forte mecanismo de passividade.

 

 

                                       7 - Valores sem preço certo

 

    Não estamos já a falar de economia, apenas, mas do ser humano transformado em peça substituível depois de gasta. A pessoa vende o que tem de melhor e único, o tempo, que nem sempre é transformado em trabalho, mas só sai das instituições quando o ultimo burocrata assenta o óbito.
        Atenção porém ao tempo que até mesmo este está pervertido e nada tem de natural. O sistema controla-o como os números, e as palavras, o que se pensa ser lazer ou trabalho e que são apenas modos de consumir o homem desde que nasce até que morre como exige o sistema. E morre e desaparece, como um pacote de detergente vazio, um papel roto ou um sapato. Foi engolido pelo sistema e gastou-se na busca da estrada prometida sem saber que acabava como tudo o que gastou e comprou, usou e deitou fora. O escravo antigo era um bem, se tinha um estatuto social mínimo, era, muitas vezes, bem tratado, pois assim rendia mais e era melhor para todos. Hoje há muito mais formas de escravidão em que o Tempo é o Senhor que se casou com a Economia. As filhas são as Instituições, enfarpeladas de teorias e abstracções.

         É arriscado sair do manual da deontologia para a prática moral e uma ética de princípios. Mas temos de acreditar no humanismo com velhos valores sempre essenciais. Dignidade, honestidade, respeito e honra, humildade, dedicação e vocação, são valores tão esquecidos, mas sempre fundamentais. Estar ao serviço dos outros é um dever quando se trata da elevação do espírito, da honra e da verdade.

    Se a teorização crescente que tanto atinge o barroco da linguagem, das obras com milhares de citações e pesquisas, o bom senso exige rigor e extremo cuidado na sua aceitação, muitas vezes fruto da ignorância e perplexidade do leitor desatento. O hábito da reflexão e consultas cuidadas é um meio de evitar o que Sokal chamou “imposturas intelectuais”. O uso e abuso de citações retiradas de fotocópias, de navegações incertas na Internet resvalam para o risco de passar sem escrúpulos para simples cópias, mais ou menos disfarçadas, transformam uma bola de neve numa avalanche de obras de valor suspeito. Livros, ditos eruditos, teses, pesquisas e trabalhos de investigação multiplicando-se sem fim. Todos esses trabalhos talvez fossem prova de esforços e de empenho, mas podem ser apenas textos imaginativos ou repetitivos para arrumar nas bibliotecas.

     Às instituições falta coração. A legalidade é cega e a sua aplicação, quando a nascente desconhece a foz, é uma falsa solução, onde a burocracia triunfa. A espiritualidade e responsabilidade têm de estar na vida prática. É na aprendizagem de olhar o outro como um outro “Eu” que temos de apostar. Parafraseando Chesterton:
Estamos todos neste planeta em tempestade e temos uma responsabilidade terrível por todos os outros.

 

 


        NOTAS:

 

[i] JONCUR, Pierre, A escola, uma máquina devorante, Editorial Notícias, Lisboa,  1977 p 21.

[ii]  Buescu, Jorge, “O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, Ed. Gradiva,, col. Ciência Aberta, n. 113, pp 180-189,   Sokal e Bricmont, Imposturas Intelectuais, Inglaterra e U.S.A., 1998.

[iii] Buescu, op. cit, p. 186.

[iii] Buescu, op. cit, p. 186.

[iv] Idem, Ibidem.

[v]  Garcia, José et al., Estranhos – Juventude e Dinâmicas de Exclusão Social em Lisboa, Celta Editora, Oeiras, 2000 pp14-15

[vi] Goicoechera, Cesário, Diccionário de Citas, Editorial Labor, Barcelona, 1952, Mm de Swetchine “Morceaux Choisis,6, 8315.