" Tias de toda a gente"

  • Da discreta presença dos "perfumes"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

       

 

Encantos invisíveis

[  "  Janela de Miragaia", Margens do Rio Douro, Porto,2006.]

[ © Levi Malho, foto digital . ]

 


 

   

Aquelas tias que toda a gente tem estão a ficar quase tão apagadas da memória com os numerosos primos que outrora polvilhavam as famílias e hoje desapareceram dos mapas genealógicos, logo que não sejam importantes, VIPs, ministros ou muito mas mesmo que seja
muito vagamente parentes de alguma família nobre ou realeza.

   Causa algum pesar e muita nostalgia quando se ouve dizer, em tom de enfado ou vago referencial já quase esquecido:

  - Ah! Ainda era minha tia….

  Merecia mais do que essa frase solta. A ternura dispensada à criançada, as humildes mas sinceras prendas feitas e trazidas por suas mãos, a paciência de aturar as nossas teimosias, birras e “maldades” infantis deviam trazer à memória alguém que está para sempre na nossa história e as palavras que recordámos não são os sentimentos fortes que deviam permanecer, apenas uma pálida imagem ténue e apagada
já.

     Noutros tempos, a infância de muita gente era povoada de uma profusão de tios e tias numa disputa confusa do amargo e doce de
parentela tão imprescindível à vida como a gripe, sem vírus, um velho telefone e um roufenho aparelho de rádio.

      Lembro-me vagamente de ouvir dizer:

     - Hoje as tias vêm cá a casa!

      As crianças eram avisadas e bem prevenidas com subentendida invocação de bom comportamento. Os bibes e laços de fita eram examinados, as mãos e os joelhos inspeccionados. Mal chegávamos do jardim ou da brincadeira interrompida, diziam-nos solenemente:

    -Cumprimentem as tias!

    Olhávamos, com o espanto dos olhos curiosos de crianças, os rostos estranhos que nos observavam procurando em nós traços de infâncias já distantes, ou o rosto de alguém que em nós se reflectia, enquanto satisfazíamos o cerimonial dos cumprimentos e escutávamos pasmados os comentários das tias:

    - Como eles crescem! Estás mais magra! Já estou a trocar o nome de vocês. Estás a ficar muito parecido com teu avô. Ah! Tu tens uns ares que lembram logo a tia Henriqueta. Reparem na expressão dos olhos deste. É a cara do Jorge. Como o tempo passou depressa!

   De olhos arregalados para as tias sentadas no sofá de palhinha da sala, adivinhávamos um longo passado oculto nos olhos, sem sabermos quem era o avô em causa, quem seria a Henriqueta ou o falado Jorge. Quase que notávamos aquele medo crescente da nossa presença a crescer velozmente, dos nossos braços e pernas ameaçadores para o seu espaço, da ameaça de um futuro que anunciávamos implacavelmente a pressagiar um doce e apagado passado já a desbotar.

   As tias ficavam horas e horas na sala numa conversa com mil palavras estranhas que não entendíamos lá muito. Por respeito, pouco nos mexíamos e quase que decorávamos os traços dos rostos, os tons das vozes, os vestidos que estranhávamos tanto como os rolos de cabelo e penteados desusados que devia ser os mais adequados para uso de tias.  Normalmente, quando tornavam a ir lá a casa, repetia-se toda a cerimónia dos cumprimentos, acompanhada do bule de chá preto fortíssimo e biscoitos caseiros comidos discretamente. Eram longas horas de imobilidade e sono à mistura com alguma curiosidade mútua.

  - Logo as tias vêm cá a casa!

   - Então, não cumprimentam as tias?

   - Como vocês crescem depressa! Mas estás mais gorda! Este está muito parecido com a mãe na sua idade. Esta deve ser, pelo nariz e
pelo cabelo filha de…

   Por acaso, tive poucas tias. Apesar de saber de muitos casos em que elas se multiplicavam prodigiosamente, no meu caso isso não aconteceu. Talvez por serem poucas e para não haver enganos, habituei-me a rotulá-las de um modo infalível para me movimentar no módico universo familiar das tias que me coube em sorte.

   Por exemplo, tive uma tia furacão. Uma tia maravilha. Uma tia limão azedo. Uma tia de retrato. Havia ainda as tias pó de arroz, que tinham
um perfume de antiguidades tiradas das gavetas e mais uma ou duas emprestadas e distantes como as ilhas no mar grande.

   A tia furacão não tinha hora nem dia de chegada. Virava a casa do avesso. Via tudo, ria e dizia histórias divertidas, falava com as criadas
que se derretiam de gosto pela atenção da senhora, trazia vento fresco de longe, varria todas as aranhas dos cantos das palavras e o seu vocabulário era estonteante. Não era tia para beber chá. Com elegância, pegava num copo de vinho do Porto e bebericava entre gargalhadas.

   Uma outra, a tia maravilha foi a prova mais bonita da possível remissão dos pecados de todas as tias do mundo inteiro. Uma tia que trazia no bolso as coisas mais lindas que uma garota pode ter por prenda: Atenção e perspicácia! Alegria! Riso! Ternura! Vida a rodos! Sem papas na língua!

   Quando a tia maravilha chegava e era o fim do mundo! A casa era arranjada com antecedência de alto a baixo, havia jantares e muita gente, gente desconhecida e diferente num encontro alegre de encruzilhadas do passado. O dia – fosse qual fosse – era um Domingo de festa com passeios e tudo. A tia deixava no ar como se fosse o perfume que usava, todas as esperanças, sonhos e loucuras inimagináveis que a vida podia dar. Graças a Deus que há tias daquelas! Nem idade conveniente tinha porque as suas frases eram para mim tão coloridas que até entendia que me tratava como gente grande.

    As outras não eram todas assim…

   As mais tristes e melancólicas eram as que vinham aos pares e eram solteiras. Nos retratos de família, ficam nos lados, graves e discretas. Às vezes, raras foram essas ocasiões, iam de passeio quando estes eram tradições e ritos de Verão ou de Inverno. Aí se falava de outras
eras, de bailes e de pessoas que já tinham morrido, de acidentes horríveis ou tempestades inesquecíveis que evocavam com temor e satisfação por lá terem estado com toda a coragem.

   As tias aos pares tinham um ar severo e reprovador. Às vezes chegavam no fim dos jantares de domingo, e passavam o serão todo, depois de tocarem recatadamente nas sobremesas e no pudim do jantar. Os restos das guloseimas que seriam nosso festim no dia seguinte desapareciam. Sentíamos uma dor de remorsos por não gostar que devorassem o que eram banquetes do nosso dia seguinte. Era o egoísmo infantil a lutar desesperadamente contra uma bondade incipiente. Entretanto as tias olhavam para nós, receosas, com apreensão pelas crianças buliçosas, dos braços e das pernas sempre em movimento e em risco de lhes sujarem os vestidos, ou abrirem portas e varandas trazendo para dentro de casa pavorosas correntes de ar que poriam em risco a sua pouca saúde. As tias são frágeis, é mesmo um dos seus piores defeitos! Adoecem logo que molham os pés, que espirram ou apanham uma brisa mais afoita. Susceptíveis e desconfiadas de nós, como de facto se mostravam, sem dúvida que todos os avisos da família eram necessários para manter a paz no lar. Não eram inúteis os avisos:

   - Dêem a cadeira à tia, peçam licença para passar…  

  Tudo isto fazia parte de um ritual único. Nem sequer se cumprimenta uma tia como outra pessoa qualquer. Um tio, por exemplo! Esse dá palmadas nas costas, finge que puxa as orelhas ou puxa mesmo, ameaça cortar o cabelo ou a trança, gosta de arreliar os miúdos. Faz caretas ou pisca os olhos, e bebe qualquer coisa, desde que não seja o chá das tias.

  Muitas vezes é fácil confundi-lo com um primo distante e esquecido já, ou uma criança grande que cresceu depressa de mais. Isso ofende o tio que logo reclama os seus direitos e enche a sala com o vozeirão:

  - Olha que sou teu tio!

 O estatuto mais desagradável de tio, é o de tio rico. Mesquinhos, orgulhosos de nascença, gordinhos e de olhos bem vivos à espreita de um gesto desastrado. É difícil gostar deles. Nem eles deixam. Há muito que dividiram o mundo em dois grupos: eles, os tios, e os ladrões. Toda a gente os quer roubar e devem ter uma ideia fixa em ladrões de tios ricos.

   Os tios e tias de hoje perderam o estatuto de veneráveis para ganhar um duvidoso cargo que se situa entre a esquerda e a direita de avô ou de amigo sem se saber sequer de onde é que surgem e para onde vão. Faltam-lhes presença, graça, calor dos verdadeiros, eternos, mesmo mortos. Havia sempre o lugar do tio.

   As tias? Coitadas. Ainda andam por aí, mas são super tias de ninguém nas capas de revistas. Antes elas é que liam as revistas, “Modas e Bordados”, “Eva”, o velho “Portugal Feminino” impossível de agora, e com essas imagens criavam mundos de ilusões e carinhos. Era por essas revistas que a cidade chegava à província e a província entrava na cidade nos serões de família com os folhetins de rádio, os bordados
e rendas das “fadas do lar” e as longas conversas sem fim. Eram as tias habilidosas, prendadas e havia sempre um bordado, uma colcha, algo preciosa que se dizia com orgulho:

   Isso que aí está, foi a tia que deu.

   Fosse o que fosse, tomava um ar venerável como que de relíquia dos antepassados. E era! Coisas do arco-da-velha, vindas de tempos esquecidos!

   Agora, com enorme espanto meu, sou tia. Mas não tenho estatuto definido. Não vou em excursão a Roma ou à Terra Santa em grupos de
tias devotas, nem tenho cara de aparecer em revista cor-de-rosa, ir ao Brasil ou pelo menos até ao Algarve, nem sequer se ao certo se reconhecem que sou mesmo tia! O paradoxo ainda é maior pois arregalei os olhos de espanto quando me chamaram tia pela primeira vez.
Foi um choque incrível. Dizem que quem não casa «fica para tia» mas foi o consórcio que me trouxe uma legião de sobrinhos como nunca podia imaginar.

   Os sobrinhos são de todas as idades, à minha escolha, mais velhos ou mais novos do que eu! É um enorme desconsolo uma tia com telemóvel e computador que não se ajusta nos parâmetros das relíquias do passado nem aos sonhos do futuro.

    Sou tia, tia-avó, tia-bisavó e, pelos cálculos matemáticos de Stephen Dawkins, toda a gente casa com um primo, quer saiba ou não, somos todos uma grande família, todos parentes uns dos outros quer se queira ou não e que saiu dos “portões do rio do Éden”. Viaja na corrente do ADN e trás inscrito um gene nada egoísta, carinhoso e bom que nunca se apaga do código e dá pelo nome de --- Tias de toda a gente!