" BENTO DE GÓIS --- a paixão da Distância."
Entre lendas e Enigmas
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2007 )
Caminhos da eternidade
[ © Mapa itinerário de Bento de Goes. Vila Franca do Campo. (S.Miguel - Açores). Digitalização. 2007]
OBERVAÇÃO DA AUTORA
É devido um agradecimento ao Exmo. Senhor Fernando Baptista Fontes, pelo seu empenho demonstrado para que este trabalho se realizasse. Como bom Vila-franquense, cioso do seu passado e dos heróicos filhos desta terra que ilustram o nome da primeira Capital da ilha, tanto me incentivou a dar mais um testemunho e a recordar os feitos de Bento de Góis.
Agradeço ainda a gentileza que teve em me oferecer um precioso livro “No Centenário de Bento de Góis (1607-1907) Homenagem da Sociedade de Geografia de Lisboa, Tipografia Universal,
Antes dele, os relatos do veneziano Marco Polo (1254- 1324) descortinavam um pouco o mundo oriental diante dos olhos maravilhados dos pobres europeus ingénuos que viviam num mundo muito fechado e atrasado que diante das riquezas e prodígios do que então se chamava o Reino do Kitayo.
A sua obra, “O Livro das Diversidades e Maravilhas do Mundo”, foi traduzida e lida por toda a Europa com um êxito enorme. Circulavam as traduções em diversas línguas. Foi o Infante D. Pedro, quem trouxe a obra de Veneza para o nosso país e por isso muitos passaram a conhecê-la
O livro de Marco Polo é uma obra assombrosa que cobre 25 anos de viagens e dá notícia dos descendentes de Prestes João, na terra dos Tártaros, da magnificência dos reis, do Grão Kan e grandes senhores do Oriente com quem o veneziano privou e obteve altos favores. Teria encontrado assim certos cristãos e igualmente alguns homens com aspectos de brancos e de barba avermelhada. Haveria um tal Rei Jorge, cristão, descendente do lendário Prestes João, em reino situado algures. Os prodígios das terras que visitou no Oriente, China, Pérsia, Tibete, Sri Lanka, Índia, as descrições desses mundos desconhecidos, das lutas entre reis e senhores, o fausto da corte do Imperador Kublai Kan e dos seus palácios, festas, riquezas, tradições e costumes dos gentios, flora e fauna, exaltaram a imaginação dos europeus pois nunca tinham visto templos, rios, lagos, canais, bibliotecas, palácios, roupas de brocado e seda, peles de zibelina e de arminho, as mais belas jóias e pedrarias, gente feroz, homens com dentes e fácies de cão, animais belos, selvagens e raros, como os que povoavam os bestiários medievais. Para as bandas do Tibete, um costume estranho, mas que chegou até ao nosso tempo, foi narrado por Marco Polo, era o da mulher que dava à luz ir logo trabalhar para os campos no dia seguinte, mas o marido ficava de quarentena de cama e os amigos iam visitá-lo.
Apesar das dúvidas sobre a veracidade de tudo isso, o certo é que Marco Polo dizia: «Só contei a verdade e apenas metade do que vi».
Apesar de toda a sua fabulosa riqueza trazida do Oriente pelos generosos reis e senhores a quem serviu, não deixou de ter algumas infelicidades pois, devido às lutas entre venezianos e genoveses, esteve prisioneiro e foi nas húmidas masmorras que ditou ao seu companheiro Rusticiano de Pisa, seu fantástico manuscrito. O escrito tomou depois o nome de “O Milhão”[v] ao que parece porque Marco Polo, ainda ditou mais recordações «rebuscou melhor as suas reminiscências e inspirou a Teobaldo de Cepoy uma nova versão do livro, mais circunstanciada, que «pelo uso das cifras então consideradas fantásticas – e inacreditáveis – ficou a ser conhecido por «dos Milhões», ou mais simplesmente “O Milhão” assim como de tão rico era que passou a ser conhecido por “Marco do Milhão”»[vi]. Ainda assim, Marco Polo[vii], depois de ser libertado, casou aos 50 anos com uma veneziana, Donata e teve duas filhas, foi membro do Grande Conselho e morreu na sua cidade de Veneza, em 1324, respeitado por todos e abençoado pelos seus.
Já o nosso Bento de Góis teve a desdita de morrer miseravelmente e desgastado de forças depois de passar as muralhas da China e o seu preciso Memorial foi rasgado em grande parte pelos ladrões e malfeitores que o cercavam.
[ © Monumento a Bento de Goes. Vila Franca do Campo. S. Miguel - Açores ]
Quem era afinal este famoso Açoreano?
Existe uma certidão de baptismo na Matriz de Vila Franca do Campo de 9 de Agosto de1562, publicada no Jornal “A Liberdade” nº. 1 207, na mesma Vila, no ano de 1903 mas, não se aclara totalmente daí a inferência que se chamasse mesmo Luís Gonçalves, nome que parecia lá constar e depois se tornasse Bento de Góis.
Eis pois que mergulhamos de novo na lenda e nos enigmas da História.
Augusto Ribeiro põe em causa o romântico e fantasioso escrito de José Torres “Pequenos quadros históricos”[viii] de 1854 onde se romanceia uma paixão amorosa contrariada e a saída forçada para a Índia, tão distante da sua terra natal. Partiria em busca de glória e riqueza o futuro explorador e assentou praça como soldado. Depois levado por um amor ainda maior abraçou a Cruz tornando-se missionário Jesuíta e dos mais idóneos. A sua amada impelida pelo desgosto iria para o lugar de Val de Cabaços, (Caloura) para um pequeno convento que lá existe ainda[ix]. Mas, num dia em que estava a andar de barco com uma companheira, foi raptada por um barco de piratas. O facto do rapto até podia ser capaz de ter verosimilhança, pois os ilhéus viviam no temor dos piratas mas, se o contexto é real, a verdade não é esta.
Augusto Ribeiro, nada convencido por tal documento da certidão de baptismo, aventava a hipótese de uma nova busca aos arquivos paroquiais para averiguar se, de facto, vivera,
Aquando da comemoração do aniversário do seu nascimento, em 1962, o historiador, muito versado em genealogias, Hugo Moreira fez uma comunicação[x], em que dava conta das diligências feitas nos Arquivos da Matriz da Vila Franca com vista a encontrar o nome de família Góis. A certidão publicada pelo jornal “A Liberdade” de que era redactor o Padre Manuel José Pires, (1843-1921) investigador e jornalista respeitado, era fruto de pesquisas que não teriam grande validade pois foi uma busca orientada e já com um nome em vista, Luís Gonçalves, influenciado com os ensaios de José Torres.
Infelizmente, apesar de todas as buscas, Hugo Moreira nada encontrou que corroborasse quer a sua hipótese, quer a levantada com a certidão encontrada pelo Padre Manuel José Pires. Também não foram encontradas provas de haver continuidade de famílias com a denominação Góis. O nome aparece, embora raramente, mas o de Luís consta da certidão em que se dá conta desse baptismo mas nada permite inferir que seja Bento de Góis ou que não tenha existido outra certidão. Hugo Moreira e muito antes Augusto Ribeiro sentiam essa dúvida, além de que os novos irmãos da Companhia de Jesus não mudavam de nome.
O próprio jornalista, membro da Academia Real das Ciências, no prefácio do seu trabalho, escreveu uma nota bem elucidativa do modo como encarava o caso:
«Da vida e do carácter de Bento de Góis, declara o autor sinceramente que pouco ou nada tomou para este ensaio, que não é senão como que um tirocínio de classe em matéria de estilo. Daria o escolar razão de si e satisfação ao ponto? O autor é, sem dúvida, o que menos o pode saber e conhecer.
Trave em alheio olho se vê melhor.
À história só se pediram alguns nomes e algumas datas; o demais levantou-se sem exemplar, ou base procedente. Telas e tintas são de agora; o fasquiamento é que é de há duzentos e cinquenta anos»[xi].
Acresce a objecção, de muitos conhecida, de que, embora entrasse no noviciado, não chegou a tomar verdadeiramente ordens e, como era apenas irmão coadjutor temporal, então menos razão haveria para mudança de nome.
Não pretendemos um relato histórico mas sim aceitamos o véu da fantasia que envolve sempre os vultos heróicos e famosos. Não faltam lendas em torno de Homero, de Camões, de Shakespeare, de D. Sebastião e a nossa História de Portugal começa logo com lendas acerca do rei D. Afonso I.
O período da juventude deste herói foi com certeza conturbado pelas lutas entre os partidários de Filipe de Espanha e os de D. António, Prior do Crato, ambos pretendentes ao trono de Portugal.
Ao largo de Vila Franca do Campo, perto do seu Ilhéu, no Verão do ano apontado como o da partida de Góis, 1582, os dois inimigos enfrentaram-se e deu-se a maior batalha dessa época com tremendo desfecho para os adversários dos Filipes. A chacina que se seguiu tem fama de ser a pior de todas as que se deram nestas ilhas. Até no ilhéu os filipinos teriam enforcado inimigos para que a sua visão tenebrosa servisse de exemplo. Se por um lado o ódio aos espanhóis grassava, por outro, os adversários de D. António, aceitavam de bom grado o domínio filipino pelas benesses que podiam receber visando mesmo as possibilidades de Vila Franca voltar a ser «cabeça da Ilha» e também pelos desaires económicos, dada a venda forçada do precioso pastel imposto pelo Prior do Crato a fim de obter financiamentos das suas tropas. De todas as ilhas, São Miguel teria sido a que menos aclamou Filipe II de Espanha primeiro de Portugal.
O conflito devia ser forte na Vila pois o povo, como informa a Professora Margarida Vaz do Rego, se reunira e realizavam «grandes preces na Igreja da Matriz» se bem que inutilmente[xii]. O capitão Rui Gonçalves da Câmara, já em 1583 ao receber o título de Conde de Botelho dado por Filipe II de Espanha foi repudiado por parte da população que tentou contestar o título.
Mais de um escritor se dedicou a romancear a vida do famoso vilafranquense e, provavelmente, quando foi publicada a tal certidão de baptismo, o Dr. Urbano de Mendonça Dias, entusiasmado pelo assunto, começou a compor, em dezasseis fascículos, publicados na referida “Fénix” que fundara, um longo relato romântico e, em grande parte fantasioso, da vida de Bento de Góis. Nesta ficção ele teria sido um jovem dado a devaneios e à música, um jovem por entre “a flor da nobreza micaelense”, como disse Gaspar Frutuoso da nobre vila, e com outros rapazes dedicava serenatas e galanteios às noviças clarissas na antiga Praça de Santo André.
Luís Gonçalves, assim o nomeia, apaixonara-se porém por uma sua linda prima de nome Laura, mas o pai desejando um futuro afortunado e de altos feitos para o filho, obrigou Luís Gonçalves a um embarque forçado para a Índia, no Galeão São Francisco mesmo no fim do ano de 1582 no alvorecer da vida com apenas 20 anos de idade. O jovem, embora desolado e dolorosamente ferido, abandonaria a chorosa amada e, obedecendo ao pai, partira para tão distantes terras em busca de fama e glória desejadas pelo progenitor.
Note-se que Mendonça Dias tinha consciência de que criava uma ficção pois não deixa de escrever uma nota explicativa em que conta ter-se guiado por José Torres e saber que Augusto Ribeiro escrevia já em Lisboa informações mais rigorosas sobre o assunto.
A vitória dos espanhóis e o domínio filipino teria algo a ver com Luís Gonçalves e a sua família? Haveria alguma razão ligada a isso que levasse o jovem desgostoso com a situação do seu país a escolher partir para terras tão distantes das suas Ilhas?
Mas nada melhor do que a ficção para alimentar as lendas e o encanto da História, a sempre árida e sempre jovem musa Clio que faz e desfaz em fumo os louros da glória.
A cidade da velha Goa, quando lá chegou o jovem ilhéu, devia ser uma visão deslumbrante. Circulava o dito de que «Quem já viu Goa não precisa ver Lisboa», era a Roma do Oriente, com uma magnificência de estaleiro, hospital real, palácios, igrejas, imponente Sé e um traçado de ruas que indicavam uma grande cidade. Só os templos dedicados a Nossa Senhora chegaram a ser, nesse território, cerca de 50 igrejas e 250 capelas e os sinos de Goa eram tidos como os melhores do Mundo[xiii]. O seu prestígio só se viria a perder com o avançar dos inimigos dos Filipes[xiv], conforme informou a professora Susana Munch Miranda, tornados agora também nossos adversários, tais como os terríveis piratas ingleses, os holandeses e franceses.
Na narrativa romanceada por Mendonça Dias, Bento de Góis, era agora um soldado exilado, vivendo na esperança de notícias dos seus e da jovem Laura, espreitando cada galeão que da pátria chegava.
Porém as notícias não eram de feição. Seu pai, por entre outras novas, avisava que sua prima Laura acabara de entrar para o Convento da Caloura, bem contra a vontade dos pais e mostrava-se muito abalada de saúde. O tempo passou, sempre lento para quem espera notícias e, por fim, em carta do amigo Manoel da Câmara, mais uma ficção embora esse nome fosse bem escolhido por ser dos nobres da Vila, em 1585 as trágicas notícias chegavam. Laura, depois da estada no Convento, piorara muito e seu pai foi buscá-la à força de barco desembarcando no “Corpo Santo” já em tal estado de fraqueza que, passados três dias, falecia em casa dos desolados pais.
O futuro jesuíta não teria suportado a dor dessa perda e adoeceu gravemente. Já convalescente teria mudado por completo os seus hábitos de vida e não quis regressar à ilha como estava previsto. Pelo contrário bateu-se valentemente contra os gentios ganhando fama de aguerrido soldado.
Tudo porém teria mudado em 1588, quando se encontrava em Travancor, na altura um reino florescente cujo nome significa “Deusa da Abundância”. Em dia de festa de São João, Luís Gonçalves teria ido até à ermidinha de Nossa Senhora e aí pediu à Virgem perdão por seus pecados, pela vida irregular, pelas suas loucuras e desmandos[xv].
As especulações sobre a vida de jogo, mulheres e grande dissolução de costumes podem ter um sentido duplo, ou para mais valorizar a transformação moral de pecador ou então para enaltecer a vida de luxo e de prodigalidade que se levava na esplendorosa cidade do Oriente.
É lermos as exortações inesquecíveis de Sá de Miranda:
Não me temo de Castela
Donde inda guerra não soa
Mas temo-me de Lisboa
Que ao cheiro desta canela
O reino nos despovoa
Segundo a versão do Padre Fernão Guerreiro, seu contemporâneo e um dos historiadores dos feitos dos portugueses no Oriente, que mais o cita, enquanto Bento de Góis rezava, o Menino que estava ao colo de Nossa Senhora começou a chorar, para grande admiração do penitente que chamou os companheiros para verem tal milagre! Embora em termos diferentes dos de Mendonça Dias, o facto de ter havido um acontecimento místico para a grande mudança de vida é comum a investigadores e romancistas.
Seria assim a grande transformação que se operou no jovem micaelense e, abandonando o mundo, entrou para o Colégio da Companhia de Jesus, mesmo junto da Ermidinha da sua conversão, sendo então apenas um noviço. Algo o teria levado a sair mas não sabemos a causa, se por razões suas ou vontade dos Irmãos, mas teria abandonado a Companhia tornando-se mercador[xvi]. Percorreu novas e distantes terras aprendendo persa e outras línguas. Só depois seria Irmão coadjutor, estudando e convivendo com os Padres ganhando as simpatias e favores e adoptando então o nome de Bento de Góis.
Porém nada podemos certificar da mudança do nome pelas razões já adiantadas. Ficamos todavia com a impressão de que teria sido sempre Bento de Góis, nome que nada tinha de romântico para as ficções ideadas.
Segundo Mendonça Dias teria 26 anos aquando da entrada na Companhia de Santo Inácio de Loyola em 1588, mas nunca aceitou passar de um simples Irmão coadjutor temporal, sem tomar ordens sacras pela sua índole humilde, considerando-se indigno de tal missão.
Tal facto pode ser visto como fruto da vontade dos próprios jesuítas pois só aceitavam para membros, pessoas com profundos estudos e conhecimentos. Bento de Góis contraria muito o espírito dos jesuítas, quer pela idade que já tinha, e não era comum pois se entrava muito mais cedo, quer pelo grau de instrução exigido do qual não temos dados.
Não deixa de ser mais um ponto obscuro na parca biografia que se lhe pode traçar, nem temos dados da Companhia de Jesus que nos elucidem acerca do seu estatuto dentro da Ordem.
Passou por diferentes Missões e colégios, de cidade em cidade, ganhando a admiração e respeito por seus talentos, lucidez e virtudes. Caetano de Andrade Albuquerque[xvii] é mais um que insiste nos talentos e saber profundo, bem como o espírito conciliador que sempre demonstrava para com os outros povos e religiões. Se bem que, muito o penalizasse ter de fingir não ser cristão, tinha tão hábil diplomacia para tratar com os grandes senhores e seus assuntos, como para conviver com as diferentes etnias e religiões e dialogar tolerantemente acerca de Deus sempre com o fito da missionação.
Na verdade pode notar-se, nas poucas cartas suas que chegaram até nós, um espírito religioso, atento aos pormenores, com um estilo de escrita que denota estar num contexto cultural muito avançado para a época. Era realmente muito versado em teologia, mostra conhecimentos de latim, cita de cor a Bíblia e domina línguas orientais até mesmo a persa que aprendera, estando muito bem instruído para a futura viagem. A escolha foi muito bem pensada. Nisso os diversos autores concordam.
Porém, como diz o sábio dito «Ninguém é profeta na sua terra» e ficou apagado da memória do seu país durante muito tempo!
Parece, de acordo com a opinião firmada por Augusto Ribeiro, que a fama de Bento de Góis veio de fora. Alguns ilustres estrangeiros é que foram dando conta da grandeza da obra e do valor do missionário, como o Padre jesuíta Atanásio Kircher, (1776-1859) «de conhecimento enciclopédico, etnógrafo e escritor fecundíssimo»
[xviii] que viveu na China e que na sua obra “China Ilustrata” em 1667, procura descortinar o itinerário seguido por Bento de Góis, o professor alemão Karl Ritter, designado como percursor da geografia moderna, refere-o como «o encarregado heróico da difícil missão de abrir o caminho continental até então de todo desconhecido da Índia ao Cataio» e o Padre Brucker que, em 1879, escreveu sobre a obra deste jesuíta enaltecendo-a como já devia ter sido e assim os estrangeiros é que chamaram a atenção dos portugueses para os altos feitos que levaram depois à celebração do terceiro centenário. Quem parece que primeiro o aventou foi o Dr. Caetano de Andrade Albuquerque bastante antes de chegar à data do referido centenário que, sendo o terceiro, foi o primeiro a ser celebrado, inaugurando um belo e artístico monumento encimado com estátua no centro da praça que já tinha o seu nome.
As palavras do padre francês Brucker merecem ser recordadas:
«A expedição de Bento de Goes não é somente notável pela lonjura e obstáculos da rota. O que a torna sobretudo digna de figurar para sempre nos anais da geografia, é que foi uma empresa cometida no meio de países e povos até então quase desconhecidos; é que porque foi traçado, por assim dizer, um raio luminoso no meio das espessas trevas que escondiam ainda à Europa o centro da Ásia»[xix].
O jesuíta António Franco, ao fazer no seu noviciado o panegírico de António de Andrade, conhecido por “o apóstolo do Tibete” nada refere acerca de Bento de Góis.
Ao investigador Augusto Ribeiro parece estranho, como também pensa ser misterioso ou incompreensível que, nem o insigne historiador Padre António Cordeiro, (1641-1722) autor da “História Insulana” em que tanto exalta os feitos dos Açoreanos não se refira a Bento de Góis. A sua pena só escreveu acerca do Padre António de Andrade (1591-1634) «filho do Sol da Companhia» e descobridor do Tibete, desfazendo assim mais uma lenda da existência de um mítico reino cristão.
É de toda a justiça enaltecer a viagem e descobertas deste jesuíta, a sua viagem foi tormentosas e passou por alguns dos lugares por onde passaria Góis, mas a viagem apesar de terrível, foi curta e bem sucedida pois o acolheram bem e pode voltar. Todavia se o rei do Tibete era hospitaleiro e parecia quase cristão, verificou-se de novo que budistas e cristãos eram muito diferentes. Mas onde estão as referências a Bento de Góis da parte dele?
Apenas podemos saber que António Cordeiro[xx] ( 1641-1722 ) partiu da ilha Terceira, com apenas 15 anos, numa tormentosa viagem em que passou por mil peripécias, combates, fugas, condenação à morte pelos castelhanos, de novo a prisão no Algarve, por receio da peste até à sua chegada a Coimbra. Como nunca mais veio aos Açores e usou, em grande parte para escrever a sua obra os manuscritos do Dr. Gaspar Frutuoso, que estavam então na posse da Companhia de Jesus, há a possibilidade de nada poder saber das viagens e descobertas deste micaelense.
Antes do nosso herói vilafranquense, além de Marco Polo e Fernão Mendes Pinto, (1510-1583) lembramos ainda Rafael Perestrelo que, em 1516 com um grupo de 30 homens e em três juncos aportara ao lendário Cataio em expedição comercial de grandes lucros[xxi] .
Entre as muitas viagens que Góis fez, avulta a missão ao grande Império do Grão Mogol, a Lahore, a capital, onde esse Imperador residia. Aí, Bento de Góis conheceu o grande Akbar que o tomou por seu valido dado o apreço que lhe tinha, e até voltou a Goa com um embaixador desse rei e em missão que se dizia de paz mas que podia ser um meio de vigiar de perto o poder do Império desses estrangeiros.
Nessa época, falava-se muito do Grão Cataio, nome que Marco Polo divulgara, imaginando-se as mais fantásticas histórias dessas terras. Acerca da lenda do mítico rei Prestes João já se falava na corte papal desde 1145, quando um bispo do Líbano, Hugo de Gebel afirmara que o tinha encontrado num reino muito distante, para além da Arménia, tendo por rei um sacerdote. Ora era sabido que os povos arménios eram cristãos logo nas primeiras eras sendo mesmo o país que 12 anos antes de Roma tomara já o cristianismo como religião oficial. Assim era bem plausível haver ainda comunidades cristãs nessas longínquas paragens. Aliás o nome Prestes parece provir do francês Prêtre, acrescentando-se que as lendas o tornavam descendente de um dos três reis magos, Baltazar e, indo mais longe ainda, está relacionado ao misterioso sumo-sacerdote Melquisedec de que fala a Bíblia cristã, cujo grande poder lhe deu o direito de abençoar Abraão e que foi comparado com Cristo pois se encontra escrito: «Tu és um sacerdote eterno, da Ordem de Melquisedec» referindo-se a Jesus. Este sacerdote que iria entroncar nos filhos de Noé e está ligado a lendas do Tibete e outras ainda mais estranhas acerca da cidade oculta ao comum dos mortais, só habitada por seres perfeitos, e esse reino era Salém que significa paz.
É sempre a curiosidade e a lenda que tecem os factos reais de belezas imaginárias a alimentar a imaginação de todos os povos.
Tratava-se, sabe-se hoje, das terras da Arménia ou da Abissínia ou ainda Etiópia, terra esta onde ainda hoje a maioria da população é cristã copta, embora tenha também muçulmanos e animistas. O último rei ainda se intitulava “O eleito do Senhor” e usava o selo de Salomão, dado que a poderosa e lendária Rainha do Sabá teria tido um filho do rei Salomão.
Era grande a sede de expansão da fé e a curiosidade por esses povos tanto mais que corria a lenda de que o rei do Grão Cataio, ao viajar, levava 3 cruzes diante de si.
Já Marco Polo falara de uns cristãos provenientes do apostolado de São Tomé[xxii] em Malabar que aí teria morrido por um acidente dum caçador enquanto o santo rezava. Haveria ainda alguns cristãos ligados à heresia nestoriana resultantes das disputas de Cirilo e Nestor. Após um concílio em Éfeso a 431, separam-se em dois grupos, os que defendiam que Maria era apenas “cristotocos”, Mãe de Jesus humano e mortal; enquanto que o outro grupo de Cirilo apostava em Maria, Mãe “theotocos”, isto é, Mãe de Deus. Aceite a tese de Maria, Mãe de Deus, donde vem a oração «Ave Maria» rezada hoje, os nestorianos foram afastados e partiram para o Oriente onde ainda existem alguns grupos de nestorianos.
De tudo isto resultava uma amálgama de lendas e vagos conhecimentos que levaram os Padres Jesuítas a procurar verificar a verdade.
As lendas do Prestes João tanto o situaram na África como na Ásia, ou mais possivelmente no Tibete pois os muçulmanos descreviam os budistas de modo tal que os confundiam com os cristãos pela semelhança de aparência, na profusão de templos e mosteiros, estátuas, velas, orações, saudações e cânticos que se confundiam com o canto gregoriano e mesmo por um estilo de vida que lhes parecia similar.
Há algum esquecimento de uma outra tentativa de atingir a China e queremos lembrar que foi esse o sonho de São Francisco Xavier (1506-1552) o apóstolo das Índias. Já se sabia que o povo chinês considerava bárbaros e ignorantes os estrangeiros e mantinha a interdição a todos eles.
Para converter o Japão, onde o povo se mostrava resistência à evangelização, o apóstolo reflectiu sobre a relevância do budismo e toda admiração dos japoneses reverentes diante da civilização Chinesa.
Então para esse «furacão da fé», com todo o pragmatismo, admitia que se atingisse o Império do Meio, a acção missionária resultaria na concretização do sonho de converter toda a Ásia.
Atentamente, Henrique Leitão escrevia acerca do ambiente no Império do Sol Nascente no século XVII, como se criara «uma funda aversão à Igreja de Roma particularmente à Companhia de Jesus»[xxiii]
«Xavier tinha a firme convicção que a conversão da China era «a chave para a catolicização da Ásia, uma miragem que continuou a tremeluzir tentadoramente no horizonte jesuíta».
[xxiv]
Usando a mesma estratégia que será adoptada mais tarde, não seria como missionário mas como uma embaixada que São Francisco tentaria lá chegar, pois isso significava sempre homenagem dos “bárbaros” à sua sabedoria e poder. Essa tarefa de preparação da embaixada foi encabeçada por Diogo Pereira mas encontra uma inexplicável relutância e obstinação no capitão Álvaro Ataíde da Gama. Por fim, consentiu na ida de Xavier mas sem apoios, teria de se apresentar sozinho e exposto a todas as possíveis consequências de prisão e morte. Mesmo assim embarca no barco “Santa Cruz” e chega a pisar terra chinesa. Foi a ilha de Sancian, ou Sanchuão onde «infelizmente os seus esforços foram inúteis, pois todos os mercadores responderam que caso o governador da cidade disso tomasse conhecimento eles teriam as suas vidas e as suas posses em grande perigo»[xxv].
É assim que o santo, «luz do Oriente», muito combalido e fraco acaba por falecer em 1552 sem realizar o sonho e quase à vista do grande Império, um pouco à semelhança do que sucederá a Bento de Góis em 1607.
Se a tentativa por mar não resultava havia que tentar chegar por terra atravessando toda a Ásia.
A Companhia de Jesus, atenta a novas formas de evangelização, usava métodos apropriados e tentava realizar o sonho inacabado de chegar a esses misteriosos reinos tão mal conhecidos ou então esgotar as lendas e os mitos e saber toda a verdade.
Entretanto, Bento de Góis, com a sua grande humildade e desprendimento ganhava a afeição de todos com quem convivia. Entre os muitos Colégios que visitava, foi a Agra, onde já se encontravam instalados os Padres Jerónimo Xavier, primo do Apóstolo das Índias e Manuel Pinheiro, que os italianos nomeiam como Emanuell Pinner, também micaelense, natural de Ponta Delgada (1556-1618), aproveitando a tolerância religiosa do Imperador Mogol Akbar, que permitira a sua estada nos seus domínios desde 1594.
Como testemunha dos obstáculos que enfrentaram, o Irmão jesuíta, Manuel Pinheiro escrevia acerca do impedimento de serem aceites pelos maometanos e outros gentios pela fama que já vinha dos outros estrangeiros: «E se nos têm aversão, é porque seus ministros e sacerdotes lhes ensinam que os cristãos são bárbaros e ignorantes, da natureza de peixes: e que vivem na água, não têm cidades nem terra firme, que comem ratos, gatos e outros animais imundos, que temos três Deuses: Deus, Jesus e Maria»[xxvi] . Enquanto assim descreve o modo como eram vistos os cristãos, queixa-se de solidão e refere que o Imperador estava em Decam com o Padre Jerónimo Xavier e o Irmão Bento de Góis, o que nos mostra como eram estimados e tidos em boa conta por El Rei. Já seu filho não os via com tão bons olhos e foi sempre rebelde para como pai.
Akbar, o Grande governou desde 1560 até 1605, expandindo o império que constava de hinduístas e muçulmanos e outras religiões. Apesar das diferenças religiosas, Akbar, que era sunita mas os cristãos diziam que adorava o Sol, tentava a conciliação entre sunitas e xiitas, procurando ser tolerante com todas as religiões, protegendo as artes, embora segundo se diz, fosse analfabeto, mas interessava-se pela cultura e queria uma unificação religiosa que respeitasse todas as formas de culto, o que seria uma estratégia para a unidade política. Teria por uso convidar pessoas de diferentes religiões para discutirem assuntos científicos e outros.
Os dois jesuítas, Jerónimo Xavier e Manuel Pinheiro, já se referiam ao Cataio como um vasto país cristão que existiria nos confins da Ásia, bem como Chambalu, que afinal não passaria na realidade de Shambala, um esotérico centro religioso de contemplativos ligados aos budistas no Tibete, algures perdido e invisível flutuando sobre o deserto do Gobi. Esse centro só seria possível de visitar pelos seres mais perfeitos e iluminados. Falava-se que várias expedições teriam ido até essas terras e já Luís XIII, Rei de França ouvira falar já esses utópicos reinos.
Por seu lado o padre Mateus Ricci, (1522-1610) italiano, natural de Macerata, era um sábio, Superior da Ordem que se encontrava já então em Pequim, onde adquiriria grande influência nos meios científicos em que os chineses eram muito avançados. Com um método diferente, tentava uma aculturação pragmática para a sua acção apostólica. Isso obrigava-o a «acomodar-se» a usos e costumes desse nesse meio e a mostrar a sua superioridade científica para conquistar os mais cultos e depois chegar ao povo. Este seu modo de se misturar com os hábitos chineses foi depois censurado pelos riscos de perder a pureza do cristianismo. Além de se relacionar com o Imperador chinês e pertencer à corte, algo absolutamente fora no normal para um estrangeiro, publicou quinze obras em língua chinesa. O seu prestígio valeu-lhe ser considerado pelos chineses “o homem sábio do Ocidente”[xxvii]».
Tomemos bem em atenção e linha de conta que já Ricci era céptico acerca da existência desses reinos misteriosos do Cataio e de povos cristãos. Afirmava que era da China de que se tratava e já não havia cristãos nesse distante Oriente pois já tinham sido desterrados quando os chineses em 1368 expulsaram o inimigo mongol.
A Companhia de Jesus escolhia sempre criteriosamente os irmãos que tivessem uma formação intelectual muito elevada. Segundo os princípios de Santo Inácio de Loyola estavam estipuladas duas exigências indispensáveis para todos os membros da Ordem: uma formação muito avançada e de alto nível intelectual e uma mobilidade total, afirmou o Professor Henrique Leitão na sua interessantíssima comunicação[xxviii] .
Estas duas exigências, – intelectual e movimentação - que nunca se tinham reunido, alteravam tudo o que até então existia nas ordens religiosas, pois as ordens monásticas dos estudiosos estavam fixas em algum local e aquelas que se movimentavam não reuniam alto saber. Agora criava-se numa teia de cultura e poder enorme com uma mobilidade e velocidade espantosas em que transitavam notícias, dados científicos, boatos, informações, cartas ou objectos, deveras impressionante e que nunca antes se conseguira.
Assim na China, ainda segundo o Professor Henrique Leitão, os jesuítas queriam chegar junto dos meios científicos e aos poderosos governantes, logo, de acordo com o seu método implicava a escolha de matemáticos e astrónomos especializados para terem forma de mostrar superioridade de poder cultural e espiritual entre uma civilização tão antiga como culta.
Compreende-se pois que Mateus Ricci fosse um missionário especialmente dotado para as matemáticas e astronomia, sendo ele que levou a geometria de Euclides para a China, sabia muitas línguas, traçou um espantoso mapa da China e a sua grandeza cultural de algum modo ofuscou a figura do explorador vilafranquense que pouco teria deixado escrito.
Ora, ao que parece aos investigadores, que são unânimes neste ponto, é que este Imperador Akbar teve muito apreço pelo Irmão Bento Góis ao conhece-lo
Reconhecendo o valor de Góis, Akbar tomou-o por seu valido, mostrando o apreço que lhe tinha, enviando-o a Goa com um embaixador desse rei e em missão que se dizia de paz mas que podia ser um meio de vigiar de perto o poder do Império desses estrangeiros.
Foi de tal modo eficaz a sua diplomacia e influência que teriam sido os seus rogos e solicitações que levaram o grande conquistador do Império mogol a desistir de um terrível ataque que preparava contra os portugueses pois este imperador estava decidido a tomar Goa e Damão. Não se sabe até que ponto Andrade Albuquerque terá exagerado ao escrever que «devendo-se às instâncias patrióticas de Goes o desistir o Grão Mogol, Akbar de um seu projecto de conquistar as nossas possessões na Índia, podendo-se afirmar que se estas permaneceram no domínio de Portugal, ou pelo menos se não as assolou então com uma guerra devastadora, tudo foi devido à habilidade com que no-las defendeu com a unção da sua palavra o missionário açoreano, melhor do que por ventura o fariam as hostes guerreiras em campo de batalha»[xxix].
Hoje, esta cidade de Lahore, é conhecida mundialmente por ligações à famosa e misteriosa Al-Qaeda de que todos já ouviram falar.
As lendas e descrições fantásticas misturavam-se com a curiosidade e um imaginário colorido de modo a que se a incerteza era grande, as especulações e a vontade de saberem mesmo a verdade aumentava cada vez mais.
Fora também levado pelo objectivo de atingir um imaginário Cataio que Cristóvão Colombo chegou às Antilhas, convencido de que estava na Índia e a essas lendárias terras do Oriente onde jamais chegou.
Estando a situação neste ponto, os missionários jesuítas, agora especialmente Nicolau Pimenta, Superior da Companhia, sabendo que Bento de Góis já fora embaixador do Grão Mogol e como se mostrava hábil em conviver com budistas, hinduístas e maometanos, com hábil diplomacia e dominando várias línguas, entre elas a persa, escolheu o vilafranquense para esse fim, apesar do arrojo e perigos da empresa.
É curioso saber-se que nada se resolveu sem pedir as devidas autorizações, para a Europa ao Papa, a Filipe I de Portugal, ou seja, Filipe II de Espanha e na Índia ao Vice Rei, na altura Aires Saldanha, que se prontificou a ajudar com dinheiro e mantimentos.
Deste modo o escreveu em 1880, Caetano de Andrade Albuquerque[xxx], e Mendonça Dias na sua primitiva narrativa romanceada[xxxi], em 1903, assim, a primeira investigação da travessia da Índia até à China seria obtida por um ocidental seguindo a rota da seda e integrado numa “cáfila” ou caravana de mercadores com os seus dromedários e camelos, cavalos e demais bagagens. Nunca será excessivo evidenciar a envergadura da expedição, de tão incerta como longa se previa, com mapas e companhias mais do que falíveis.
Obedecendo à ordem do Superior, partiu então Bento de Góis, levando por companheiro, o diácono Leão Grimam e o mercador Demétrio, ambos gregos. Acompanhava-o também Isaac, um cristão arménio escolhido pelos jesuítas. Tinham sido bem industriados e prevenidos até ao último momento, segundo conta em carta o próprio explorador vila-franquense, para se precaverem dos perigos, dos fanáticos, dos erros que, como cristãos, pela alimentação, atitudes, comportamentos diferentes entre gentios, podiam cometer.
Deve ter-se doutrinado o melhor que podia para tão grave missão de atravessar todo o grande continente asiático e é notório como nas cartas que escreve mostra a sua humildade e espírito de sacrifício, apelando e agradecendo a Deus tudo o que lhe acontecia.
Partiu de Goa para a perigosa jornada em 1602 e a sua primeira paragem deve ter sido em Agra que já conhecia.
Essa extraordinária viagem duraria 4 anos, percorrendo cerca de
Agra, cidade nas margens do rio Yamuna, onde mencionou que lá estavam os jesuítas António Machado e Jerónimo Xavier e foi junto deles que fez os últimos preparos de viagem.
Aconselhado por este ultimo, Bento de Góis passou a usar o traje dos arménios, com cabaia (espécie de túnica tradicional ) e turbante, mais arcos e frechas e seu estojo, bem como uma cimitarra, a fim de passar desapercebido disfarçando-se de negociante e, assim vestido, parecia um Saíde, deixando crescer longas barbas e cabelo, tal como um parente de Mafamede. Por precaução, fez também algo que parecia indispensável, mudou o seu nome português para o de Banda Abedula ou Abdulla Isai, que quer dizer “Servo de Deus” e assim estava muito mais protegido dos adoradores de Mafoma e inimigos dos cristãos.
Perto desta cidade de Agra, no século XVII, seria construído um dos mais belos monumentos do mundo, o Taj Mahal, mausoléu da esposa favorita do Rei Shah Jahan, e, já no tempo que Góis lá passou, existia um monumento enorme e famoso o “Forte Vermelho” obra de Abkar.
Em Lahore, onde chegou acompanhado pelos dois viajantes, e o seu mais fiel companheiro, o arménio Isaac que nunca mais o abandonou, escreveu em Dezembro de 1602 ao Provincial, sempre com grande devoção, dando conta dos seus gastos e das peripécias da sua viagem. Na altura, mais uma vez, Akbar o Grande, se mostrou seu aliado e amigo «praised his zeal and contributed the value of four hundred pieces of gold to the expense of the journey, besides given a passport mentioned in the narrative»
[xxxii].
A cáfila que partiu para Cabul levava mais de 500 gentios com suas mercadorias e bagagens e sucediam-se sempre grandes riscos de emboscadas, assaltos de ladrões e caminhos intrincados.
Para passar da Índia para o Afeganistão, foi pelo rio Indo, que deu o nome à Índia, por barcos com muito custo no meio da caravana.
Na carta ao Padre Jerónimo Xavier, escrita de um local erradamente apontado como Garçar, foi de casa de um veneziano chamado João Galifo onde se hospedara pretendendo passar por mercador. Era então já a Quaresma de 1603, e descreve um pouco a duríssima jornada, passando os terríveis frios dos Himalaias, o risco de ser reconhecida a sua condição de cristão, enfrentando tribos selvagens e pelejas com ladrões e rebeldes:
«Nós até agora jejuamos, e o nosso comer não é senão à noite, posto com grande custo nosso, o comer não é senão um pouco de arroz com manteiga e papas de carregação, e algumas cebolas e quando comemos um pequeno peixe salgado, do que lá sequei, é grande mimo, os frios são muito grandes porque imos correndo as serras que estão encobertas de neve….»[xxxiii], contava ainda que, como era costume entre os gentios, usava um anel com um sinete no dedo com que selava as suas cartas.
Os locais que vai assinalando ao longo do roteiro diferem um pouco na escrita do que se diz oralmente, sendo isso apenas um pormenor que não retira a veracidade da sua passagem por todos esses locais que assinala. Uma das causas está no facto de ele escrever os nomes das terras tal como as pronunciava.
A chegada a Cabul levou mais de 6 meses de viagem pela lentidão que tinham de seguir e, de tão dificultada pelos muitos perigos, os dois companheiros, Demétrio e Leão Grimam não a quiseram continuar.
Podemos ver pelo roteiro que ele traçou que estava a meio da sua arriscada travessia. Hoje as terras por onde passava são-nos familiares ao ouvido por tristes razões de guerras, Athec, Djelalabad é o seu Gialalabadh e Peshawer é Passaur,
Como passou algum tempo na capital do actual Afeganistão, conheceu muitos moradores e veio a saber, que lá se encontrava uma senhora peregrina que regressava de Meca e tinha sido roubada ficando sem meios de subsistência. Seria uma senhora nobre que Mendonça Dias indica ser Rainha, usando o nome de Abchanam, enquanto Caetano de Andrade Albuquerque, nome de ilustre micaelense, a chama Hadje-Hané, mas sabe-se que “Age” era a designação dada aos crentes que já tinham ido a Meca, e que, por sorte, a senhora era irmã do rei do Kachahar e mãe do senhor Príncipe do Cotão.
Mendonça Dias atribui a assistência de Bento de Góis à dita senhora, um carácter de caridade religiosa ligada à sua proverbial generosidade, pois se prontificou a ajudá-la dando-lhe dinheiro e meios de a livrar da aflitiva situação em que estava. Muito grata se mostrou a nobre dama, que deve ter visto em Bento de Góis um salvador, prometendo que a sua ajuda e bondade não seriam vãs logo que seu irmão soubesse dessa mercê que lhe fazia. Caetano de Andrade Albuquerque, porventura mais realista, aponta para um comportamento inteligente e diplomático do viajante que com esta ajuda tanto bem trouxe à senhora mas também de muito lhe valeria com os salvo-condutos que depois obteria dos seus poderosos parentes. Já antes demonstrara alta diplomacia e sabia que aquela acção lhe podia no futuro ser muito proveitosa. Recuperadas as forças, partiu logo de novo, o nosso Banda Adbdula, como era nomeado, apesar de sentir forte tristeza em estar assim disfarçado e impedido de praticar livremente o seu culto cristão. Com pouca fortuna começou a nova viagem pois logo adoeceu com altas febres ficando ao cuidado do leal Isaac. Não só a moléstia o atacou mas também teve de sofrer os ataques de ladrões e malfeitores que tiravam bons proveitos atacando as caravanas dessa antiquíssima rota da seda.
A cáfila seguia por entre rios e torrentes, por atalhos estreitos e perigosos, entre desfiladeiros e sempre em riscos de ataque ou emboscada.
Antes de atingir Talikhan, de que já antes o veneziano Polo dera conta, segundo mencionou Bento de Góis, encontraram uma tribo, no país de Caltchá, que era gente de cabelos loiros e com toda a aparência dos arianos naturais da Europa do Norte. Era mais uma lenda que se confirmava, mas já não eram cristãos sabendo-se agora que deveriam ser restos da população dizimada no século XII pela grande invasão turca na Ásia. Estava tal tribo em guerra e tiveram de pagar mais um imposto sobre as mercadorias para poder continuar e seguir pelo vale de Pandjah.
Escreve o Dr. Ernesto de Vasconcelos: «Foi portanto reservada a um português a glória de ter primeiro atravessado de Ocidente para Oriente, o Pamir[xxxiv]», já citado por Marco Polo, onde sofreu frios, dissabores e provações de vária ordem, entre desfiladeiros e vales profundos. Alguns geógrafos negavam a passagem de ambos pelo planalto do Pamir, o tecto do mundo, mas Bento de Góis denomina no seu diário «a extremidade do Pamir» como local de paragem e descanso e hoje o facto de ter sido o primeiro a passar pelo tecto do mundo é aceite sem reservas.
Para chegar a Yarkand teve de passar por Chichikilik ao sul de Mustagata e cuja altitude é de
Na verdade, o que se sabe ao certo, é que sofreu terríveis provações e quase morreu de frio como aconteceu com muitos outros viajantes da sua caravana. O seu companheiro, o fiel Isaac caiu ao rio Tanghetar, sendo felizmente salvo com muita dificuldade e ficou ainda um tempo entre a vida e a morte.
Esta parte da perigosa e longa jornada só terminou em Yarkand, no Turquestão Oriental, hoje terra chinesa. Chegou aí num estado de extrema debilidade, pois arruinara as forças essa empresa, que outros menos heróicos e destemidos não suportariam.
Agora também não podia continuar, para além de recuperar forças, havia preparativos e acertos diplomáticos a fazer. Não admira que tivesse de ficar cerca de um ano em aprestos diversos e esperando tempo favorável para continuar a sua peregrinação em busca do lendário Cataio levando sempre consigo, entre outros, presentes, cartas e documentos para entregar ao Senhor dessa terra quando lá chegasse.
Já nessa altura Yarkand era a cidade mais florescente e populosa do Turquestão e aí residia o Rei do Kachegar. A ele ofereceu Bento de Goes belos presentes, «objectos de luxo da Europa, tais como um relógio e cadeia, espelhos de cristal, e outras coisas que muito agradaram ao Monarca», escreve por seu lado Andrade Albuquerque, mas acentuando os vexames e perseguições dos fanáticos maometanos que talvez também tivessem inveja daquele estrangeiro que conseguia ser benquisto pelo seu rei.
Desde o século XV que havia uma monumental Mesquita, belíssima construção que ainda hoje existe, sendo notáveis os seus portões e local de oração.
Aguardavam-no porém algumas surpresas nessa cidade, conta no seu romance Mendonça Dias, Parece que muito se interessou o rei pela sorte de Bento de Góis, pelo seu discorrer de sábio que não ofendia a sua fé mas mesmo na Corte sofreu forte hostilidade e interrogatórios cerrados e, depois de o ouvirem atentamente ministros e nobres, tentaram mudar a sua crença mas acabaram por desistir de o tornar maometano, pelo menos nesse tempo.
A bela Mesquita Id Kah, construída já em 1442, ainda existe hoje mas nesse tempo a cidade era uma encruzilhada da estrada da seda, sendo muitas as religiões e os fanáticos que o Imperador moderava.
A cidade perdeu hoje o seu enorme prestígio de outrora, sendo um lugar sem a importância e nem a posição estratégica antiga mas foi muito disputada devido ao comércio pelos povos tibetanos e chineses e depois russos, franceses e ingleses.
A outra surpresa maior seria a chegada da irmã desse Rei, a Rainha Abchanam, ou Hdje-Hane recebida com muita festa, alegria e oferendas tal como é tradição nesses lugares. A Rainha logo reconheceu Bento de Góis e ainda muito agradecida logo o recomendou a seu irmão pelo bem que dele recebera. Teria sido a acção providencial desta Rainha uma das mais poderosas salvaguardas que defenderam Góis em Kachgar e também as recomendações dadas com salvo-condutos para auxílio de tão penosa viagem.
Poucos dias teriam passado e foi convidado pelo filho desta Rainha para visitar durante um mês o reino do Kotan, ao que o irmão jesuíta acedeu, podendo lá escolher o melhor azeviche, ou «mármore negro», que dava proventos prodigiosos e lhe seriam muito úteis para oferecer ao Rei do Cataio pela preciosidade que representava.
Enquanto estava fora da cidade, eis que chega o mercador grego, Demétrio que tivera de deixar a caravana e agora vinha prosseguir a expedição na nova cáfila que se preparava.
Nesta estada em Yarkand, deu-se conta Bento de Goes das contradições e incertezas de encontrar o tal misterioso reino cristão que se sonhava no Ocidente e ora devia estar veramente esperançado na existência real do Cataio visto que algumas pistas lhe surgiam, ora as dúvidas e as conversas que ouvia surgiam na sua mente.
O açoreano já se cansava de esperar por uma cáfila em que se incorporasse para chegar ao seu destino, até que se preparou uma embaixada para o Cataio. Estávamos em Agosto de 1604 e ele dá conta aos seus Irmãos da Índia, da nova de estarem integrados com mais 70 pessoas num séquito para o seu ambicionado destino. Não foi fácil entrar nessa embaixada tendo de pagar avultada quantia, circunstância em que, mais uma vez, lhe valeu o Rei. A partida da capital da Kachgaria, que hoje é terra chinesa e província de Xinjiang, só aconteceria a 14 de Novembro, mas já criara uma esperança maior.
Por fim a viagem continuou, passando pela região desértica do Gobi, ou «planície sem água» dos mongóis, ou na língua china, «rio sem água» atravessando alguns oásis e chegou a Aksou, cidade no Turquestão Oriental, hoje parte da China, que era o reino de um sobrinho do Rei de Kachgar que tinha apenas 12 anos. Deu-lhe o nosso explorador alguns presentes e ganhou as boas graças do tutor, mas ao partir daí foi feito prisioneiro e muito sofreu às mãos de padres muçulmanos com rigorosos jejuns e práticas religiosas islâmicas a que o obrigavam. Logo depois deste triste revés, pago um forte tributo, recomeçou a viagem, agora com mais sorte pois, na cidade a que dão o nome de Kou li ou Kourla, era Rei um filho do mesmo monarca de Kaachgar, que tanta interferência teve em toda a sua viagem.
Aí, nessa praça forte de Tchalis ou Yen-Ki, houve uma diocese católica florescente até 1946, que nessa altura foi expulsa pelos comunistas.
Após ter desfeito alguma animosidade do Rei este tornou-se muito afável e, mais uma vez, Bento de Góis mostrou os seus dotes de diplomacia e argumentação teológica debatendo com os sábios da religião dos sarracenos os seus princípios cristãos, criando uma atmosfera muito favorável ao cristianismo. O Rei veio a descobrir que provavelmente os seus antepassados tinham tido essa fé dos “misermans” que quer dizer fiéis.
Deste modo, o nosso corajoso aventureiro pôde comprovar que por lá existira uma comunidade cristã nestoriana tal como tanto se especulava no Ocidente.
Foi então que chegaram uns mercadores disfarçados de embaixadores com quem Góis pôde contactar.
Era costume já muito antigo que os mercadores se dissimulassem de embaixadores junto dos chineses pois deste modo mostravam que tinham respeito e queriam obsequiá-los. As ditas missões diplomáticas escondiam o verdadeiro carácter das viagens, e os chineses davam-se conta disso, só que, por lisonja e adulação para com o seu Imperador, não as hostilizavam. Por outro lado, muito afortunado era quem chegava à Corte pelos lucros que depois colhia.
Esses mercadores que chegaram afirmavam que tinham estado no Cataio em 1601 e encontrado Mateus Ricci hospedando-se em suas casas. Isso bastou para Bento de Góis confirmar que o Cataio e a China eram a mesma terra, só diferindo do nome dado. Ele bem sabia que Ricci estava
Dá-se uma curiosa coincidência entre Bento de Góis e Mateus Ricci pois ambos, através dos mesmos mercadores, tomaram consciência que esses maometanos se referiam à mesma terra apenas com designações diferentes! Se Ricci já estava na China, desde 1583, sabia que o Grão Cataio não existia e Góis percebeu que Cambalu era Pequim a “Cidade do Senhor”, tal como já Marco Polo descrevera, depois Fernão Mendes Pinto que lhe chamara Panquim e os chineses teimam em chamar hoje Beijing.
É provável que o vila-franquense, já quase no fim da viagem, ficasse dividido entre a tristeza e algum desânimo quanto ao objectivo da sua penosa caminhada para revelar um reino desconhecido de cristãos e unir a cristandade do Oriente ao Ocidente. Afinal nada disso existia e era ele que o podia confirmar. Porém, por outro lado, o seu zelo apostólico mostrava-lhe que tinha uma tarefa de missionação e salvação de almas a cumprir e era o que mais lhe interessava dado o seu espírito de sacrifício e a vontade de apregoar a sua fé entre os gentios.
Basta ler uma das suas cartas para ver como vivia a sua vida cristã e perceber como a sua fé era forte, vendo sempre a mão do Senhor a guiá-lo. O melhor que desejava a todos era que se fizessem cristãos.
Em vez de uma viagem menos perigosa, apesar da boa hospitalidade que recebia, a jornada tornava-se cada vez mais dura e os ferozes tártaros espreitavam os viajantes. Ele mesmo escreveu: «que têm de marchar cercados de precauções, explorando de dia para de noite prosseguirem à sombra das trevas e no meio do silêncio».
Até atingir a espantosa Muralha da China, uma das maravilhas do mundo, nos finais do ano de 1605, só de Kamil a Chiaicuom percorrera
Entretanto a segunda carta enviada a Ricci que teria sido escrita na Páscoa de 1606, só lhe chegou às mãos em Novembro, e este enviou ao seu encontro, como emissário, o cristão chinês Ciommimli que tomara o nome de João Fernandes, para o guiar até Pequim. Apesar de partir a 11 de Dezembro só chegou junto de Bento de Goes em fins de Março de 1607. Já tão decaído de forças, fraco e exausto estava que veio a falecer provavelmente a 11 de Abril de 1607, com 45 anos tendo ao menos a consolação de morrer com esses dois cristãos, o fiel Isaac e João Fernandes ao seu lado. Os investigadores não excluem por completo a hipótese de ter sido envenenado pelos maometanos fanáticos que tanto o hostilizavam, quer por razões religiosas, quer talvez por razões económicas por supostas dívidas que tinham contraído.
Não consentiram os dois cristãos num enterro com cerimónias do Alcorão, escreve Mendonça Dias, pois: «a isso se opuseram dizendo que ele sempre vivera na religião de Jesus Cristo e como tal devia assim ser enterrado». Os mouros saquearam os seus bens e rasgaram o seu Memorial talvez para que não se soubesse das dívidas contraídas.
A boa vontade de João Fernandes e do arménio Isaac parece que obrigou os ladrões a restituírem parte do pobre espólio que, em dados científicos tão rico era, como depois se pôde comprovar.
Mateus Ricci reconhecendo a incansável dedicação de Isaac, que foi para a Missão de Pequim, tratou-o com toda a estima já que todos reconheciam nele uma personalidade invulgar. Foi ainda devido às suas valiosas informações que se reconstituiu o itinerário de Góis, em parte árdua tarefa de Ricci. Julga-se que o arménio Isaac foi de barco para Malaca e, quando o famoso roteiro de Góis foi publicado por Nicolau Triggault, ainda vivia na Índia, perto de Bombaim.
As lacunas ou incorrecções que se podem encontrar nesse roteiro não podem ser atribuídas a Bento de Goes mas sim à reconstrução dos fragmentos encontrados e que Mateus Ricci tentou, entre outros, com boa vontade colmatar. Assim escreve Andrade Albuquerque seguindo as pisadas de Bruker, como outros fizeram:
«O seu diário fiel e minucioso (…) nota dia a dia as distâncias percorridas por dias de jornada e milhas, aspectos da natureza, a qualidade das estradas, os costumes das populações, o nome das localidades, cidades e reinos, tendo todo o cuidado em reproduzir com a possível fidelidade todas aquelas denominações asiáticas, que a narrativa de Marco Polo tão singularmente desfigura»[xxxv].
Longe dessas paragens mas curioso em conhecer tudo isso, é demonstrado pelos escritos do Padre Pierre Jarric, (1566-1617), um jesuíta francês que, não podendo chegar ao Oriente como ansiava, compilou em três volumes as narrativas dos seus confrades. Neles refere a viagem de Góis e mostra uma minuciosidade e cuidado que fizeram a obra ser muito lida e reeditada.
Levanta alguma curiosidade, pela comparação do tempo de paragens, itinerários e dificuldades do chinês João Fernandes que se encontrou com o moribundo Góis e mais o arménio Isaac podem ter grande dificuldade em entender o que diziam entre si, pois não falavam os mesmos idiomas. Isto retira algum crédito e torna inconsistente a dedução da duração da viagem. Por isso, a morte do explorador pode bem ter sido em data diferente da que é apontada e do que consta usualmente. Não se podem ter certezas nesse assunto em que as provas são tão frágeis.
Ainda retomando o texto de Mendonça Dias, vemos como Ricci «conseguiu reconstruir todo o Roteiro de Bento de Góis, tal como o contou na sua relação (…) conjecturando-se o monumental livro que Bento de Góis escreveu, impresso passo a passo em terras estranhas, perigosas e sem recursos[xxxvi].
É tradição oral e corrente que os relatos de Góis existem arquivados algures, provavelmente no estrangeiro, talvez na Inglaterra. O que sabemos com alguma certeza é que os exploradores que o seguiram, muitos anos depois, usaram dados do nosso jesuíta, quer para seguirem itinerários similares quer na elaboração de mapas. O facto comprova-se pela aparição de locais indicados em português, quando o mapa não o é, mas o seu autor usou por necessidade tais indicações.
Curiosa é a síntese, que tudo resume, feita pelo Professor Henrique Leitão, acerca do multifacetado e enigmático Bento de Góis: «Era um Missionário»!
Foram muitos os exploradores que seguiram as suas pisadas, ingleses, alemães, reivindicando a prioridade de ter passado por essas paragens. Embora tivesse de ser uma personalidade excepcional, tolerante, estudioso, diplomata, assumia com toda a sinceridade ser um verdadeiro cristão com uma tarefa eminentemente apostólica em toda a parte.
Esta obra não merece passar desapercebida ou ignorada, muitos foram os que se notabilizaram com viagens depois dele, porém afirma-se «perante a História que a viagem de Bento de Góis é daquelas que merecem não ser esquecida, mesmo depois da multiplicidade de expedições e de exploradores.
Tantos foram as expedições como a do escocês John Wood, (1812-1874) que, com apenas 22 anos, explorou o rio Indo e as nascentes do rio Oxus, na Ásia Central, Sir Francis Edward Younghusband, já nascido na Índia em 1863, e veio a morrer na Inglaterra em 1942, um oficial militar que forçou um tratado com o Dai-la Lama no Tibete, com uma missão ao serviço do imperialismo inglês. Alexei Pavlovich Fedchenko, o explorador russo (1844-1873), cujo corpo só foi encontrado em 1878, e que deu o nome de Fedchenko ao glaciar do Pamir, o maior do mundo, fora das regiões polares, onde os frios são mortais. Antes deles todos, era Bento de Góis que, arrojadamente, por lá passou trilhando caminhos desconhecidos do Ocidente.
Já Ernesto Ferreira falava de um mapa de 1708, referindo-se ao francês Guillaume D l’Isle, o primeiro Cartógrafo Real, famoso por muito ter influenciou esta ciência, que era tradição de sua família. Por sua vez, o Dr. Ernesto de Vasconcelos indica que este artífice tinha esboçado numa “Carta das Índias e da China”, indicações do itinerário de Góis.
As lendas acompanham a história com a sua beleza e imaginário. Se Bento de Góis acabou com as lendas do Grão Cataio, do Prestes João e tantos mistérios, ele próprio tornou-se numa lenda, alguém de quem se discute até o nome, que nunca se poderá descortinar o enigma que se singulariza na Geografia, na Antropologia, na Etnografia, na Literatura de Viagens, nas Expedições ao Oriente e na sua terra, a própria Vila Franca, onde a sua memória faz parte das nossas como um herói com que enche de orgulho cada geração que passa.
NOTAS:
[i] No Centenário de Bento de Góis (1607-1907) Homenagem da Sociedade de Geografia de Lisboa, Tipografia Universal, 1907, Homenagem a Bento de Góis.
[ii] Mendonça Dias Urbano de, “Literatos dos Açores”[ii], Editorial Ilha Nova, 2ª. Edição, 2005 pp. 544-567.
[iii] “ A Phenix”, Revista quinzenal Vila Franca do Campo, Açores, 1902-1904.
[iv] Idem, 1902, pp. 76-78.
[v] Marco Polo, “O Milhão”, Editora Educação Nacional, Colecção Mensagem, nº. 2. 1944
[vi] Idem, Ibidem, p.13.
[vi] Idem, Ibidem, p.13.
[vii] Aniante, António, “Vida e Aventuras de Marco Polo”, tradução de Adolfo Casais Monteiro, Colecção “O Romance de Vidas Célebres”, Nº 1; 2ª. Ed. Inquérito
[viii] Revista dos Açores, 1852, Ponta Delgada, reeditado em “Lendas Peninsulares” 1º. Vol. “Constância de um jesuíta” (1587-1608) pp163-237, cit por Dr. Hugo Moreira, Insulana, ob. cit. p.176.
[ix] Hugo Moreira, Ob cit, contrapõe a realidade de que, à data, fins do século XVII, de já não estarem feiras nesse Convento pois já se tinham transferido para o Convento da Esperança
[ix] Hugo Moreira, Ob cit, contrapõe a realidade de que, à data, fins do século XVII, de já não estarem feiras nesse Convento pois já se tinham transferido para o Convento da Esperança
[x] In. “Insulana” ,vol. XVIII, Instituto Cultural de Ponta Delgada, pp.168-176
[x] In. “Insulana”. vol. XVIII, Instituto Cultural de Ponta Delgada, pp.168-176
[xi] Mendonça Dias, Urbano de Literatos dos Açores, Ob cit. p. 91
[xi] Mendonça Dias, Urbano de Literatos dos Açores, Ob cit. p. 91
[
[xiii] Pereira, Alberto Feliciano Marques, Índia Portuguesa – Penhores do seu Resgate, Edição do autor, Lisboa, 1962 pp.50-63.
[xiv] Miranda, Susana Munch, O Estado da Índia e o Extremo Oriente no início do século XVII, comunicação proferida no Colóquio Comemorativo do Quarto Centenário da morte de Bento de Góis, Vila Franca do Campo. 11.04.07.
[xiv] Miranda, Susana Munch, O Estado da Índia e o Extremo Oriente no início do século XVII, comunicação proferida no Colóquio Comemorativo do Quarto Centenário da morte de Bento de Góis, Vila Franca do Campo. 11.04.07.
[xv] Chaves e Melo, Francisco Afonso de, Arquivo dos Açores, Vol. l “A Margarita Animata”, Vol. I, pp. 287.288, Edição 1986
[xvi] Costa, Susana Goulart, Bento de Góis da História e na Literatura, comunicação proferida no Colóquio Comemorativo do Quarto Centenário da morte de Bento de Góis, Vila Franca do Campo. 11.04.07.
[xvii] Albuquerque, Caetano de Andrade, Arquivo dos Açores, Ob cit.
[xviii] "Dicionário Histórico de
[xix] No Centenário de Bento de Góis (1607\1907) Homenagem da Sociedade de Geografia de Lisboa, Tipografia Universal, 1907, cit. Por A. Ribeiro, trad. Adapt, Benoist de Goes, p.5.
[xx] Mendonça Dias, Urbano de, Literatos dos Açores, Ob. Cit. Cap.
Historiadores.
[xxi] I Matos, Semedo de, Revista da Armada – À”descoberta” da China – A marinha de D. Manuel, (48) Semedo de Matos.
[xxii] Marco Polo, “O Milhão”, Editora Educação Nacional, Colecção Mensagem, nº. 2. 1944
[xxiii] Leitão, Henrique, “O Kenkon Bensetsu e a Recepção da Cosmologia Ocidental no Japão do séc. XVII” Revista Portuguesa de Filosofia, 1998, hº. 54, pp. 285-318.
[xxiv] Revista Brotéria, Vol.163,11/12, 2006, p. 634.
[xxv] Idem Brotéria, pp 635-637
[xxvi] Mendonça Dias, Urbano de, Literatos dos Açores, Cap. Oradores Sagrados, Op.Cit . p 379
[xxvii] Spence, El Palácio de la memoria de Matteo Ricci. Um jesuíta en
[xxviii] Leitão, Henrique, Comunicação 11.04.07, Cultura e Ciência dos Jesuítas entre a Europa e o Extremo – Oriente, proferida no Quarto Centenário da Morte de Bento de Góis
[xxix] Albuquerque, Caetano de Andrade, Op. Cit.
[xxxi] Mendonça Dias, Urbano de , A FENIX, Revista publicada
[xxxii] Tuly, Sir Henry,
[xxxiii] Idem. in Literatos dos Açores, pp.
[xxxiv] No Centenário de Bento de Góis (1607-1907) Homenagem da Sociedade de Geografia de Lisboa, Tipografia Universal, 1907, p.20.
[xxxv]
[xxxvi] Mendonça Dias, Literatos dos Açores, Op. Cit. p 366.
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