"O RISO DA ESCRAVA "

  •  Reflexões sobre Sociologia das Traduções

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2007 )

 

      

       

  Elogio da Meditação

[ ©   Pormenor da Escadaria do "Jardim Botânico" do Porto.  Porto.    2007]

 

 

 


 
  1. Ocultação do passado

 

     Com a sociedade que inevitavelmente se torna globalizante, os conceitos em geral terão de suportar alterações e ajustamentos constantes. A permanência na mudança é um fenómeno cada vez mais acelerado e exigente. Não podemos mais falar de um pensamento linear ou projectivo da História como se procurou fazer tanta vez até agora sem favorecer um projecto que não contempla, pelo menos, a tentativa de não estar só do lado da Europa ou até do Ocidente.
       A Sociologia sempre se guiou com base em previsões. Portanto, ao referir-se a Hegel, a sua perspectiva impede-a de poder usar nesse sentido na sua prática social.
       Não foi essa a verdadeira herança de Hegel e a sua filosofia com toda a sua astúcia contém um devir. É arriscado dizer o que se entende por este sistema que não tem fim, mas um recomeço até ao infinito. O seu movimento é incessante e não estático nem circular, como se quer fazer crer. A força é centrípeta e centrífuga ao mesmo tempo que traça uma espiral do infinito do Ser, só ele se transcendentaliza a si mesmo e a cada devir “se torna mais”. Hegel escreveu num tempo do fim da História, tal como é hoje para recomeçar todas as manhãs. O filósofo é aquele que «pensa a vida» mas não dá panaceias aos políticos ou à sociedade.
       Com o positivismo, A. Comte
[1] aceita o principio de que (...) “Está, portanto, evidentemente muito conforme com a natureza do espírito humano que a observação do passado possa facultar a predição do futuro, e que o possa fazer tanto em política como em astronomia, em física, em química e em fisiologia”.
       O passado pode ter uma dimensão que altere o futuro, do mesmo modo que o futuro pode altera o passado, pois domina a interpretação desse pretérito reconstruído tantas vezes quantas as épocas determinam que seja. Já George Orwell
[2] referia o facto de se poder reescrever continuamente a História a mando de um “Big Brother” que obriga a alterar mais e mais esse passado como que traduzido para um presente. “Dia a dia, e quase minuto a minuto o passado era actualizado. (…) Toda a história é um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fossem necessárias[3]
       “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado” sintetizou Orwell. Agora, porém, parece que a situação se inverte. Há passados que ainda estão bem presentes e futuros que já são passados. O presente nunca se alargou num espaço vasto e partilhado. Vale a pena pensar na tradução de tempos quando se encontra um espaço comum, mesmo que seja virtual ou efémero. A utopia totalitária não tem lugar assegurado, mas uma sociedade organizada e com regras aceites, está muito distante do mundo do acesso que surge depois da Era da Pós Modernidade.
        Vivemos numa encruzilhada de multiplicidade de tempos que nega a contemporaneidade comum de todos eles. A valorização excessiva da actualidade, num aqui e agora que não parece ter limites, deve ter condicionado a perspectiva de Boaventura Sousa Santos quando se refere a uma "expansão do presente
[4] que julga necessária.
        A expansão do presente tem provavelmente subjacente uma ideologia oculta que involuntariamente rejuvenesce todos os actores sociais. Não há lugar neste palco nem para crianças nem para idosos, senão nas franjas dos excluídos ou semi ocultos. Talvez, actuem como se fossem os coros das antigas tragédias gregas. Sabemos das tragédias de forma velada, pode dizer-se mesmo traduzidas pelos media, são mesmo uma banalização e um espectáculo mas não se devem mostrar, mas traduzir e representar.
         Na Antiguidade, o pudor do génio grego ordenava que se escondessem os acontecimentos trágicos. Hoje, talvez seja o terror da verdade assim nos obrigue ou envergonhe. Temos muita ocultação e revelação com a globalização. A denúncia dos factos é feita por vozes dispersas e, ainda mais, perplexas. A dominância tecnológica divorciou-nos da terra, da realidade. Tudo pode ser virtual ou real. As pessoas falam em sentir o cheiro da terra e do mar mas como se fosse algo muito distante e para além da sua presença. Nós somos da Terra, deste planeta, única casa que conhecemos e amamos tanto e tão mal. Precisamos mesmo de traduzir tudo de um modo suave e teórico para não nos ferirmos com as realidades excessivas?

 

 2.   O Novo e o acesso

 

    Para conseguir viver na contemporaneidade, com a tal expansão do presente que se mostra tão rico e plural, há que permanecer esforçadamente jovem como o tempo que se quer imóvel e palco de espectáculo. Depois da entrada, o mais rápido possível, na adolescência há que permanecer lá a todo o custo e enquanto a fortuna dure. Todos os esforços serão válidos logo que as pessoas tenham acesso aos meios. É aí que a Pós Modernidade morre com a nova era, a Era do acesso.
       Não é preciso ter, apenas, conseguir acesso, aos grupos, ao cartão mágico, às tecnologias, à visão do que se escolhe dele. O limite? Apenas o tempo, ou a revolta das máquinas, o caos dos transportes, a super informação, o excesso esmagador da mudança.
       A globalização pode facilitar uma falsa visão de um todo que se limita apenas a alguns e exclui cada vez mais grupos e pessoas reais. Mesmo que se busque "conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso" segundo Boaventura Sousa Santos, o esquecimento das origens amputará o futuro da maior riqueza que temos que é a herança cultural. É certo que a memória é individual e morre com cada pessoa mas o envolvente é um todo opaco se não aprofundarmos como é que chegámos aqui e as raízes da civilização.
    \  Será uma questão perigosa, que nos devia ligar à terra, atender ao nosso desperdício global, ao bem-estar e consumo sem ética que tentamos empurrar para debaixo do tapete. O que emerge asséptico e informatizado é a abordagem de novos problemas, com todas as novas disciplinas e saberes.
       O conceito da Sociologia sofre mutações velozes tal como se transformou a sociedade. Os factos, fenómenos, comportamentos, descobertas são tomados como resultado de um processo social. Um risco de se esquecer a pessoa que todos somos. Sem contexto não existem pessoas e é pelo contexto que agora chegámos a elas mas indirectamente traduzidos em gráficos, números, estatísticas.
           Numa consulta médica de rotina, podemos lá estar presentes, mas o médico não quer nada connosco, quer sim o gráfico, o papelinho onde os números cantam e traduzem o nosso estado, as radiografias que nos desventram, os resumos que nos acusam. Tudo isso é traduzido, depois interpretado e então nós somos!
       Este é um breve exemplo mas há um enorme cenário onde os interlocutores não se vêem e os vizinhos podem estar a milhares de quilómetros enquanto ao nosso lado existem tantos estranhos, que leva a pensar que teremos de extrapolar o trabalho de tradução para um campo nunca antes trabalhado.

 

 3.  Traduzir, porquê?

 

   A tradução terá de ser uma aprendizagem das linguagens sim, por certo, mas também dos sujeitos nos seus locais, do modo como as usam, da integração no meio ambiente, no cruzamento de conceitos, na desconfiança científica que não aceita a ingenuidade do que parece semelhante mas tem um fundamento muito discordante se bem que o dissemelhante possa conter algo possível de traduzir sem trair pois na origem tem uma base comum, embora se manifeste de modo tão desconcertante.
        Os costumes e tradições, as crenças, a ética e justiça têm de estabelecer uma semelhança entre si que a tradução tem por objectivo estabelecer. Trata-se do mais controverso e árduo ponto em que a universalidade se assume com os princípios do tradutor e do Outro, seja esse Outro como for, que respeito deve haver concomitante a essa tarefa? A pergunta para a qual não temos resposta é: Qual o critério para a escolha do que se deve traduzir? Qual a norma? Onde se dá o encontro das traduções?
         Não se pode tentar apagar as diferenças porque são os sentimentos que se tenta traduzir, mesmo sem a facilitação ou recorrência à palavra. O antropólogo e o sociólogo têm de aprender a traduzir num plural com denominadores comuns, por mínimos que sejam, mas que tornem os seres humanos menos distantes uns dos outros. Não se trata de uniformizar mas de partilhar o que melhor pode trazer a globalização.
       A sociologia da tradução teórica e a sua prática, surgem nas diversas experiências que têm uma face oculta, um halo de significantes idiomáticos que remetem para formas de sentir e percepcionar desiguais.
       Haverá necessidade de insistir numa hierarquia quando se fala em tradução? Ao ler “A Odisseia”, “Os Lusíadas”, o “Pato Donald”, a revista científica ou cor-de-rosa, ou até “A misteriosa chama da Rainha Luana”, o texto torna-se vivo ou morre nas mãos dos leitores se estiverem desprovidos de códigos para a tradução.
        O que se traduz é o que tem significado, interpretação. É vida, numa liberdade ambígua de trocas, tanto mais ambígua quanto menos vivo estiver um dos actores sociais.
     Todos estão dentro do seu contexto social e representam os seus papéis, com um conformismo de que não se querem dar conta ou não gostam mas como a sociedade determina e entende. Desocultar isto e já um passo para traduzir e ao mesmo tempo desmascarar os papéis sociais que realmente as pessoas desempenham.

 

  4.  Um personagem sem texto

 

    Um ser humano sem funções, no meio da selva de betão, está mais perdido que numa floresta. É um actor sem papel, um ser errante, sem possuir referências, nada o identifica, normaliza e regressa à necessidade de nascer de novo, como se tivesse uma amnésia ou viesse de outro planeta.
        “Na origem está a significação
[5], afirmava Roger Mucchielli acerca de um comportamento aparentemente absurdo, que um viajante, sem as referências adequadas, queria perceber. Na realidade o que faltava era a tradução do acontecimento. 
         O tradutor foi, muitas vezes, considerado um traidor, mas não podemos vê-lo assim em Sociologia, é antes uma frágil ponte, um intruso ou, no melhor dos casos, alguém que deseja uma partilha entre seres humanos enriquecedora para todos, num respeito mútuo que levará muito tempo a aprender a praticar e poderá engrandecer muito a sociologia do futuro.
       O medo do desconhecido é de sempre. Claro que o estranho e o incompreensível podem ter um certo fascínio, mas nunca uma proximidade igualitária. Já lemos o encontro de Robinson Crusué com a pegada na areia e depois com Sexta Feira, para não falar dos encontros trágicos dos espanhóis com os indígenas da América Central ou dos colonos com os Peles Vermelhas à chegada à América do Norte.
       Há uma perspectiva optimista de unidade social em função de valores nos trabalhos do investigador da história do pensamento, o búlgaro Tzvetan Todorov. Este autor coloca o problema das raças, especificamente a branca, como uma barreira que leva aos racismos. Todorov escreve que, tanto o cristianismo como o Islão, merecem ter um julgamento suave pois o seu ardente desejo é o de converter os outros, os antigamente ditos “infiéis” porque estão convencidos da sua verdade e do Bem que traria aos outros. Em vez de os condenar vê-os como “o berço da ideia da humanidade e da universalidade que (…) deu origem ao pensamento humanista que continua a ser, quando não é usado como simples camuflagem, a melhor barreira contra o racismo
[6].
          Cada povo tem os seus preconceitos face aos outros, mas o conhecimento de si passa pelo conhecimento do outro. É preciso porém um grande esforço vencer a tentação de traduzir a partir do nosso mundo.
       A tradução deve envolver a tolerância e uma certa suspensão de juízos de valor. Nem o riso e a hilaridade diante do estranho, nem o fascínio pelo exotismo, nem o desprezo ou superioridade mas uma proximidade pela integração no que de mais humano todas as culturas ou saberes possuem a possibilidade da partilha.
     Toda a difusão de meios e usos dos conhecimentos técnicos e científicos, a informação plural, o repúdio do conceito da barbárie quando nos aproximamos de tradições que não entendemos, tudo isso pode ser repensado para que uma nova sociologia surja. Nascerá com a quebra das barreiras, como foi simbolicamente derrubado o muro de Berlim, para uma nova Europa que ainda é só esperança. Nascerá com o aprofundar das nossas raízes comuns como humanos e, descobrindo esse destino de todos, sem exterminar as diferenças e tentando entender e traduzir em humanidade as semelhanças.

 

5.   Quando os búlgaros eram bárbaros…

  

   Podemo-nos recordar essa época do imaginário europeu, quando se confundia este povo com os Hunos, como um estádio inicial de distanciamento ironicamente vencido pela integração desse povo na próspera Europa. Lamartine nas suas viagens consegue que conheçamos melhor a França do que as terras por onde passa. Tudo é traduzido com o pólo de referência do seu país. A continuidade dessa ambiguidade da tradução sociológica está nas viagens, comerciais com vista a trocas e lucros, turísticas em busca do exótico, do diferente, do estranho, ficando porém sempre do lado de fora, como se o espectador/observador não estivesse a fazer uma (má) tradução. 
       Não há nada universal nas estruturas sociológicas?
       Ao analisá-las vemos que procuram, através de uma teoria que pode até tentar ser muito científica, tomar parte activa na transformação social. Por trás dessa filosofia está alicerçada toda uma tomada de posição face ao Homem. A tradução desse Homem, na multiplicidade das suas formas, é um trabalho que a nova sociologia não pode rejeitar. Poderia haver o risco de um reducionismo sociológico como houve com o sonho do esperanto como língua comum.
        Temos de colher, nas palavras de Boaventura Sousa Santos, uma abrangência e alcance da tradução que nunca teve tanto impacto como poderá ter nesta época, quando escreve: “
O trabalho de tradução é complementar da sociologia das ausências e da sociologia das emergências[7]. (… A tradução não se reduz aos componentes técnicos (…) é simultaneamente, um trabalho intelectual e um trabalho político[8]. Terá de ser também um trabalho emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do carácter incompleto ou deficiente de um dado saber e de uma dada prática. 
        Acompanhando a banalização do espectáculo do sofrimento, traduzido em toneladas e mais toneladas de imagens, fotos e relatos do “longe” mas que tem o carimbo do perto, do “teatro de guerra”, como se diz onde pode morrer quem tira a foto porque o fogo amigo o atinge, por tudo isso, Susan Sontag
[9] interroga-se e interroga-nos acerca da veracidade desse «nós» que pretendemos quando o outro está à distância do telecomando do sofá e a nossa liberdade. Esta corajosa socióloga, nega a desaparição da realidade face ao que nos é apresentado já que «cada situação (…) se transformar em espectáculo para ser real – quer dizer interessante – para nós», além de ser cínico, é um erro. Aceitemos que há pessoas ansiosas por se transformarem em imagens, em celebridades. A realidade teria abdicado. Só haveria a representação. Com veemência, Sontag rejeita tudo isso ao afirmar: «é um provincianismo de cortar o fôlego. Dizê-lo é universalizar os hábitos da visão da reduzida população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias se convertem em entretenimento». Se nos sentimos mal, ao ver e saber as atrocidades nem por isso nos tornamos activos defensores da Paz. Sagazmente, Sontag aponta para o perigo de vermos tais cenas e imagens de um modo que nos «podem acusar de indecência de olhar, e do modo como nos são oferecidas, rodeadas de anúncios de cremes para a pele, de remédios para as dores, de jipes todo o terreno. Se pudéssemos fazer alguma coisa quanto ao que as imagens nos mostram, pode ser que não nos interessássemos tanto por estas questões[10]».
       A defesa da realidade, face a uma representação sua, é uma função urgente da Sociologia para não se encerrar em árduas mas ineficazes tarefas de esconder, em nome seja do que for, o objectivo que lhe dá existência.

  

  6.  O que se quer ver

 

   A estrutura afectiva de um sujeito não é só o estado actual da sua emoção, conforme começa a explicação psicológica de um sujeito, temos de incluir essas estruturas na sua memória, isso que o faz ter uma identidade que se reconhece no tempo. Assim sucede com um povo, ou uma cultura. A estrutura visível, o estado actual dos seus valores, das suas formas de vida e visão do mundo só se entendem por eles e por nós se os queremos estudar, procurando a multiplicidade de variáveis que estão traduzidas num breve tempo e espaço. A comparação apressada e exterior pode levar a erros grosseiros como os que cometiam os muçulmanos ao compararem os templos budistas e os cristãos, com os seus cânticos, os seus monges, as flores e velas, as formas de vida pobre e desprovida de bens terrenos. Isso conduziu a um erro de tradução que criou mitos e forjou mundos imaginários.
      Só se vê o que se sabe, nada é evidente sem uma tradução significativa. Num quadro só se pode ver o que se põe lá, para além do quadro, este vive do que traduz para alguém. Depois de traduzido um texto pode ficar indecifrável para o seu autor. Com uma cultura acontece o mesmo e as teorias podem ter toda a grandeza e profundidade sem alterar em nada a distância entre pessoas, povos e grupos sociais.
       Assim se coloca a questão de traduzir como interpretar, simbolizar, não no contexto de desigualdade entre quem traduz o quê e para quem, mas na consciência mais rica da partilha da cultura e dos saberes. É claro que haverá sempre um halo de obscuridade e de subjectividade, mas não um subjectivismo elitista ou fechado a um dos lados da tradução. O risco de perder a identidade existe. Mas há forças centrípetas nas trocas e no enriquecimento multiplicado por experiências partilhadas. Podemos ver como a especificidade de um conhecimento é cada vez maior. O exemplo da Linguística, da História e da Literatura, que Mário Maestri
[11] com sentido de humor chama as três irmãs uni vitelinas, por serem filhas de um património comum e não se darem entre si, senão para se lamentarem de “suas dores e dificuldades[12].
         A especificidade de uma ciência está tanto mais definida quanto mais não quer ocultar a sua origem e abarcar a visão do todo.

    

 7.   Uma «nova Sociologia»?

 

    Ao falar neste caso particular, temos de reflectir, como muito bem nos vem desafiar a Professora Ana Paiva[13], ao atribuir à Sociologia, como ciência social que é, ou deve ser, o cognome de protociência. As palavras de Boaventura Sousa Santos, na sua interpretação, serão proféticas quando fala de um novo paradigma sociológico. Mas as perguntas do texto da socióloga podiam ser já resolvidas como o exemplo “é a estrutura que condiciona a acção, ou é a acção que condiciona a estrutura?[14]. Esta questão abarca todas as outras que se lhe seguem. Passando por Ortega Y Gasset, pela ética, pelo humanismo de Levinas, por Kant e a sua nobre visão do Homem, pelos arquétipos junguianos encontrar-se-ia alguma resposta satisfatória. Porém seria a declaração de uma precariedade de fundamentos e da necessidade da filosofia.
       É claro que todas as ciências buscam uma autonomia e uma libertação da filosofia, mas mesmo que assim seja será correcto seguir por aí? Para depois, num lamentável regresso de filho pródigo, retroceder e pedir a sabedoria que perdeu depois de todos os caminhos, longamente percorridos em vão, leiam-se ciências, porque não encontraram a luminosa resposta.
       O sonho do Santo Graal é prosseguir em busca do objecto capaz de fazer surgir o inefável dos estudos da Sociologia já sem mais traduções e pleno de luz.
         Sem poder recuar, a possibilidade da interdisciplinaridade, será mesmo o que resta? Não queremos, de modo algum, ter uma atitude crítica para a investigação da nova sociologia, mesmo que isso implique um novo paradigma, ou talvez o primeiro paradigma que iria existir nesse campo.
        O que mais inquieta é não encontrar causa de mudança pois esta tem certos requisitos a cumprir que não estão presentes. Os cientistas não podem pertencer a dois paradigmas e quem está realmente dentro de um não pode passar para o outro. Mais do que qualquer outra alteração é a mentalidade que muda. Não encontramos nos eficientes estudos do neurocirurgião António Damásio esse salto para outro modo de pensar que altere o satus quo das ciências sociais.
        Reflectindo sobre o que escreve António Damásio, encontramos esta tese: “Creio, evidentemente, que os comportamentos éticos dependem da actividade de certos sistemas cerebrais… são sistema ligados à regulação biológica, à memória, à decisão e à criatividade. Os comportamentos éticos são, eles mesmos, o resultado de certas sinergias entre essas actividades
[15].
       Passar o conceito de homeostasia para o campo social quando já temos conformismo, a pressão social e toda uma panóplia de conceitos, não trará mudança de paradigma. “O homem neuronal
[16] também já surgiu antes e o ser humano teria uma mútua solidariedade por razão de uma consciência colectiva. Indo um pouco mais longe o altruísmo estaria nos genes por isso existiria a partilha e o egoísmo entre membros familiares. São muitos os adeptos da sociobiologia inventada por Wilson. O sinal destes excessos é denunciado por vários pensadores como o Professor Germano Sacarrão ou Jean-Marie Domenach[17] que criticam a visão em que “As culturas não passam de mentiras, graças às quais o indivíduo tenta persuadir-se de que obedece aos valores e não ao seu genoma, que se sacrifica pelo bem e não pelos seus descendentes, porque o altruísmo é a astúcia suprema da espécie[18].
      Não será o exacerbado pragmatismo empresarial do psicólogo Daniel Goleman
[19] acerca da sociedade numa vereda comum e uma extrapolação arriscada e uma ilusão desumanizante? A tradução das emoções em fórmulas cognitivistas, passando para outra linguagem dominante todo o qualitativo afectivo não é apenas uma mudança de rótulo. Embora possa trazer benefícios para lidar com a afectividade, a tentação do controlo e domínio da emoção e frieza racional que sempre está subjacente. São muitos os psicólogos que apontam para a fragilidade das suas teses, que até são acerca de uma sociedade utilitarista e com uma ideologia que se coaduna com o Self vencedor, dominando e utilizando a emoção, sentimentos e afectos para o sucesso na perspectiva que não tem tradução muito viável?
       É certo que a especialização é um pólo aparentemente oposto ao interdisciplinar, mas a sabedoria não está nem num campo nem no outro. A sabedoria estará no campo do humano. Definir o homem, como diz o poeta «esse animal aflito», é matá-lo.
       Partir da neurologia para, com todos esses dados colhidos de múltiplos lados até caracterizar os elementos constituintes do homem social, tal como a Professora Ana Paiva aventa causa, no mínimo, alguma perplexidade. Não deixa de ser uma aposta e uma escolha.

 

  8.   Nos corredores das ciências

 

    A tradução destes dados, até chegar à sociologia, atravessa tantos corredores das ciências que o prato é para comer frio, para não dizer podre. Se os sentimentos, emoções, toda a axiologia e afectividade dos seres humanos, podem ser “respostas reflexas”, as emoções sociais que nem são apenas humanas, requerem uma interioridade e subjectividade tradutora na preparação ou adaptação ao ambiente.
       Curiosamente não foi Damásio o primeiro a tentar dar esse sentido de inteligência emocional. Já na Antiguidade assim aconteceu. Muitos filósofos notaram como a bílis ou os músculos alteravam os temperamentos. Começaríamos por citar o próprio Descartes, que Damásio refuta, e o seu “Tratado das Paixões”. Entre muitos, em 1902, surgia a “Psychologie Du Rire", de um filósofo Dugas
[20] que dedicou mesmo um capítulo à função moral do riso, depois de dissecar fisiologicamente as diversas teorias do hilaridade. Se traduzíssemos o Homem, por o ser que ri, já tinha um ponto que o afasta, – quase – dos animais para quem António Damásio estripa sentimentos, consciência e vontade. Porém dá à neurologia um poder que pode até ser a resposta para a consciência colectiva e escolha do bem e do mal. Resta sempre saber o que é o Bem e o Mal.
    A tentativa parece ser de todos os tempos, Hyppolyte Taine já tinha esta fórmula inesquecível “Não importa que os factos sejam físicos ou morais: todos têm causas. Há-as para a ambição, a coragem, a veracidade, como para a digestão, o movimento muscular, o calor animal. O vício e a virtude são produtos como o vitríolo e o açúcar
[21]..
        Mesmo combinando a genética com o meio, o reducionismo neurológico é uma tentação. A interdisciplinaridade tem o risco da dispersão por corredores científicos onde se cruzam, mais do que se completam, as teorias com os seus conteúdos específicos e onde cada tradução é mesmo uma traição.
            O sociólogo, ao estudar o fenómeno social humano, tem, por vezes, a tentação de se aproximar excessivamente dos outros animais, ou, por razões opostas, a sua proximidade dá também medo de descobrir cada vez melhor como estamos num frágil equilíbrio, na separação de tudo o que se reporte a sentimentos, emoções, vontade e até inteligência nos animais. O reducionismo ao instinto é uma herança tão antiga como Aristóteles, passa pelos animais máquinas cartesianos e acaba no extermínio das reservas e na domesticação excessiva do animal escravo, transgénico como o nosso fiel e bondoso cão. Qual a sociedade a que pertence o cão?
         Diz muito seriamente a Professora Ana Paiva, na linha de Damásio, que “o cão, por exemplo, tem emoção, mas não tem vontade
[22]. Temos forte dificuldade numa definição da vontade sem implicações éticas, psicológicas e ideológicas mesmo.
        A Etologia veio mostrar como o homem e os outros animais têm laços comuns, até mesmo na inteligência e na agressividade. «Quanto mais inteligente, mais agressivo», afirmava Konrad Lorenz e colocava o homem na primeira fila.
        Seguindo esta trilha, Damásio afirma a raiz da ética da seguinte forma: «A essência do comportamento ético não parece ter começado com os seres humanos (…) A construção a que chamamos ética deve ter começado como parte de um programa geral de regulação biológica»
[23].
        A possibilidade de um biologismo ético é a ambiguidade do neo darwinismo social que abre as portas para algo obscuro, quiçá extremamente perigoso.   
        O risco da interdisciplinaridade traz a dificuldade de definição do objecto de estudo, a dispersão, a tentação de uma espécie de “burocracia” disciplinar, de citações de um campo para outro, disparando para os todos os lados, sem atingir objectivo algum.
        Ora a Sociologia geral devia ter, ao invés do que acontece com muitas ciências, uma consciência forte do todo social mesmo que trilhe caminhos distantes de “casa”. A necessidade de definir e defender valores éticos que se possam universalizar, sem dano para a dignidade humana, é premente.
         A sociologia das traduções não pode ser um paradigma novo sem a criação de um contexto onde a sua prática se realize, o seu objectivo seja definido, os tradutores tenham meios de usar as suas técnicas.

   

    9.      No princípio está o fim

 

    A zona de trabalho de tradução exige labor intelectual, interpretativo e argumentativo. Neste ponto, é muito curioso como Boaventura Sousa Santos[24] remete, simbolicamente, o perfil do bom tradutor – independentemente aceitar ou não de aceitas as suas teses – para o sábio filósofo que não se separa nem da teoria nem da prática.
        Dominar toda a subjectividade ou inserir-se por completo nela, coloca a interdisciplinaridade em questão e a impossibilidade de antecipar um paradigma quando o conflito entre eles é o que mais se observa ainda.
        No âmago do problema continuam porém as interrogações:
        Que teorias? Que práticas?
        Aí teremos nós de recordar a figura do pré socrático Heráclito, prosaicamente sentado junto do forno onde se coze talvez o pão, numa simples cozinha, para espanto dos visitantes curiosos, tal como narra Aristóteles, citado por Heidegger
[25] o filósofo do devir teria dito então “Pois também aqui estão presentes os deuses”. Em vez de um cenário grandioso é no mais prosaico dos lugares que se pode encontrar a sabedoria. Por mais teórica que se tornem as teses sociológicas, será na mais comezinha das práticas do dia a dia que pode ser eficaz. No inverso teremos os riscos de Tales de Mileto e olhar demasiadamente o Céu esquecendo-se onde põe os pés e do poço em que cai. Por isso, a escrava, que tudo vê, ri. A primeira ou a última tradução. O riso.
       Neurológico, bioquímico, fisiológico, psicológico, político, dissecado até desaparecer do rosto no invisível da teorização interdisciplinar. O riso. Do outro, para se distanciar, ou na proximidade da partilha e de olhar na mesma direcção.

 

Lúcia Costa Melo

 


        NOTAS:



[1] Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para a Reorganização da Sociedade, Reorganizar a Sociedade, Guimarães Editores, 4ª Ed., Lisboa, 2002, p. 146).

 

[2] Orwell, George, 1984, Col. Livros Unibolso, nº. 36, Editores Associados, s/d.

 

[3] Idem, p. 45.

 

[4] Santos, Boaventura Sousa, Para uma Sociologia das Ausências e das Emergências.

[5] Mucchielli, Roger, Introdução à Psicologia Estrutural, Col. Biblioteca de Ciências Humanas, nº. 34-35 Editorial

Presença, Lisboa, 1974., 1º. Vol.p.28.

 

[6] Todorov, Tzvetan, As Morais da História, Biblioteca Universitária, Prémio Rousseau, Edições Europa América, pps 86-88.

7 Nota O terceiro mundo continua a existir, mas a referência aos países emergentes escondem melhor uma realidade que pode assustar quanto mais perto ela se torna.

[8] Santos, Boaventura Sousa, Idem.

[9] Sontag, Susan, Olhando o Sofrimento dos Outros, Gótica, Lisboa, 2003, pp-114-116

[10] Sontag, Susan, Idem, Ibidem, p 122.

[11] Maestri, Mário, Revista Espaço Académico, nº. 44, Janeiro de 2005, Mensal, Ano IV – ISSNB

 

[12]  Idem, Ibidem.

 

[13] Paiva, Ana, António Damásio e a «Nova Sociologia», Brotéria, Vol. 164, nº. 2, 2007, pp 131-154.

 

[14] Paiva, Ana, «António Damásio e a «Nova Sociologia», Brotéria, Cristianismo e Cultura, vol. 164, p.132.

[15] 189-190   Damásio, António, Ao Encontro de Espinosa, Mem Martins, Publicações Europa América, Lisboa, 2003, pp. 189-190

 

[16] J-P. Chargeux, J.P. O homem neuronal, 1983

[17] Domenach, Jean-Marie, As Ideias Contemporâneas, Co. Conhecer Melhor, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1984, p 1-2-1-3.

 

[18]  Idem, pp.12-13.

 

[19] Goleman, Daniel, Inteligência Emocional, Prefácio de Onésimo Teotónio de Almeida, Col. Temas & Debates, Lisboa, 1997.

[20] Dugas, L, Psychologie Du Rire, Bibliotheque de Philosophie Contemporaine, Edições Félix Alcan, 1902

 

[21] Todorov, Idem, Ibidem, cit Histoire de la litteratture anglaise, t.I, p.XV.

 

[22] Paiva, Ana, Idem, Ibidem.

 

[23] Paiva, Ana, Idem, Ibidem, p 138, cit. Damásio, Ao encontro de Espinosa, Mem Martins, Publicações Europa América, p.187.

[24] Santos, Boaventura Sousa,  op. cit.

[25] Heidegger, Martin, Carta sobre o Humanismo, Col. Filosofia e Ensaios, Guimarães & C.ª. Editores, com prefácio de Prof. António José Brandão, pp. 107-111.