"  A  grande Máquina "

  • Sobre um  parafuso inútil.

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2007 )

 

  

       

 

Retorno do Caos

[  Batente de porta. Foz. Porto.2005]

 

 


  

 

    A gigantesca máquina movia-se célere, sem uma hesitação, sem um estremecimento que não fosse justificado. Há quanto já o Tempo fabricara um arremedo do que era agora aquela monstruosidade que nem precisava de quem a guiasse? Forte e imponente como era, sabia tudo e nada nem ninguém se lhe opunha. Ela sabia por onde começar, destacava e burilava tudo o que era útil, tudo o que serviria e depois tinha a secção dos excedentes, metáfora de lixo ou «deita fora» por onde desapareciam implacavelmente todos os detritos de toda a espécie e nem se iria agora perguntar de quem eram tais detritos ou mesmo se eram excedentes pois a máquina sabia que eles deviam estar fora do sistema. Quem decidia o que eram sobras? O termo “sobras” nem sequer estava no dicionário dos termos técnicos! O sistema devia andar sobre rodas, não interessava mesmo nada esse ligeiro pormenor mas sim os astronómicos resultados do sistema.

     Não havia risco de parar pois a utilidade das coisas é mesmo servirem, degradarem-se e serem descartáveis e substituídas por outras melhores e mais novas, em eficiência crescente e o sistema não ia ser tão estulto que se perguntasse porquê ou ainda pior até quando?

   Ouvira-se uns vagos zumzuns de degradação e limites, mas essas palavras eram mal vistas, impróprias e mesmo reveladoras de falta de gosto e de educação no sistema assim feliz a rodar…

  De repente, houve um ligeiro oscilar na monstruosa máquina! Depois algo mais grave! Por um brevíssimo instante, uma roldana diminuiu o andamento. Não é que parasse, oh!, isso nunca, jamais um grave deslize de eficiência global e rigor integral.  Apenas um estalinho se ouviu e um pequeno, mesmo muito pequeno parafuso saltou do bojo imenso, rolou numa viga de metal, voltejou no ar, bateu num vidro transparente, pois tudo é transparente na máquina e no exterior do sistema, e por fim caiu no chão rolando, rolando num ruído que ninguém se lembrava de já ter ouvido.

   O pobre parafuso, ainda meio tonto, percebeu que devia pular o mais longe que pudesse antes de ser colhido inexoravelmente para a temida secção de detritos inúteis, tão temida em tempos como a ida para o Hades ou Inferno. Zonzo, o ruído da máquina e o movimento do sistema pareciam-lhe pavorosos, indescritíveis, mas ainda podia avistar parafusos seus irmãos que continuavam serenos e empenhados em cumprir as suas tarefas, zelosos e úteis como convêm ser os parafusos.

   O seu impulso, já que a cabeça de metal lhe ficara intacta, foi ainda tentar procurar o seu lugar na máquina pois, por menor que fosse um parafuso, sempre deve fazer falta. Olhou e voltou a olhar até se convencer de que não fazia falta nenhuma. Isso humilhou-o um pouco, depois até bastante. Mas com um pouco mais de tempo ficou curioso.

   O sistema era infindável. A sua cabeça chata não conseguia abarcar tudo e por mais que rodasse nada via senão a máquina. Seriam uma e mesma coisa, máquina e sistema? A máquina é que construiu o sistema mas nem disso ele tinha a certeza. Um bom sistema, ele só conhecia um e bastava, deve estar seguro por uma máquina que não erre nem tenha falhas. Deu um pulo para trás! Mas ele era uma falha! Estava a menos lá? Ou estava a mais? Haverá mais parafusos assim como eu? Sentiu-se eufórico com a ideia de deixar de estar só. O parafuso aparafusava a cabeça e não descobria saída!

  Dai a nada, aos pulos e aprendendo a equilibrar-se pôs-se à procura de mais parafusos. Havia outros, por ali… Nem todos tinham tido a sua sorte. Uns tinham perdido a cabeça ou uma parte dela, outros andavam muito pior do que ele, outros estavam mutilados. Mas a alegria de ver tanto parafuso era grande ao mesmo tempo que crescia a perplexidade.

     Isto não é tão perfeito assim! Ou já fomos substituídos ou a máquina tem parafusos a mais? Nós somos parafusos excedentes que é o mesmo que «estar a mais». Para que nos fizeram então? Um sistema deve ser globalmente perfeito. Era isso, o sistema era perfeito! Globalmente era a perfeição, só eles não eram globais, eram uns tristes que mostravam a sua ineficiência de ser a mais na prova da máquina poder rodar sem eles.

   O primeiro parafuso começou a embirrar com os companheiros. Estavam desesperados por irem para os excedentes, as sobras, os supérfluos que até tremiam e caíam com o barulho metálico da queda abafado pela máquina. Eram grotescos, marcados pelas rodas e roldanas, sem elas sentiam-se inúteis. Tinham bem presente que um parafuso inútil é a mais abjecta posição no sistema e na máquina. E agora?

   O nosso parafuso não parava de pensar e resolveu escrever um ofício de protesto à máquina e ao sistema

   Com a sua ponta afiada declarava por escrito, em triplicado, rubricado, fotocopiado e registado com aviso de recepção, o seguinte:

 

   Sou um parafuso sem máquina nem sistema;

   A máquina e o sistema são mantidas por parafusos leais e atarraxados;

   Sem mim não podem ser eficazes mas eu estou cá fora;

   Não quero ser readmitido nem excedentário;

   Os outros parafusos têm de ser justificados pois eu sou a sua injustificação;

   O sistema precisa da máquina e a máquina dos parafusos;

   Sem parafusos todas as máquinas desaparecem, todos os sistemas caem;

   Um parafuso a menos e talvez seja o último a aguentar o todo

   E eu devo ser o último parafuso inútil

   A partir de agora tudo depende de mim!

 

   Então o parafuso inútil esperou, esperou, a tremer com tal expectativa que até rodopiava sem cessar de nervoso que estava…

  A máquina mandou a carta ao sistema e houve reunião, convocatória geral, depois plenário, projectos, comissão, inquérito, mais uma comissão de relatórios, outra reunião, depois plenário e inquérito, projecto, comissão de inquérito aos inquéritos,  o sistema acelerou e a máquina encravou…

    Os diligentes parafusos, mal tudo parou, desataram a desatarraxar-se e com um enorme colapso a máquina e o sistema caíram de roldão no excedentário comum. Era o caos!

  O primeiro parafuso deu pulos de contente, rodopiou, saltou e riu-se às gargalhadas!

   Logo se pôs em acção e preparou-se para inventar uma máquina…