No fim da fila"

  • Sobre os infinitos paradoxos

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2007 )

 

    

       

  Hostilidades

©   Colecção de cactos.. Jardim Botânico. Porto.2006]


      

É assim, mal se avista ao longe, já é uma bicha de desanimar os mais corajosos. Mas não há outra solução. O guichet está lá, muito ao fundo, quase que barricado por um magote de gente exibindo documentos e diversa papelada. Avista-se um rosto atento e sorridente que tenta resolver com toda a paciência do mundo um caso atrás de caso. Foi assim com o Infante D. Henrique, o Navegador que não navegava e agora é como o rosto no guichet que faz andar e desandar e não se mexe.  
     O Cabo das Tormentas também não era fácil de dobrar e só o animo do Infante, dizem as crónicas e quem acredita nelas que o Infante radiante lhe mudou o nome para Cabo da Boa Esperança. Assim são também os optimistas rostos que espreitam do guichet. Os portugueses sempre tiveram gente enérgica para afugentar os velhos do Restelo.
     Seja lá quem fosse que se meteu num barco do tipo de «casca de noz» e partiu de solo firme e seguro em busca de hipotéticas terras, ilhas ou lá o que quer que procurassem, era gente de coragem. Este mar de humano da bicha que se agita em multidão onde a paciência é o leitmotiv não é pior de enfrentar.
   Avançamos e entramos! O ar condicionado recorda o choque tecnológico e a modernidade de termos este luxo, numa terra onde Vivaldi toca as “Quatro estações” num só dia, sem música, apenas na mudança do Verão para um puro Inverno e logo para uma amena e frágil Primavera, para rapidamente dar uns acordes tristes e um colorido de Outono mais a chuva que no boletim meteorológico é forte e contínua mas o nosso querido protector, o anti ciclone de boas memórias para toda a Europa, nega e bate o pé, resistente a todas as ameaças.
    Há sempre relógios e crianças nos arredores das bichas. O relógio serve para ver destilar o tempo a conta gotas, com vagares de quem teve uma noitada mal dormida e não se quer levantar antes do entardecer ou da noite cerrada, enquanto as crianças, para animarem o ambiente e gáudio de alguns, correm por todo o lado, com gritos estridentes que nada têm de musicais e espalham migalhas de bolos e bolachas por entre risos desconcertantes para os mártires da bicha que as olham com reprovação ou protestos contidos pela indulgência plenária de mães, avós e afins estrategicamente distribuídos pelo local. Por vezes, com farrapos de saudosismo, alguém usa um boné desbotado a recordar os mundiais de futebol, momentos de heróico patriotismo já comparados por iluminados historiadores às lutas gloriosas de D. Afonso Henriques, outros entretêm-se a mandar SMS à família ou amigos e a falar ao telemóvel conversas que temos de escutar e melhor seria menos indiscrição forçada.
     Contamos os infelizes que estão à nossa frente na fila. O infinito é uma ideia que nos ocorre para ter alguma consolação. Mas, agora reparamos! A bicha está parada! E já há um bom bocado! Alguns também deram por isso… ouvem-se alguns resmungos e suspiros, outros vão contando a história da sua vida, uma operação horripilante no hospital, as tripas e os vírus de mistura com o soro, depois a descrição de um velório, as notícias dos emigrantes de freeza farta e trabalho duro, a mulher que anda nos bailes e tem o marido na cadeia. Uns resignados e pobres reformados, apesar de tudo bem optimistas, comentam a vida de hoje e alegram-se pois já foi muito pior, pois agora se anda “a cavalo” e já ninguém anda a pé, que o tempo do pão com pimenta e dos chicharros, da espera do trabalho no canto e a fome negra já era. Um velhote amabilíssimo dá-nos a sua vez encolhendo os ombros e declarando enfaticamente que as mulheres têm sempre mais que fazer em casa do que os homens. Ficamos na dúvida se aquilo é um elogio ou puro machismo bem antigo.
     É verdade que estranhamos mas até reconhecemos ser muito bom que se aproveite assim o tempo e se coloquem tantas coisas à venda no que antes era uma severa instituição. Nestes locais, já ninguém se recorda já, mas não se podia entrar de boina, boné ou chapéu na cabeça. Agora apenas se exige o vestuário mínimo apesar de, por vezes, passarem velozmente algumas figuras do tipo executivo que destoam no meio da descontracção ou pobreza geral.
   As canetas, os livros, os telemóveis e mais o que o Diabo inventou já se podem comprar nos lugares mais inopinados. Sinais dos tempos novos. Contamos outra vez o número de pessoas à nossa frente e ainda no sentimos pior.. Começamos a ler os títulos dos livros que vão desde os infantis e didácticos passando pelos mais elaborados como os paulos coelhos até aos enormes dicionários. A máscara do Zorro, está perto do rosto cínico que afirma que não existe o Pai Natal mas o livro da Ilha das palavras e contos para adormecer também estão presentes. Temos pena que não vendam ali brinquedos, chocolates, peixe assado ou batatas fritas. Falta de imaginação. Um chocolate, um cafezinho ou um sorvete dava mais animação àquilo tudo.
   Lá de fora espreitam-nos. Aterrorizados com a multidão e com o bulício, nem se atrevem a entrar e fogem. Cobardes! Estamos ali a finca pé apesar de avançarmos a passo de caracol.
    De repente, a bicha para de novo. É que dos lados e bem à espreita, como índio na velha pradaria à espera da caravana dos caras pálidas invasores, chegam mais utentes, - que nome tão sonante! - bem devagar mas inexoravelmente vêm ocupar a sua vez que esperaram sentados. Fizeram muito bem, tolos somos nós na fila, como soldadinhos mal comportados para a revista do sargento da parada. E parados cá estarmos. Se bem que não fossemos à tropa, mas aqui sempre se aprende alguma coisa. E lá ficámos. Será que alguém se prepara para armar tenda e passar teimosamente a noite aqui?
   Chove desabaladamente lá fora. Mas porque é que não trouxemos o guarda-chuva? Vêem-se utentes exibirem triunfantes os seus previdentes protectores. Ora porque é que não vendem também guarda-chuvas aqui? Será que têm livro de reclamações? Alguém demora ainda mais porque não trouxe os documentos certos, aquele outro escusava de se enganar nos trocos.


    “Ó senhora, fale menos e conte mais depressa esses trocos”. Mas entenda-se, os pobres de Cristo, com suas pensões de miséria até tremem com as mãos doridas, moldadas pelo trabalho e pelo tempo, sentem que cada cêntimo é um pouco da sua vida e sangue que se vai. Por fim, eis que chegámos às portas do Céu, perdão ao guichet. Olhamos para trás e a multidão lança-nos olhares assassinos. Depressa, por favor, atenda-nos senão hoje é o nosso último dia de vida.
  Agora temos de enfrentar mais uma batalha. Um magote de gente aguerrida, nada igual às mais do que pacíficas bichas dos guichets, move-se cerrando fileiras, ao assalto à camioneta. Tudo serve de arma fatal. O cotovelo, o saco cheio de compras, o guarda-chuva, a maleta, a pasta. À entrada pachorrentamente aguardando sentado como rei em casa de seu sogro está o motorista que diz ticket e thank you quando estendemos os trocos. Mas nós não estamos no estrangeiro, somos para mal de nós estrangeiros mesmo por cá.
   Sentámo-nos e julgamos que vai haver paz! Ó engano ledo e cedo! Uma bela criancinha dá pontapés nas costas da nossa cadeira, tem a amabilidade de atirar pipocas para cima da nossa cabeça com alguns puxões de cabelo enquanto a música enlatado nos atinge os tímpanos. O revisor chega com ar de quem é capaz de nos pôr na rua se não mostrarmos o bilhete que mira bem antes de furar com ar desconfiado. Para além das belas paisagens que a chuva não deixa espreitar, temos a diversão de saber da vida alheia mesmo contra a nossa vontade. Alguém fala connosco para dizer que tem uma saia igual á nossa e pergunta: “Tu para onde é que vais?” Assustamo-nos quando fala que vem do hospital porque vamos ter telenovela mexicana de borla. E temos mesmo. Enjoados, zonzos e a pontos de entregar a alma ao Criador, eis que alguém toca a campainha! Toca! Toca na nossa paragem! Aos empurrões, ziguezague e tropeções saímos respirando o ar fresco como que expelidos de um saco demasiado cheio que vomita gente.
   Saímos esbaforidos e descansados.
    Cá fora a vida continua como lá dentro, outra bicha nos espera algures, parada ou em andamento porque nisto de filas e bichas só vale o tal dito bíblico: os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.