"  Falando de rãs, de Filosofia e de senso-comum "

  • Sobre os limites do "visível"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

       

 

Enigmática proximidade da Beleza

[  "Galáxia M100",  Telescópio Espacial Hubble, HST.]

[ © HST, "Hubble Space Telescope"  ]

 

 


 

    Quando as aulas começavam com um texto acerca do que é que «O que o olho da rã diz ao cérebro da rã»[1] muito alunos começavam a desconfiar que se tinham enganado na porta da sala. Mas em breve chegavam à conclusão que a filosofia ronda por toda a parte e estudar o que vê uma simples rã, que nem é tão simples assim. Esse pequeno animal, para além de não ver cores, tem um olho estacionário e é apenas capaz de ter quatro estimulações ópticas pois o seu cérebro recebe muito pouca informação do mundo. Como os mamíferos são muito mais complexos e especialmente o homem, o seu cérebro capta tantas informações que se tornou erro dizer que temos só cinco sentidos porque foi já descoberto que temos milhares de sentidos[2], todos eles independentes e que só se organizam pelas vias nervosas e se combinam no cérebro, na complexidade da vida mental resultante da variedade e número das informações independentes umas das outras que chegam ao cérebro por caminhos diferentes, desde o nosso nascimento e que se vão elaborando e complexificando pela aprendizagem. Daí resulta na prática que a estimulação precoce do bebé só evitará que se atrofie ou nem chegue a funcionar grande parte do maravilhoso “instrumento” de interpretação do mundo de que somos dotados.
   Curiosamente, o escritor francês, Anatole France, (1844-1924), Prémio Nobel de 1921, era capaz de escrever que; se cinco biliões de pessoas acreditarem numa coisa estúpida, isso continua a ser estúpido; comentava com o seu subtil e conhecido cepticismo acerca da natureza humana:


     «Gostaria de ver o mundo com os olhos multifacetados da mosca ou o cérebro do orangotango»
[3] .

   Jamais poderemos saber o que é a realidade para os outros seres nem se a realidade que conhecemos é uma grande ou ínfima parte disso a que chamamos Universo.
   Para cada espécie há um mundo diferente e a interpretação desses mundos é só o que cada qual conhece. Chegamos à multiplicidade dos mundos em vez de ter a ingenuidade que pensar que o mundo é percebido do mesmo modo por todos.

Tal facto poderia levar a uma discussão sobre uma concepção filosófica que neste sentido não pode ser aceite.

    Mas o olho da rã demonstra ainda como afinal o genial filósofo Kant (1724-1804) tinha razão ao estabelecer as categorias “a priori”da experiência, para além das quais estamos totalmente adormecidos. Mais ainda, essas são as fronteiras do nosso mundo, mas o mundo, esse em si mesmo, esconde-se sempre às nossas possibilidades de conhecer.

   A luz não é a luz, pois há muitas formas a que não temos acesso, e é demonstrado pela ciência.

    Na Antiguidade os egípcios atribuíram à fonte de luz que vinha do Sol ao olho de Deus, que assim cobria a Terra com a sua bondade e por isso o adoravam pelos benefícios que trazia. Foi uma época em, durante algum tempo, dominou, um monoteísmo centrado no Sol. Foi Amenofis, o faraó que, mal chegou ao poder, abandonou o politeísmo e tomou o nome de Akenaton, em honra de Aton, o Sol. Chega a causar alguma admiração o paralelo entre um salmo da Bíblia judaica e o Hino ao Sol deste místico e revolucionário rei.

    A luz assumiu sempre um aspecto mítico e religioso que continuou a par das ciências a fascinar o homem. “Dar à luz” é ainda uma afirmação carregada de simbolismo, tal como “caminhar para a luz”, “ser iluminado”, “fez luz de repente no espírito” “o século das Luzes” e tantos outros exemplos que poderíamos dar.

    A descoberta da “cegueira normal”, chamemos-lhe assim, é recente. O que captamos da luz não é de modo algum essa “energia” mas apenas algumas das suas formas a que temos acesso e muitas outras são-nos totalmente inacessíveis. Agora, com a evolução da ciência, que, ironicamente nos veio demonstrar como os nossos sentidos podem ser valiosos para conhecer, e ao mesmo tempo incapazes de se darem conta de outros elementos existentes que só os instrumentos captam, embora alguns desses estímulos como os raios ultravioletas, os ultra sons e infra sons posam ser captados por outros animais mas o homem não tem acesso, quer dessa formas de luz, ou do som, quer de mil modos que como esse mesmo Universo se apresenta diante de nós. A descoberta do micro e macro cosmo é uma revolução bem recente.

    Teríamos chegado assim a um momento em que nos poderíamos extasiar pelas nossas capacidades de visão e captação de dados do mundo. Ora porém vem logo a desilusão acerca das nossas capacidades. Apenas vemos o que aprendemos a ver. Não vemos senão através de instrumentos em que confiamos. E ainda por cima vemos mal.

    Toda a visão das coisas é sempre uma parte delas, não se conhece totalmente nenhum objecto, seja ele qual for. Temos de ter uma perspectiva. A nossa fragilidade dos nossos conhecimentos, embora já longe da pobre rã que se limita a caçar e evitar ser caçada, mostra que não estamos nada atentos ao que vemos.

    Helen Keller (1880-1968) foi uma espantosa mulher que bem cedo, em criança, antes dos dois anos, ficou cega e surda. Com uma inteligência invulgar e a ajuda de uma professora dedicadíssima, Anne Sullivan, conseguiu passar de um mundo quase vazio para um mundo de beleza e profundidade que os seus livros e a sua vida nos permitem admirar. Face às suas poucas possibilidades de saber como é que os outros seres humanos viam o mundo, cheia de curiosidade, perguntou uma vez a uma amiga que tinha ido passear ao bosque, o que vira. A resposta de que nada vira de especial, deixou-a desolada.

   Somos assim, como esta amiga de Hellen Keller. Não vemos “nada”. Olhamos com tal indiferença a espantosa diversidade e maravilha que nos rodeia e dizemos. «-Não há nada para ver!» Ou o que vem a dar um pouco no mesmo: «-Não estou a pensar em nada».

   Com uma fina ironia, o famoso matemático e lógico de Oxford, Charles L. Dodgson, conhecido pelo pseudónimo Lewis Carroll (1832-1898) em “Alice do outro lado do espelho” obra escrita para crianças em 1884, mas só verdadeiramente entendida por adultos. A pequena Alice, ao ser interrogada pelo personagem, Rei Vermelho, acerca do que estava a ver, declara que não está a ver nada. Já não é Hellen Keller, mas o rei que se espanta e diz ironicamente: «-Tens mesmo uns óptimos olhos»
[4]. Ele toma as palavras à letra e «não ver Ninguém» seria já ver na complexa linguagem do outro lado do espelho.
    A descoberta do “nada” é tão complexa do que a descoberta do “tudo”. Quando se diz que “se já viu tudo” a verdade é que pouco se viu. É impossível esgotar a visão!

     Ainda mais estranho parece quando é mesmo uma criança de dez anos apenas que muito seriamente diz: - «Este “Nada” faz-me pensar muito!»

     É a descoberta de uma porta para o poder do pensamento e da sua fiel companheira a ignorância. 

   O conceito de Nada será, desta feita, ao contrário do anteriormente escrito, já uma reflexão com longo passado na história da filosofia, nas ciências e até na religião. Como é que se descreve o nada? Argumentar que Nada é nada, porque não pode ser senão nada, é chamar por Monsieur de La Palisse
[5] para resolver a questão e não isso nos satisfaz.
   Como é que do “nada” pode ter começado “tudo”? Se nunca existiu começo, o nada deixa de fazer sentido? A origem ou o fim do universo não é coisa que se veja, mas todos criamos uma forma para explicar como é que “tudo” começou e como é que estamos aqui, neste pequeno planeta, num minúsculo sistema solar, de uma galáxia entre biliões e biliões delas.

  Assim da simplicidade da rã chegamos ao nada que ela não é, mas do qual o nosso conhecimento está próximo. Quanto mais inteligentes nos julgamos, mais falhas e fendas aparecem nas paredes do belo palácio do Saber. Ninguém tem sequer o pequenino prazer de poder escusar-se a isto dizendo que não sabe nada. Porque sabe alguma coisa e esse “nada” aumenta em profundidade e extensão quando mais se avança no conhecimento. A descoberta do saber é a acompanhada, quando se torna em verdadeiro conhecimento, de uma constatação que nos humilha e nos faz regressar sempre à cegueira, que é a descoberta dos nossos limites cada vez mais evidentes. Antes, ao menos não sabíamos e podíamos sonhar que aumentando o conhecimento diminuía o campo da ignorância, mas o que acontece é mesmo o contrário. Os mais ignorantes nunca se dão conta de o ser, não sabem que são assim, nada os faz vacilar, dentro dos seus limites invisíveis tanto para pensar como para as tarefas do seu dia a dia. Contudo o conhecimento científico não começa pela ignorância mas pelo erro. Da noção errada da criança, do primitivo, do senso comum, é que a ciência começa por um «Não» que derruba um pouco o falso saber para outro menos erróneo. Temos porém de entender aquele paradoxo que Einstein teria escrito:

    «Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos».

    A rã sobrevive bem com as suas aptidões. Nós somos muito mais ambiciosos. Não querermos apenas sobrevier. Não nos resignamos a não tentar, em todas as gerações, abrir a caixa de Pandora e tirar de lá tudo o que podemos. Eva foi uma mulher curiosa e Pandora também. Os mitos muitas vezes atribuem a culpa à mulher mas, de certo modo acabam por valorizá-la por inserir a desordem num mundo que estagnaria sem isso. Os homens fizeram os mitos, as mulheres tornaram-nos possíveis. A verdade é só a curiosidade. Apenas quem perde a visão ou outro sentido entende como antes lhe eram preciosas e mal usadas essas capacidades.

      «Têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem» … Vem de muito longe a acusação.

     Vemos com “maus olhos”, ou olhamos sem ver, só vemos o que nos interessa, só damos conta do mal dos outros, vemos o areeiro no olho do vizinho e não a pedra no nosso olho. Afinal, aprender a ver, é aprender a pensar assim como aprender a pensar é aprender a viver. Nascemos com um “equipamento” de “aparelhos” para usar para o bem ou para o mal. Só tarde porém é que descobrirmos como ao contrários das coisa úteis, a vida não traz o tal manual de instruções, nem a filosofia, que serve para viver, está nos livros, nem a religião que se quer praticar é um rio de águas tranquilas.
     Nesse imaginário rio, as rãs ficariam alegremente pelas margens no seu coachar tranquilo, mas nós iríamos investigar, querer passar para a outra margem, constituiríamos pontes, iríamos até à nascente e depois à foz. Por fim descobriríamos o mar… E não ficaríamos por ali. Queremos mudar tudo e o pior é que já tudo isso já se fez e não sabemos como nos mudar a nós próprios.

     Hellen Keller deixou uma mensagem que desejava divulgar e que todos nós entendêssemos para nos tornarmos mais felizes e sabermos o que podemos desfrutar neste mundo:

   «Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. E o mesmo se aplica aos outros sentidos. Ouçam a música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem cada objecto como se amanhã perdessem o tacto. Sintam o perfume das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. Usem ao máximo todos os sentidos. (…) Mas, de todos os sentidos, estou certa de que a visão deve ser o mais delicioso».

    Se o apelo fosse nosso não teria tal intensidade. Todos aprendemos com ela. O que vem mostrar que um cego pode ser menos cego do que muitos com bons olhos.

     Por outro lado, já num contexto mais científico, Carl Sagan, que infelizmente já faleceu, (1934-1996), no seu último livro 6 deixou-nos a certeza da nossa diminuta visão, pois a complexidade da luz é enorme e dela só retiramos uma pequena parte. Tal como os daltónicos que só vêem algumas cores ou não as distinguem bem, nós, que não temos um olho multifacetado nem estacionário, apenas somos sensíveis a um tipo de luz ou cores, sendo-nos vedados o que existe acima ou abaixo dos parâmetros em que funcionam os nossos receptores.

   Este cientista tinha a preocupação de separar a pseudo ciência da ciência como a pseudo religião da religião, embora fosse agnóstico mas exigia o rigor e a verificação das hipóteses e a sua confirmação por espíritos neutros, mais difíceis de encontrar do que parece, pois está comprovado que a nossa simpatia e preferência nos inclina muito mais para as teorias que movem as nossas emoções e crenças ideológicas.

    Sagan adverte-nos ainda contra os nossos preconceitos e mitos vividos que não podemos descobrir e que tendem a valorizar apenas a luz visível. Ver para crer, deixou de ser bom senso mas apenas senso comum. Não podemos ver átomos nem galáxias distantes e nem por isso eles deixam de existir.

     Valorizamos excessivamente uma falsa realidade por ser esta com que lidamos até hoje. Só agora começamos a ter consciência da nossa cegueira “normal” que nos concede um Universo bem diferente do que realmente deve ser. Carl Sagan ficou conhecido mundialmente por ser um excelente comunicador que pôde divulgar a ciência, a Astronomia e a Exobiologia, isto é, o estudo da possibilidade da vida fora do nosso planeta. Nesse campo, como em outros, buscava com o maior rigor verificar a possível existência de extra terrestres e dos fenómenos que se podem agrupar como paranormais.  

  As rãs usam o seu senso comum para subsistir, mas nós temos de lutar contra ele. O senso comum é um terrível obstáculo ao bom senso e não se confunde com ele. Ninguém se queixa de falta de bom senso, mas quando começamos a pesquisar as nossas certezas, acabamos por ficar com muito poucas, em vez de viver numa casa construída na rocha, descobrimos que nem uma tenda segura temos e estamos de passagem num mundo de mudanças cada vez mais veloz. O bom senso não grita alto como o senso comum, murmura na consciência como o grilo de Pinóquio, por isso temos de ouvir no silêncio o seu conselho para que a nossa rápida passagem por este planeta, não o torne pior, o nosso saber seja humilde e a nossa acção tenha presente o Outro, que é o Futuro em forma de esperança.

    Proféticas queriam ser as tolerantes palavras conclusivas de Carl Sagan quando escreveu:

. «E se grande parte do universo pode ser compreendida em termos de algumas leis simples da natureza, aqueles que desejam acreditar em Deus podem com certeza atribuir essas belas leis a uma razão que sustenta toda a natureza. (…) É muito melhor compreender o universo como ele é realmente do que imaginar um universo como gostaríamos que ele fosse. Saber se vamos adquirir a compreensão e a sabedoria necessárias para enfrentar as revelações científicas do século XX será o desafio mais profundo do século XX

   As palavras: «O século XXI será espiritual ou não será», revelam os riscos de destruição ou construção que a humanidade como nunca antes enfrentará.


NOTAS

 

 [1] Y.Lettvin, H.Maturana, W.S. McCulloch e W. Pitts, MIT.

 

[2] Segundo a teoria da “célula única” de David Hubel e Trosten Wiesel acerca do sistema visual, 1959, Nobel da Fisiologia em1981

 

[3] Anatole France, O Jardim de Epicuro, 1895.

 

[4] see nobody on the road,' said Alice.

 

[5] É provável que Monsieur de La Palisse não tenha dito nada de extrema importância na sua vida. Só que morreu e um aio ou criado terá exclamado: Monsieur de La Palisse antes de morrer estava vivo. O que óbvio e os ditos que lhe são atribuídos são sempre com o sentido de uma evidência que não acrescenta nada ao que já se sabe.

 

[6]  Billions & billions Thoughts on life and death, 1996, obra que não chegou a concluir