"  Abertura ao invísível "

  • Sobre um presente de Natal

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2006 )

 

 

       

 

Aparições

[ Foto de Galáxia. Telescópio espacial Hubble.]

[ © The Antennae Galaxies/NGC 4038-4039. Hubble Space Telescope. HST ]

 


 

Apanhei um Natal no ar e segurei-o nos braços. Vi logo que era demasiado pesado para mim e tive de pedir ajuda. Mas por mais gente que chegasse não conseguíamos aguentar e segurar o Natal no ar. O peso era tão grande que todos se cansavam mas teimavam em não o largar.
    Pudera, quem é que é que pode largar um Natal caído do ar? Com ele nos braços, ainda por cima por desembrulhar, toda a gente sabia que havia um milagre a acontecer. Porém seria lindo vir todo arrumado, pronto a consumir como aqueles bolos de festa que chegam em caixotes, são tão bem-parecidos por fora e não sabem lá muito bem por dentro. O Natal não vinha preparado para consumir, nem limpo, até trazia muita poeira. Era desarrumado, enorme. Pesava como chumbo nos braços cansados.
    Tal como estava, com tanta gente a segurar, sem saber onde o pôr, acabaria por se amarrotar ou por quebrar de vez. Depois quem é que pode consertar um Natal?
    Continuámos todos alegres com aquele Natal ali, caído do céu, perplexos como qualquer pessoa que tem um milagre na frente e sabe que não é seu.
     Também não era o primeiro Natal. Esse também veio de lá do céu e foi com estrelas, magos e promessas de espantar e aturdir o mundo inteiro.
     A nossa curiosidade crescia por aquele Natal ali a levedar como se fosse bom pão ou massa sovada. Depois quem não quer um Natal caído do ar, mesmo sem o ver, nem o desembrulhar? Sabe-se que não é prenda, nem é objecto, nem é pessoa. É acreditar no milagre, no que se sente, nos enternece, nos põe lágrima no canto do olho, nó na garganta e uma saudade imensa que ninguém sabe definir. Agora, estava ali, bem sentíamos que estava, o embaraço era o que fazer com ele?
        Resolvemos pousá-lo no chão e sentarmo-nos todos em grandes apuros de desenlace. Primeiro havia que o colocar no lugar certo. Mas logo todos se riram. Como é isso? Como é o lugar certo para o Natal? Acontece em toda a parte, até onde nem se sonha nem se espera. O Natal não é de todo o lugar? Ou há só um lugar verdadeiro?
     Difícil decifrar isto!
     Claro que, para uma festa ser grande, bela e memorável, deve ser metódica, programada e com muitos preparativos. Porém as imitações de Natal são assim e são tão falsas que chocam os mais corajosos e entristecem os mais sinceros. Ora! Quem disse que o Natal tem de ser uma só uma festa como as que se fazem hoje?
    Quando nasce uma criança, todos ficam felizes nessa hora, riem de contentes, mas isso não é festa, é alegria, é pura alegria do coração. O milagre acontece com muita esperança por dentro. É a vida que faz a festa e nós só assistimos. A alegria é gratuita.
     Lógico! Primeiro temos de encontrar alegria e por isso chamamos as crianças. Elas chegaram e nem por isso o Natal se desembrulhava. Porque gritavam, discutiam, falavam de mil coisa que lhes ensinaram já, por fim brigaram e choraram cada qual para o seu canto. Queríamos alegria mais uma canção infantil e tínhamos lágrimas.
    Nem ouvíamos as músicas de Natal que se entoam por aí e que o Menino Jesus nunca escutou. Por que se diz são as músicas Dele? Nada disso! O Menino teve os cânticos dos anjos só para si. Nós somos sempre desafinados, com letras e melodias desastradas que só o podiam ter feito chorar de susto assim pequenino e frágil como todos os meninos.
    Para que é que fui apanhar este Natal? Ele ia pelo ar, seguindo o seu caminho e agora está aqui e nem o sabemos desembrulhar.
    Por fim, com receio e custo, rasgámos os papéis e espreitámos lá para dentro. Assomaram as coisas mais incríveis, quilos de bondade, litros de paciência, milhares sacos de generosidade, caixotes de humildade, milhões de toneladas de perdão, frascos de compreensão, latinhas de carinho e ternura, mais sacos de pastilhas para combater a má vontade. Pronto, já não havia lá mais nada nem sombra de festa com fitas, luzes e mil engenhocas
Para onde teriam ido presépio, árvore, pudim e prendas? … Faltava tudo! Nem sinal de neve para postal, nem sino, nem “boas-festas” de chefe, subsídio, carro novo, lauta ceia, nem sequer um fato vermelho de São Nicolau, nem renas, nem mil enfeites e as loucuras dos homens.
   Então, no meio da frustração das gentes, alguém falou:

       --- Este Natal é que é verdadeiro. Não sabemos é ver!

     O Natal é recomeçar tudo. Construção nova. O presépio vivo somos nós, pastores e reis, criados e camponeses, lavradores e moleiros de tempo. Cada qual a seu modo e com seu presente para o Menino. Depois Ele concede prendas especiais para todos os meninos que nascem por essas grutas e estalagens do tempo espalhadas por aí.
    De repente, todos notámos. O Natal já não pesava nada, e nem era preciso segurar. Ele aguentava-se por si suspenso no ar. Tomara vida. Sem se confundir com a figura chamada Pai Natal, que não tem nada com isto.
Era mesmo o seu espírito, o espírito de Natal, o essencial que é invisível e está só no calor do coração que segurava o Natal ali e pudesse já estar a espalhar-se por todo o lado.
     --- Já cheira a Natal – disse alguém. O Natal não cheira mas a imaginação produz tudo, calor, ternura, brilho nos olhos, fogo e neve, torna os velhos crianças e as crianças velhos sábios.
    Num ímpeto, foi o próprio Natal que nos levantou do chão e subimos com ele até aos céus bem azuis juncados de estrelas cintilantes como olhos a piscar. Lá de cima, vimos a nossa ilha, as nossas casas, estradas e igrejas. Cânticos lindíssimos soavam nos ares. Mas não eram dos anjos. Era só a harmonia celeste, as estrelas que sempre se soube que cantavam e agora ouvíamos. De tão agradável lugar ninguém quer sair, e dizíamos todos:
         --- Não voltamos, queremos ficar sempre assim. Leves, a sonhar, sem querer labutas nem mais cuidados.

O Tempo, que nos espreitava com longas barbas brancas e ar severo, Cronos que tudo devora e só deixa o presente vivo, sentenciou implacável:

      --- Voltem para trás! Vão fazer o Natal!

     O profeta louco ainda acrescentou:

    ---  «
Dais muito pouco, quando dais daquilo que vos pertence
            Quando dais a vos mesmo é que dais realmente».

  Juntámos um punhado de estrelas nas mãos e com elas veio a coragem de descer num raio de luz. A sabedoria do Menino, nascido para dar a Vida aos homens de boa vontade, dava-nos uma audácia diferente. De ser pequeno, humilde, sereno, de acreditar que o verdadeiro amor está por todo o lado, no mais minúsculo dos gestos, escondido dos grandes festins, do ruído e das pompas do mundo. Tudo, sem Amor, é tão oco e não vale nada!
    Há que tentar ser outra vez criança e em mil formas de infância, todos têm imenso para dar até sentirem que já são diferentes, gente fraterna, que realiza a promessa do Menino. Uns irão à frente como João Baptista, outros virão depois como Pedro, Tiago, todos os anónimos na longa procissão dos séculos. Mas deixam a sua pedra de construção, deixem um sinal, mesmo pequenino de que receberam o Natal e aprendem a ver o mundo com os olhos de quem aprende cada dia que o Natal cai do céu, ninguém se livra o segurar nos braços para nascer um dia de verdade.
      O Natal já está plantado. Como árvore nova há-de crescer até os ramos cobrirem a ilha, os mares, os continentes e a Terra até se unirem ao Céu!