"Arquipélago Inventado "

  • Os Açores no imaginário de Alexandre Dumas e Júlio Verne

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2007 )

 

      

       

  Milagre das Brumas

[ ©   (Ilha de S. Jorge - Açores). Digitalização. 2001]

 

 

 


 

     Será um risco de erro histórico, comparar épocas em que se leu muito, ou se leu menos. É tão relativo que há historiadores a mencionar a fase anterior à Revolução Francesa uma era em que mais se lia nesse país. Como tudo é muito relativo, o analfabetismo, a pobreza e as motivações tornam complexas quaisquer considerações acerca do número e qualidade de leitores e obras que lhes passam pelas mãos, seja em que época for.
         A obra de Alexandre Dumas, 1802- 1870, a que se acrescenta usualmente a designação de pai, para o distinguir do filho que usou o mesmo nome, foi tão extensa que dificilmente se poderá conhecer ou estudar toda ela. Se ficaram célebres os romances “O Conde de Monte Cristo”, ou os “Três Mosqueteiros”, o mesmo não se dirá de muitas obras que, tendo um fundo histórico, prendiam os leitores pelas aventuras dos personagens que nada tinham, na maior parte dos casos, a ver com a realidade. O seu êxito era enorme e os folhetins traduzidos chegavam até ao nosso povo.
         Consta, em boa verdade, que Alexandre Dumas tinha uma espécie de secretaria, onde um grupo de escritores redigia diligentemente longos folhetins, ao gosto da época e de grande sucesso de venda. Dumas, pai era um grande admirador do historiador Jules Michelet. Compôs a trajectória dos primórdios da Revolução de 1789 até quase ao Império sob a influência desse historiador, cuja fama chegou a Portugal. Foi por isso que até o nosso Antero se apresentou em casa de Michelet para lhe mostrar poesias suas, mas sem revelar o seu verdadeiro nome, tal era o fascínio que exercia este pensador.
            “Memórias de um Médico” será uma das suas obras mais extensas e com fundo histórico que pode ainda hoje ser revisitada. Foi publicada em França com o título “Joseph Bálsamo”, ou seja, o misterioso e aventureiro Cagliostro, já na conturbada velhice, socialmente ameaçadora, do rei Luís XV, o casamento do neto, que será depois Luís XVI, com a princesa austríaca, filha de Maria Teresa, Maria Antonieta. Como se fosse um terrível presságio, na noite do casamento, uma multidão aterrorizada, por causa do fogo de artifício que foi mal controlado, morreu esmagada ou espezinhada na fuga a que se seguiu o pânico geral. Traça quadros da corte e alguns acontecimentos reais, como foi o caso do colar da Rainha e a paixão por ela da parte do ingénuo cardeal de Rohen, o roubo da jóia e o escândalo que originou e manchou o nome de Maria Antonieta, mesmo que estivesse inocente. Um tão largo período histórico abarca várias gerações em que o real e o imaginário tecem quadros curiosos. A obra começa bem antes da Revolução, na época de Luís XV e vem até ao período pós revolucionário, quase até à época em que começam as aventuras de Edmundo Dantès, conde de Monte Cristo.
    Nessa extensíssima obra, muitos factos reais dos conturbados tempos da História da França são relatados. Outros factos, de pura ficção, confundem o leitor pouco versado em História e seus bastidores.
    A fama de Alexandre Dumas, pai, estendeu-se por toda a França e depois para fora do seu país. Mas o escritor viveu sempre sob alguma nuvem negra que lhe causava o facto de ser mestiço, filho de uma escrava e de um militar. Não se pode acusar nada nem ninguém de racismo para com ele, mas na sua situação social e até na obra, por vezes o drama está patente.
    No campo da ficção, ou Alexandre Dumas, ou um dos falsos autores cujo nome nunca se saberá, coloca um capítulo passado nos Açores, quando um barco, o Adónis, vindo da França em direcção a Bóston, a nova nação americana, por cá passa. [1]


         Antes de Dumas, temos já o testemunho veemente e emocionado de um escritor francês que por cá passou. François René de Chateaubriand, diplomata, poeta e ensaísta com forte influência no romantismo, em plena Revolução, na Primavera de 1791 com 24 anos apenas, passou pelos Açores e descreveu, com toda a sua inspiração poética, a beleza do que considerava o “novo mundo” nomeando especificamente quadros bucólicos da ilha da Graciosa, num mar cor de esmeralda, onde se agigantava a ilha do Pico.
         A ida a terra num bote e o encontro com frades, espantados pelo porte do navio, que era o maior já visto ali, aliava-se ao receio dos estrangeiros que passou à alegria por não serem piratas.
        A multidão, que surgiu para ver os forasteiros, era tal que Chateaubriand declara que lá estava toda a população da ilha. Pareceu-lhe que mais de metade dos habitantes eram frades e um marinheiro inglês confessa que era um falso padre, mas tendo naufragado ali, perdido de toda a tripulação esse lhe parecera a melhor forma de ali viver. Em nota de edição posterior, (1826), o autor afirma que as historias que contava das gentes das ilhas eram fruto da sua imaginação por nada se ter passado de relevante em terra. 
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        Não é claro em qual das ilhas se passa o fatal episódio que Dumas narra, pois os nomes delas nem sequer são mencionados. Mas, como fala da primeira que avistaram, podemos supor que se trataria da ilha de Santa Maria. Além de referir a sua origem vulcânica, atribuindo-lhe elevadas colinas de forma estranha, de aspecto lúgubre, mencionando não terem avistado vivalma. Apenas descortinariam: «Rochedos enegrecidos pela acção do fogo vulcânico, recortes de montanhas com os cumes fumegantes e luminosos, abismos profundos». Quanto ao clima, que se diria quase tropical, relata a existência de grutas, nascentes de água fresca, onde os marinheiros se apressaram a abastecer o navio. Haveria também muitos coelhos e perdizes vermelhas que fizeram o regalo dos caçadores.
          A ilha de Santa Maria, por acaso, tem algumas grutas se desembarcarmos pela baía de São Lourenço onde a amenidade da terra e a beleza dos montes se aliam numa surpreendente perfeição que devia ser quase intocada na época.
    Os passageiros do Adónis tiveram licença de ir a terra para darem um passeio e, numa das grutas, dá-se um encontro dentre dois heróis do romance, Filipe e Gilberto, representantes de duas classe sociais inimigas, o aristocrata orgulhoso da sua linhagem e o intelectual brioso da sua labuta. Surge um desfecho nefasto para o médico, Gilberto. Os protagonistas da história travam uma trágica discussão que termina com o que se supõe ser a morte de médico, filho da plebe. Porém, outro navio vinha já no rasto do primeiro e fica no ar a suspeição de que, afinal, o nosso herói Gilberto não morreria abandonado numa ilha dos Açores, nessa aprazível gruta que se tornou local de um tão trágico episódio.
         É de notar, muito embora tudo não passe de suposições, que até meados do século XX, qualquer viajante, ao chegar à ilha de Santa Maria, tinha de desembarcar de lancha ou de bote de qualquer navio que lá fundeasse, pois não havia cais de desembarque senão para barcos de pequeno porte. Por outro lado, era grande a admiração ao olhar para terra, por não ser visível qualquer habitação a quem estava no mar.
          Segundo melhor opinião, o facto era propositado pois esta foi uma das ilhas mais assaltadas por piratas e, assim tratava-se de uma forma de protecção e dissimulação dos povoados e seus moradores. Ao contrário dos micaelenses que construíram junto à costa, sendo curioso até como um convento, como o da Caloura, pôde ser tão incautamente usado por eremitas ou freiras, o que só se entende pelo encanto da paisagem e amenidade do clima. Santa Maria, em tempos idos, era conhecida pela ilha do vento devida à falta de vegetação o que agora não é tão acentuada.


    Outro autor que se debruça com mais minúcia, vagas semelhanças e maior extravagâncias atribuídas a estas ilhas foi o incomparável Júlio Verne.

         Graças à gentileza do escritor e notável cronista Ferreira Moreno, pudemos consultar e recolher dados de uma obra do célebre escritor de “Viagem ao Centro da Terra” e de tantas outras obras, mas desta feita o romance de aventuras “Agência Thompson & Cª “, da Editora Livraria Bertrand, Col. Obras de Júlio Verne, em dois volumes. É precisamente no 2º volume, a páginas 69 que se inicia uma curiosa descrição das ilhas. Um improvisado guia, devido às peripécias do romance, engana-se afirmando que os Açores são 5 ilhas e depois vai consultar todos os livros que tinha à mão para não errar tanto nas informações dadas aos desconfiados viajantes. Roberto, o personagem que tem o papel de cicerone improvisado, pode ter servido como um bom pretexto para os equívocos das explicações acerca das ilhas. Podemos supor, já que sabemos que Júlio Verne foi à América do Norte, que tenha passado pela Madeira e mais provavelmente ainda pelos Açores, pois era uma escala frequente das rotas dos navios. Pelas observações que faz parece ter um conhecimento superficial das ilhas em contraste com outros dados erróneos que bem pode ser um imaginário construído sobre uma realidade apenas entrevista mas bem documentada acerca do arquipélago. Nota-se que há um conhecimento teórico muito superior ao fraco colorido local e à descrição das ilhas.
         A teoria da velha civilização da Atlântida engolida pelo mar num grande terramoto, referida pelo filósofo Platão, está presente, bem como a lenda das Sete Cidades e dos respectivos bispos que ali se teriam refugiado fugidos aos invasores mouros da Península Ibérica. Antília, a ilha fantástica, também é referida, bem como o erro dos povoadores confundirem milhafres com  os açores, aves que nunca existiram nas ilhas, de datas das descobertas, rigorosas e mais recentemente aceites, com povoamento, terramotos e cataclismos a que nem faltam a correcção de datas.
       Os passageiros em número de 63, o respectivo dono da Agência, Mr. Thompson, o capitão Pip com a devida tripulação do Seamew e cicerone formavam um grupo de 104 pessoas com ingleses, alguns americanos, franceses e holandeses a bordo. As  primeiras as ilhas que avistaram, desde que saíram de Londres  foram as duas ilhas do Corvo e das Flores, do grupo ocidental do arquipélago.
        Mas a imaginação de Verne arquitecta ilhas assustadoras e terras imundas e horripilantes para alguém civilizado aí poder viver. Isso será parte do exotismo que quer emprestar ao arquipélago e a toda a viagem, que não se fica pelos Açores mas passa por outras ilhas do Atlântico? Será também um modo de cativar o leitor por paisagens estranhas e povos com costumes inusitados?

          A ilha das Flores, ao contrário do elogioso apontamento de Chateaubriand, é, para Júlio Verne, um rochedo negro e assustador, arrasado pelos abalos de terra. Os passageiros, temerosos e assombrados, nem queriam crer que lá vivessem pessoas!

        Passam de barco pelas outras ilhas, Graciosa, São Jorge e avistam o Pico e algumas indicações mostram que o aspecto bucólico era um atractivo, embora o mar revolto tornasse a aproximação das ilhas quase sem oportunidades.

        A chegada à Horta é bem mais amena, a ilha do Faial merece forte entusiasmo e as excursões do numeroso grupo de turistas despertam. É grande a curiosidade dos indígenas, que parecem acordar de um pacífico sono, nas suas moradias grosseiras. Aí se aponta para o antigo convento dos jesuítas, como o mais belo monumento construído nos Açores. Mas as referências à extrema imundície das povoações por onde passam são constantes. A beleza da paisagem do Faial e a ida da excursão até à Espalamaca reconciliam por completo Júlio Verne com a região que declara ser o «Paraíso terreal». Ao chegar ao cimo de um monte onde avistam as outras ilhas do grupo central ficam mesmo todos deslumbrados.
          As tradições dos cumprimentos e cerimonial são apontadas como um exagero ridículo. A saudação das pessoas a cada encontro, sem exclusão do médico, padeiro ou sapateiro, é de enorme extravagância para os estrangeiros! Presentear essas pessoas pelas festas era inimaginável!

       Quanto a excursões maiores, lamentavelmente para estes turistas, só puderam aventurar-se e passear-se nas ilhas, na falta de carruagens ou de melhor transporte, em mansos burros conduzidos por burriqueiros tagarelas e diligentes. Não faltaram peripécias das mais desastrosas às mais divertidas nesses renovados passeios.
        Um pormenor muito realístico é a alimentação a que têm de estar sujeitos esses viajantes quando estão em terra. Não faltam referências às vacas da ilha do Corvo conhecidas pelo seu tamanho diminuto, os guisados apimentados, o vinho espesso, o tremoço duro e salgado e o imprescindível pão de milho, para acompanhar todas as refeições. Os protestos quanto ao tremoço e ao pão de milho são inúteis e os «estômagos europeus não se mostram nada contentes». Mas o guia explica: «É o país do pão. (…) Não há camponês que não consuma menos de um quilo dele. Um dos seus provérbios diz: comer tudo com pão faz o homem são».


    Antes de desembarcarem na ilha Terceira, aparece um novo passageiro, que se diz português, Dom Higínio, mais os seus dois estranhos irmãos, que desejam tomar parte da viagem e são aceites. Através deste novo guia, os viajantes vão conhecer melhor as ilhas.
    A bela cidade de Angra é descrita do vapor em termos sedutores e comparada à baía de Nápoles. Aliás, enquanto avistam as ilhas do vapor, a visão destas desperta comentários pitorescos e algum deslumbramento. Depois, ao desembarcarem reconhecem que as terras e cidades são sujas em extremo e, pelo que diz respeito aos terceirenses são avisados de estarem marcados pela sarna e pelos piolhos pelo que o contacto com eles deveria ser cuidadosamente evitado.

        Assim o fazem, caminhando por ruas pouco frequentadas, mas ainda viram igrejas e assistiram numa espécie de estrado à passagem da procissão, causa de todo o alvoroço da ilha.
       Ocorre então um episódio que tem um fundo verosímil. Assistem todos à festa do Pentecostes. Só que foge muito à realidade e não é referida com qualquer pormenor similar ao modo como os açorianos celebram o Divino Espírito Santo, com as suas coroações e impérios. Antes, a festa é motivo para um episódio que terá um fito rocambolesco do roubo de uma cruz mirabolante e cravejada de pedras preciosas transportada pelo bispo na solene procissão. Nada disto é condizente com o modo de ser pacífico e religioso do povo.
    Visitantes anteriores, como foi o caso dos dois irmãos Bullar, que em 1838 cá chegaram e percorreram as ilhas, as impressões são bem diferentes e não desdenham dos seus habitantes nem da beleza de tudo o que observaram. Até admiram a beleza das açorianas, como por exemplo as lagoenses de Santa Cruz na Vila da Lagoa e traçam um perfil psicológico bastante lisonjeiro de alguns habitantes. Em comparação com isso, as senhoras viajantes da Agência Thompson falam dos capotes e capelos tradicionais como uma forma das mulheres ocultarem a seu fealdade!
    Não só a pena de um dos irmãos Bullar, Joseph, que era médico, descreve com minúcia e rigor as viagens a todas as ilhas, menos Santa Maria, como o outro irmão, Henry, que provavelmente por estar doente foi a causa da vinda até cá, ilustrou, com variadíssimos desenhos, curiosas cenas e locais. Pena é que, aquando da 1ª edição, bem como das que se tem seguido, não fossem publicadas todas as ilustrações que o inglês ideou e que continuam arquivadas na Biblioteca Pública de Ponta Delgada. Tal nos foi informado pelo Dr. Estrela Rego, enquanto Presidente do Instituto Cultural de Ponta Delgada e o mesmo lamentou que, na época, não havia verba para tal empreendimento. Muito curiosa seria uma revisão de todos esses desenhos e a sua divulgação ao público. Os poucos desenhos que pudemos ver só aumentaram a curiosidade de os ver a todos.

        Teremos de passar um paralelo entre o que é um livro de cariz imaginário a que se tem de dar alguma plausibilidade e o registo de um diário de viajantes que anotam com fino sentido psicológico e rigor etnográfico os locais por onde passam e as aventuras de uns turistas como Júlio Verne desejava escrever. O exotismo e os contrastes, bem como peripécias da viagem contribuem para o encanto do leitor.
    Ora Júlio Verne, que nasceu em 1828 e veio a falecer em 1905, teria visitado Portugal, Escócia, América e Escandinávia. Apesar disso, parece ter sido um autodidacta nas suas investigações para os cenários e fundamentos históricos da sua extensa obra, tendo sempre um cuidado extremo numa documentação séria, embora fosse um pioneiro na ficção científica. Ficámos seguros do que nos apresenta como teoria e entramos na fantasia em todo o resto. O seu curso de Direito dava uma formação que nada teria a ver com a sua paixão pelas descrições de viagens e toda a espantosa capacidade visionária que ainda hoje é algo que nos deixa perplexos. Curiosamente, apesar desta ser já uma obra póstuma, publicada em 1907, o escritor coloca uma das personagens principias, Thompson a afirmar estarem no ano de 1909, época em que os Açores já tinham uma boa reputação e já se realizara a viagem de D. Carlos e D. Amélia às ilhas. A foto da família real e comitiva na cumeeira das Sete Cidades tem uma certa elegância que se estende aos próprios acompanhantes. Na Terceira, a mesma simpatia e acolhimento, mais do que afável, nega o quadro que Júlio Verne traçou.
    Nas Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, em 1989, num encontro de vários historiadores e estudiosos, a conhecida historiadora, Carmen M. Radulet, vinda de Viterbo, da Universidade da Tuscia, escreveu uma comunicação acerca de Júlio Verne, referindo-se aos Açores, Madeira e Canárias, pp. 1027-1036, com base no cenário " exótico" que encontrou no romance em questão " A Agência Thompson & C. ª".
    A saída do Seamew da Terceira não se fez sem algumas dificuldades. pois as autoridades fecharam o porto por causa do roubo do valiosíssimo crucifixo. Contrariando ordens dos governantes, e debaixo de fogo bem inofensivo do forte de São João Baptista e do morro do Brasil, a viagem não é interrompida pois todos os vagares só trariam mais despesas de alimentação e Thompson, a bem dos lucros da sua Agência, não estava para delongas. Por isso e aconselhado por Dom Higínio a não temer a artilharia portuguesa, sob as ordens do habilidoso capitão Pip, a embarcação fez-se ao largo porque «um marinheiro inglês joga à cabra-cega com as balas portuguesas».
    A chegada à cidade de Ponta Delgada não se faz sem algum tumulto à roda do navio e desassossego do capitão e passageiros que já receavam os açorianos, depois da sua fuga aventurosa das autoridades da Terceira.
    Para dar algum colorido local, surge uma nota romanesca na pessoa de uma bela micaelense, órfã que se refugia a bordo do Seamew para fugir a uma odiosa mulher, entre bruxa e usurária, que não permitia o seu casamento. O nome da bela jovem era Targela Lobato, e tão estranho é, que jamais se ouviu uma açoriana assim denominada. O noivo, que se lhe veio juntar no vapor, teve outra sorte por se chamar Joaquim Salazar que é menos exótico. Mas as peripécias da fuga, refúgio no Seamew e protecção dos passageiros contra a multidão que se mostrava um obstáculo ao rapto, permitiram que o casamento se realizasse. Através de um rapto a lei tornava possível e favorável ao jovem casal a sua união e o episódio acaba com a feliz celebração da boda. Tudo bem podia ser realizado noutro lugar e por acaso foi nos Açores. O baile dos noivos, com quadrilhas, polcas, mazurcas, danças com castanholas e o barulho inusitado de toda uma multidão em festa ganha em exotismo o que perde em verosimilhança. O lundum surge como uma dança típica nacional mas que pouco terá a ver tem com os micaelenses e menos ainda com os balhos simples a que o povo sempre nos habituou. Em vez da vaga nostalgia e da música da viola da terra, é uma dança viva e exuberante que nos recorda Espanha, África e Brasil. Temos povoadores vindos de todos esses lados e ainda mais da Flandres ou de Marrocos pois sofremos muito com os ataques dos piratas e até de ingleses mas dessa dança não encontramos memória.
    Uma noiva, das mais endinheiradas, trajava usualmente o capote e capelo típicos, azul escuro ou negro que serviria para toda a vida, em diferentes ocasiões, e no caso das mais pobres nem tal havia. Os açorianos eram um povo pobre, mesmo muito pobre, sendo esse pão de milho que tanto desagradou aos ingleses um alimento que inicialmente foi mal aceite mas depois a fome crescente obrigou a um uso comum entre o povo. Ainda hoje se distinguem o pão de casa de farinha de trigo, o pão da loja e o pão de milho.
         Quanto às nossas averiguações acerca do lundum, a dança referida como nacional, levaram-nos até ao Brasil e deste às suas origens africanas com o batuque e cerimónias religiosas vindas do continente negro. A dança foi depois adoptada em Cabo Verde pela população de escravos trazida pelos portugueses. Os escravos negros transportados para terras brasileiras levavam os seus cultos, cerimónias, danças e cantares. O batuque do lundum, é, mais propriamente, do povo banta de Angola, da Costa do Marfim e da Guiné. Chegou a Lisboa no século XV e os escravos negros fizeram com que fosse dançado nas ruas e bairros pobres, mas muitas vezes visto com algum preconceito e proibições régias. No século XVII e XVIII assimilou-se e aculturou-se o lundum que passou a ser conhecido das classes mais baixas, depois dos burgueses e até nos palácios e teatros. Já então estava alterado passando a ter a dolência que o aproxima do fado.
         Até onde foi a fantasia de Verne e o que possa ter observado, na sua possível passagem pelos Açores, demonstra um espírito investigador mas sem o rigor de quem contactou algum tempo com os ilhéus.
          Assim que saíram da cidade, os nossos viajantes notaram como todo o terreno era aproveitado para cultivo e com frondoso arvoredo atribuído aos esforços das autoridades. A Ribeira Grande é já denominada cidade e uma burricada leva a excursão até à Ribeira Quente numa travessia bem rápida para uma tal distância.
         Se todas as ilhas nos causam espanto, os episódios mais marcantes estavam reservados para a Ilha de São Miguel. A jovem Targela e Joaquim foram um toque de exotismo, agora algo bem mais real se relata.
    Um dos mais pitorescos quadros será o das Furnas em que as caldeiras são descritas com alguma exactidão, não faltando a referência à assustadora caldeira de Pêro Botelho e cenas de alguma comicidade. Dada a crença nos efeitos curativos dos vapores das caldeiras, tendo um dos personagens experimentado um banho de vapores e de lama dos quais «talvez não viesse curado mas indubitavelmente cozido». Não satisfeito com esta “tortura”, o famigerado Dom Higínio, açoriano de duvidosa origem, para curar o doente, um tal Blockhead que seguia na viagem, ordenou que se lhe aplicasse «um remédio popular em São Miguel, remédio indicado há muito tempo à razão humana pelo exemplo dos animais incomodados pelos parasitas». Seria amarrado e despido que o pobre foi mergulhado nessa lama da caldeira de Pêro Botelho «uma espécie de caverna que os indígenas crêem fortemente ser uma das bocas do inferno».

         A cena é narrada com certo tom de comicidade que dá mais colorido e vivacidade à descrição. É claro que o desgraçado, dada a temperatura bem elevada, «já não podia mais e começou a soltar verdadeiros rugidos, cobertos pelas estridentes gargalhadas dos seus impiedosos companheiros». Tudo terminou com um enorme susto para os viajantes com o «espantoso bramido», o fumo, a lama e tudo o mais que a imaginação de Júlio Verne emprestou à terrível caldeira e os fez fugir velozmente apesar dos avisos dos guias que os tentavam serenar. Quanto às propriedades curativas dos vapores sulfurosos e lamas das caldeiras nem nessa altura o escritor se atreveu a proclamá-los, interroga-se apenas acerca das crenças dos indígenas e assegurando que Blockhead, não mais se queixou.  Mas, ainda desconfiado, Júlio Verne, levanta a hipótese dele ter uma doença imaginária.
    A indiferença com que a maioria dos visitantes passa pelas lagoas repete-se aqui.

           Espanta-nos como isso não os extasia e pelo contrário, acham o cenário repetido e monótono. A Lagoa do Fogo não é causa para espantos ou louvores à sua beleza incomparável em qualquer parte do mundo. Será que hoje em dia, estamos mais sensíveis às belezas da Natureza? A dicotomia entre a vivência nas cidades e no raro meio natural que se nos apresenta, oferece-nos a possibilidade de ser capaz de entender o silêncio, os cimos ventosos, a serenidade das águas apenas cortadas por um pio de ave, um grupo de gaivotas que levanta um gracioso voo e aquilo tudo nos possibilita um falso mas desejado regresso ao mundo da criação?


    Recordamos que só no Renascimento, no século XIV, é que alguém subiu a um monte, o cume do Monte Ventoux apenas para ver a paisagem. Foi o humanista e poeta, Petrarca, nascido em Arezzo em 1304 e falecido em Pádua em 1374 e justamente célebre.
    As desventuras do viajante Blockhead ainda não tinham sido tão desastrosas como as que se seguiram. Agora é uma enlouquecida récua de porcos que ataca o infeliz que se assusta terrivelmente. Depois de uma descrição histórica dos terramotos, providencialmente, logo a seguir, todos assistem aterrados a um desabamento de rochedos que por um triz não causa a sua morte. A maior estranheza deste fenómeno está nas «terríveis convulsões de terra» mesmo a pouco mais de cem metros dos apavorados turistas sem abalar o chão onde se encontravam! A desaparição dos guias micaelenses e a perda de quase todos os burros que montavam foi o único desastre. Ainda restava a vista das Sete Cidades que merece todos os encómios para contrastar com a indiferença com as outras lagoas por onde tinham passado fleumaticamente.
    Pode dizer-se que a viagem às ilhas proporcionou muitas aventuras e alvoroço à população, pois ainda tiveram mais um encontro com as autoridades, sempre desconfiadas destes viajantes que relacionavam com o espantoso roubo das pedras preciosas da famosa cruz.
        O último mistério termina, quando o estranho Dom Higínio e os seus duvidosos irmãos demonstram um enjoo terrível e se mostram gravemente doentes em seus camarotes. Já estavam perto das Formigas quando esse mal-estar se revelou e o estado revolto do mar foi considerado o causador. Mas o mal agravou-se sempre, por mais cuidados prestados, os infelizes pioravam a olhos vistos, parecendo por fim moribundos. Como último recurso, o nosso herói Robert, para acabar com as terríveis náuseas, aconselhou dar-lhe a beber água quente.
          É então que se desvenda tudo! Os desafortunados e engenhosos ladrões acabam por eliminar do estômago, em agonias de morte, uma bacia cheia de deslumbrantes pedrarias, nem mais nem menos, para cima de trezentas pedras preciosas, entre elas diamantes esplêndidos.
        Então tudo termina da melhor forma. Há uma recompensa pela captura dos larápios, devoradores de pedras preciosas que são devolvidos à autoridade e o Seamew segue novos rumos e novas aventuras em direcção à bela ilha da Madeira.
           Mal sabiam a sorte que os aguardava em Cabo Verde com naufrágios, a ida até as Canárias e por fim um regresso de uma viagem tão exótica como romanesca.
             Não é em vão que o autor de «Viagem ao centro da Terra » é tido como um escritor imortal e a sua imaginação prodigiosa. Para os açorianos, este é um romance de viagens que nos leva a descobrir como podemos ser estranhos até para nós mesmos !

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NOTAS:

 

1. In. “Memórias de um Médico”, José Bálsamo, Edição ilustrada para Portugal e Brasil, Empresa Literária Fulminense, Rio de Janeiro, 1877 1ª Parte, Vol. III. pp. 440-447.

2.   In." Ensaio Histórico, Político e Moral das Revoluções Antigas e Modernas”, com “Notas Inéditas de um Exemplar Confidencial”.   http://www.poesies.net