" Persistência da Saudade"

  • Sobre uma "doença" açoreana

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

 

 

Singing the Blues

[ © Faial-Açores, 2001. Variação sobre hortênsias com Ilha do Pico ao fundo.

[Foto digital tratada. Levi Malho ]

 

 


Persistência da Saudade

 

 

   Não me vou referir à conhecida doença de Machado Joseph que infelizmente está já verificada e muito estudada nestas Ilhas. Também não se trata de um vírus novo surgido à última hora, nem de doença com perigo de contágio apesar de se poder dar casos de epidemia aguda e mesmo grave. Porém não há
receita da farmácia que lhe dê remédio ou cura, nem médico especialista que lhe ponha cobro ou descubra nova vacina... Pelo contrário reporto-mo ao que Teófilo Braga chamava "A Doença do Açoreano" e cujos sintomas são a tristeza, nostalgia, solidão no meio das gentes, inadaptação a terras estranhas, desejo de regressar à sua terra natal: - os Açores. No fundo trata-se em bom resumo do que se apelida... Saudades!
Parece que Teófilo Braga, natural da Ilha de S. Miguel, se considerava imune a tal doença. Quer porque se afastou ainda muito novo, quer por ter tido uma infância e adolescência infelizes, quer porque sofreu bastante com a madrasta de quem sempre se queixou, o certo é que se adaptou ao continente português sem ter talvez tempo para ter saudades pois sempre viveu atarefadíssimo e com muitos problemas financeiros. Todavia não deixou de se interessar pela sua terra e muito contribuiu para o conhecimento da
literatura popular açoriana.
    Diga-se o que se disser de Teófilo e concorde-se ou não com o seu trabalho, o certo é que foi monumental, algo que nunca mais se repetiu em Portugal e foi pioneiro de muitos estudos que, sem ele, não teriam sido
iniciados. É curioso como certos silêncios são tábua de salvação e apoio para muitos.Apesar de muitos açorianos terem conquistado o mundo de vários modos o certo é que muitos deles tiveram o que António José Saraiva chama "o complexo ilhéu" ou então o "sentimento insular" desde o tempo dos Descobrimentos que a mentalidade portuguesa colheu este modo de sentir que mais se aprofunda nas Ilhas dos Açores.
      É curioso notar como logo a primeira obra que se conhece escrita nestas terras se chamou "Saudades da Terra e do Céu". Estava iniciada a "doença"! E logo o seu autor, por razões que se não se conhecem muito bem, depois de ter sido aluno brilhante na Universidade de Salamanca e de ser um teólogo que podia ter um futuro luzente no continente português, veio paroquiar para a distante e quase esquecida da civilização, Ilha de S. Miguel, para a Vila da Ribeira Grande e antes esteve na Matriz de Santa Cruz da Vila da Lagoa, um sítio bem rústico e oculto na época. A Igreja dessa Matriz tem porém a peculiaridade de ficar mesmo rente ao mar com uma vista soberba sobre uma pequena baia e toda a costa marítima em frente. As terras debaixo da pequena escarpa eram chamadas "Lagoa de Baixo" pertencentes à Câmara pois, segundo a tradição, tinham sido uma lagoa de água doce, rente ao mar que com o tempo desapareceu.
E, para bem dos Açorianos, ficou Gaspar Frutuoso por S. Miguel escrevendo as suas famosas "Saudades da Terra" de merecida fama que tantos investigadores têm consultado com bom proveito. Mas a causa de tudo isto pode estar na tal doença que Teófilo de Braga baptizou - a doença do Açoreano!
A poetiza D. Amélia Ernestina de Avelar (1848- 1886) também sofreu deste mal pois tendo casado e ido viver para Luanda e Moçamedes pouco tempo lá permaneceu, adoeceu, sabe-se lá se de saudades, e voltou para a sua terra natal na Madalena, Ilha do Pico.
Se bem com um destino muito diferente e temperamento mais de polemista que de investigador, José Joaquim de Sena Freitas, (1840-1913) que muito gostava de viajar e missionou bastante no Brasil, não deixou de querer voltar à sua terra natal e na cidade de Ponta Delgada, na Igreja de S. José, pregou um
sermão em 1897 que é um hino à saudade da sua infância e da sua Ilha.
Ernesto do Canto, (1820 - 1898) a quem a Ilha de S. Miguel tanto deve, foi mandado por seu pai, o Morgado José Caetano Dias do Canto Medeiros, depois de estudar em Ponta Delgada para Paris (1838) onde iria frequentar um dos melhores colégios. Todavia tal não aconteceu pois pouco tempo por lá esteve
e voltou devido às saudades da sua Ilha. Mais tarde irá estudar em Coimbra (1841) mas regressa pouco depois à Ilha para casar e não completa o curso.
     O Padre José Jacinto Botelho, que se tornou conhecido como António Moreno (1876-1946), foi um grande orador sacro e poeta de belíssimos sonetos, por graça de Deus, afirma Eduíno de Jesus, mas eu atrevo-me a
acrescentar, pela graça da saudade também pois esta seria, tantas vezes, a sua Musa que o tornou tão famoso que até o célebre poeta e dramaturgo, Paul Claudel, ao passar por S. Miguel, quis ir até às Furnas para o conhecer.
   Na sua mocidade, depois do Seminário completado na Terceira, foi para Roma mas roído de saudades de sua Mãe e da sua terra natal Ponta Garça, terra agreste e batida pelas maresias nas suas altas falésias, abandonou o curso universitário de Teologia, pois a neurastenia tomara posse dele e fez com que perdesse um belo futuro na Igreja dado os seus dotes, para se vir esconder humilde e sapiente na húmida, triste e pobre freguesia das Furnas, onde os tísicos temiam o cair das folhas dos plátanos no Outono e que é agora local de turismo de massas, em formigueiro curioso, mas que rapidamente se afasta nos mesmos carreirinhos que chegaram assim partem também.
Muitos foram os que andaram pelas "sete partidas do mundo" mas cansados quiseram voltar para sua terra antes de morrer porque as saudades assim os chamavam.É muito curioso notar como hoje, quando o longe já não existe, os estudantes que daqui partem levam a mesma nostalgia de outrora e têm saudades do mar, daquele mar que rodeia as Ilhas, está sempre presente ao ouvido, canta-lhes ao ouvido de noite, no silêncio, nas horas de tempestade está sempre presente e muda de cor e de feição a cada momento, mas no fundo
é sempre aquele azul de bruma e névoa que não abandona os seus filhos açorianos. E ao chegar a um sítio novo, ao ver uma bela paisagem surge a pergunta que parece estranha:
- E onde fica o mar?...
Mesmo os livros dos escritores açorianos que agora são mais conhecidos têm por tema "a doença do Açoreano" porque tratam do passado, da sua infância, das suas raízes mais verdadeiras. Querendo inovar é pelo regresso ao passado que o fazem, revivendo com outros olhos, com outras cores o que é para eles
a insularidade que não se fica por conhecer as Ilhas, passar por aqui e viver sem o berço do mar.
Há os teóricos da doença que muito estudam e buscam o seu sentido ou questionam as causas diversas. Há os estudiosos da saudade, e não são poucos, mas vivê-la, é total emente diferente de estudá-la. Como quando se critica Hegel por «pensar a Vida» podemos esquecermo-nos de senti-la. Porém a maioria dos "doentes" vivem com todos os sintomas que espreitam nos seus olhos quando têm a sorte de voltar num retorno que nunca cura nada, antes vem avivar mágoas ou reviver alegrias que pouco duram porque há sempre a hora do regresso. E esse estar lá, ou estar cá, é a dialéctica do longe e do perto que torna saudoso para onde quer que vá.
Fiquemos com a denominação curiosa de Teófilo Braga que negava que de tal mal sofresse mas todavia mesmo no fim da vida ainda escrevia cartas de saudades para uma prima sua que vivia na Ilha de Santa Maria. Será que estava mesmo imune?!...