Permanência de Píndaro "

  • Leitura do Mundo e Mundo  de leitura

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2007 )

 

   

       

  Abertura ao Olhar

©   Estátua. Jardim Botânico. Porto.2006]

 

 


 

   A leitura foi um dos temas frequentes na pintura, mas cada quadro tem uma multiplicidade de mensagens diferentes dada a relação que há entre a obra e o leitor com a sombra do pintor a pairar no ambiente.

    Pintar um quadro de leitura é levar-nos a um duplo estudo do quadro. O quadro e muito para lá dele o mundo da leitura e depois regressar a uma leitura do mundo.

     Quem escolhe este tema para pintar presta uma homenagem à solidão, ao silêncio e abre a porta a presenças imaginárias, a mundos distantes, desconhecidos, a mil e um modos de mostrar a acção silenciosa da cultura. É a passagem do testemunho, a ressurreição do passado, a interiorização de alguém que aprende a dialogar ou deseja diluir-se e viver outras vidas, em outros mundos… É o reino do sonho, da curiosidade e da maior partilha.

   Alguns desses personagens leitores vestiam-se de gala, como se fora uma festa, com toda a pompa e circunstância, só para ler os seus inestimáveis livros antigos. Aprendi há muito tempo atrás, que os renascentistas se vestiam com todo o luxo trajes da Antiguidade criando uma atmosfera adequada ao estudo dos pergaminhos e documentos descobertos nessa época e que tanto aprazimento lhe trazia.

. A leitura não tinha de modo algum o cariz de trabalho. A mentalidade e a noção de trabalho eram bem diferentes. Felizmente é muito difícil ainda encarar a leitura de um livro como trabalho ou como distracção para falar de verdadeiros leitores. Alguns verdadeiros devoradores de livros como foi o caso de Rousseau, capaz de vneder a roupa e roubar o patrão para ter livros.

   No mínimo a curiosidade actua em força, Pandora que abriu a caixa dada pelos deuses, ficou, apenas com a esperança pois todos os males já se tinham espalhados no mundo. A esperança torna-se o «leitmotiv» de todas as obras e livros. Todos têm algo a receber e o livro dá. Nunca se vê o que será. Até saber, desgostos, alegrias, até sono ou insónias pode dar…

 

     O livro e o leitor têm tido um longo trato dialéctico entre si. Ora perto, ora longe enredam uma lógica contraditória em que o escritor também está presente. É curioso como a escrita pode estar viva com todos os seus personagens enquanto o escritor morre, tal como Gustave Flaubert escrevia que se sentia morrer, só como um cão sem dono, e os seus personagens estavam bem vivos e instaladas. Pois o livro pode ir para casas onde o escritor nunca poderia entrar. Até na morada dos seus inimigos, por grande ironia disto, o livro entra e até pode ter um papel importante.

     O livro é algo tão desconcertante desde que surgiu e cada vez se mostrará mais estranho com outras formas e outras mentalidades. Da pedra ao papiro, do pergaminho à imprensa e desta ao virtual, aquilo a que damos o nome do livro, tem as suas metamorfoses mas é no fundo o mesmo. Quando a imprensa surgiu muitos desconfiaram desta nova escrita e recusaram-na. Para outros era um risco pois um livro podia cair em mãos menos hábeis. Agora teme-se o livro virtual como se este fosse um pérfido assassino do velho livro de Gutemberg. Diálogo com o homem que se quer imortal. Como se a escrita fosse essa porta entreaberta para a eternidade e para o Outro e nos levasse a todos como ela

   Em S. Miguel,  nos anos de 1774 a1845, viveu o Morgado João da Arruda [1],  

 de seu nome completo João de Arruda Botelho da Câmara, no mínimo um homem incomum, aliando a comodidade e solidão procurava reunir com certa excentricidade pelo que se tornaram notórias as suas pesquisas genealógicas, pela ilha, ora viajando em estranho a cavalo e em andilhas dentro de uma pequena capela ou guarita. que o protegia de frios e do calor, ora escondendo-se numa torre onde se refugiava para aí estudar com toda a paz e sossego, pois retirava a escada em que subia e podia ali encontrar a quietude desejada.

     O que mais estranho e que nos interessa aqui foi ter mandado gravar na pedra – dezasseis pedras ao todo – o resumo dos seus trabalhos e pesquisas. Começa na descoberta de Santa Maria, os donatários, casamentos, terramotos, piratas, economia, vínculos e viagens. Os “livros pedra” foram colocados no coro da Capela da Senhora da Alegria  e Senhora do Bom Despacho na sua Quinta do Pico Arde na Ribeira Grande, local esse transformado hoje Casa de turismo de habitação com deslumbrante localização. Ali estava o mundo na pedra, visto por alguém, mais cônscio do valor do tempo do que dos homens.

     Camões estava bem ciente dessa aspiração ao aludir àqueles «que da lei da morte se vão libertando» pois bem sabe que isso se aplica a si. Mas este é apenas um caso. Muitos escondem-se no pseudónimo ou anonimato e ainda outros como Shakespeare, gostam de lançar um manto de obscuridade sobre a sua vida e levam-nos a perturbantes questões. Os homens sempre tiveram o desejo de imortalidade ligada a si e de qualquer modo ao nome. Os pintores das cavernas rupestres e outros mais, até em cidade do cinema Hollywood há a calçada dos artistas onde os mais famosos têm o direito a colocar as mãos no cimento fresco para a posteridade. Também pessoas bem mais modestas ainda hoje imprimem a sua mão num azulejo para a porta da sua casa. Um pouco, quase nada, mas é a imortalidade desejada que assim se afirma ingenuamente.

 

   Uma vez, visitei um imenso museu maravilhoso onde cada quadro parecia uma voz a chamar por mim.Eram tantos, tantos! Foi tão doloroso não poder atender a todos pois há quanto tempo estavam ali fechados à espera de um olhar como de uma porta para os ressuscitar que não consegui continuar lá dentro e vim para o jardim verde, tão verde que parecia permanecer eterno sem pedidos da água de matar a sede com um olhar de quem não pode ficar.

      Fiquei menos perturbada por este meu impulso de sair de um belo museu sem querer ver mais nada, depois quando li um texto em que se afirma que um verdadeiro leitor só pode sentir angústia terrível ao entrar numa imensa biblioteca, onde cada livro espera por um leitor para a sua ressurreição. Esmaga-nos a impressão de tantos olhares fixos em nós como apelos que nunca poderemos satisfazer. Os livros são o mundo inteiro, o passado, sem isso nada resta da história. Sem livros acaba-se a história e o mundo que conhecemos. Apesar de tantos livros nos parecerem absurdos e desnecessários, eles ficarão a marcar falsamente ou não épocas para decifrar.

      Só os cépticos acreditam na história. Dá-lhes a possível segurança para duvidar do que lêem. Talvez seja a frustração que causa o velho dito popular: «O papel aceita tudo». Querendo desconfiar da escrita, desconfiam do mundo inteiro porque ao fim e ao cabo só na escrita o mundo todo acaba. Nem é verdade, nem é mentira, é tudo, a partilha de um espaço que para cada um é apenas uma viagem curta onde pode conhecer apenas a clareira da imensa floresta de enganos que é a vida. 

          O livro, no dizer do poeta da Antiguidade Píndaro, ficaria para lá  da sua morte e da desaparição da cidade que ele cantou. Píndaro bem sabia que tudo muda, tudo desaparece, mas o livro vai com a herança cultural, perdura muito para lá de cada presente. Ele pressentia como tantos outros poetas que as suas palavras iriam muito mais longe do que ele.

        Que belas e inesquecíveis são as palavras do poeta inglês James Elroy Flecher ao escrever:

 

     «O friend unseen, unborn, unknown /(…) Read out  my words at night, alone./ I was a poet, I was young. /Since I can never see your face,/ and never shake you by the hand, /I send my soul thought time and space/ to greet you / You will understand»..

 

    Haverá sempre alguém que estenda a mão às palavras escritas e ao seu segredo. Tempo? Espaço? Que importa?

Entendem-se, dialogam e o mistério continua no livro do mundo para acabar no mundo do livro.

 

 

 


 

 NOTAS

 

 

    [1] - Dias, Dr. Urbano Mendonça Dias, “Literatos dos Açores”,  Editorial Ilha Nova, 2ª edição 2005 ps 69 e seg.