" Ensaio sem Entendimento Humano "

  • Das luzes e das sombras

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

       

 

Das coisas que permanecem

[  "Velha amarra de embarcação",  Rio Douro, Porto,2002.]

[ © Levi Malho, foto digital . ]

 


 

       ENSAIO SEM ENTENDIMENTO HUMANO

 

 

 

     Pressupõe-se (tal implica um nobre acto de aceitação da humana inteligência) que todos os seres pensantes, entendem aquilo que entendem, o que não quer dizer que entendam o que os outros entendem que deveriam entender O conflito das linguagens não vem para aqui chamado, mas já lá está, mesmo sem convite. É o busílis do que se deve entender que não é exactamente igual ao que se entende. Remeto para a frase de Ortega Y Gasset «Eu sou eu e as minhas circunstâncias» muitas dificuldades de harmonia entre pensantes e, se bem me entendo a mim, para além de toda a profundidade, o filósofo de “ A rebelião das Massas” afirma que eu só sou eu porque sou assim com tudo o que me rodeia, condiciona e assimilo. Não tem nada a ver com a canção da brasileira Gal Costa, ”Eu nasci assim, Eu cresci assim, Eu sou mesmo assim, eu vou sempre assim…. Gabrieeeela!".

   O dever de entender é muito lato, já em aulas dadas, num curso em S. Miguel, o Professor José Augusto Seabra, nos alertava para não esquecer que a semiologia tem uma certa paixão do sentido, de busca de entender e fruir o texto, da utopia para lá do topos (da herança grega, lugar), e da Terra Prometida, de Moisés, agora transferida para os textos de Roland Barthes (1915-1980) nem sei se por muita ajustada metáfora. A lei do dever kantiano, que gosto de ter presente, entra em choque com a paixão, a desmesura e o pathos (dos gregos, dor), que nos põe totalmente confiantes e desconfiados diante do escrito.

   Falar do dever até é fácil. É uma regra que gostamos de ver os outros cumprir pelo que nos custa a nós. Assim, o mais importante é dever entender, e bem perigoso só entender. Já o sem entender aposta sempre na raiz dos outros desentendimentos. Ad libittum. 

      Supondo-se que eu tenha um cão, o que nem se pode provar, nem vem ao caso, e desejo que ele saia do sofá (supondo também a existência deste, sem implicações freudianas quanto ao sofá e ao cão) pode acontecer o seguinte:

  Chamo-lhe a atenção e ele faz-se desentendido. É prova evidente que o próprio cão, pela silenciosa negação, longe do « » de Barthes, mas perto do calor e conforto do pressuposto sofá, atinge o entendimento com a implicação do dever de entender e não querer. O não querer canino é prova da liberdade do cão e afirmada pela vontade canina, um pouco cartesiana até. Mas que entendeu, é certo, porque até me pode virar indelicadamente as costas, vulgo, lombo.

Porém todos nós (reporto-me aos bípedes falantes) aceitamos com hinos de alegria que temos entendimento. A nossa humildade e modéstia porém tem o dever moral de pressupor que estamos sempre em risco de perder o entendimento ou mais simplesmente ainda de não sermos entendidos.

Assim o entendimento individual (incluindo até por hipótese o canino) é uma capacidade ou competência, para ser mais pedagogicamente escrito, (os gregos são os culpados disto, bem como da Paideia (educação, em grego) que é menos conhecida mas usada com mais sucesso) que todos admitem ter e fazer bom uso.   

 As “formas vazias” do entendimento são já um agrupamento filosófico que, por múltiplas razões, entre elas defender a Metafísica, o génio de Kant aplicou e depois de muito bom uso, chegou até a ir parar às mãos de Jean Piaget e a sua epistemologia do conhecimento humano.

Toda a análise do entendimento inicia-se pelas causas. As evidências dos efeitos são tão falíveis como as evidências das causas, mas é princípio aceite que se comece pelo princípio. Com as novas teorias física quântica, das descobertas de Heisenberg e do princípio da incerteza de Werner Heisenberg, de Schrodinger e do seu famoso gato, pode haver uma revolução já em curso no paradigma da razão, com alteração dos princípios do entendimento, visto a complementaridade e subjectividade terem um novo peso em toda a experiência e logo nos atira para uma multiplicidade de universos existentes e simultâneos. Isto obriga-nos a um desafio e a dar a volta à cabeça pela complexidade enorme das realidades e da ciência, como consequência disto da necessidade um novo Kant e outro Hegel para o século XXI, acontecimento que, no meu fraco entendimento carece de aparecer. Sergei Eisenstein (1898-1948), noutra perspectiva que não o entendimento científico, já demonstrara, com o seu filme “O couraçado Potemkine” uma relação futuro, presente, passado que coloca a obra como uma das mais importantes da História do cinema e cada vez se desvenda no filme novos horizontes sem nunca abarcar “tudo”.

Porém, no caso das categorias do entendimento, mantenho, por agora, a regra das causas e dos efeitos terem uma relação que já David Hume contestou e que fez despertar, em boa hora, o cientista Kant do seu «sono dogmático» depois dos cinquenta anos, obrigando-o a uma revolução copernicana do conhecimento e manteve-o lúcido e filósofo o resto da vida, ao ponto de ser chamado    “ o quebra tudo” pelo arrojo das suas ideias. A sua obra “A paz perpétua” e toda a sua ética que pretende uma universalidade de deveres e direitos do homem são um pilar da construção de um mundo com entendimento entre todos.

 A causa desta causa necessária respeita a lei, a ordem, a profecia, a moira, (destino, outra vez dos gregos) à meta causalidade mas o certo é que causa e efeito apresentaram coerência bastante até há pouco tempo.

Assim, pressupõe-se de novo que apresentar coerência é prova de alto entendimento capaz de provocar forte desentendimento. Aprofundando o odos (caminho, que os gregos deviam dizer melhor que nós) haverá demasiados odos e diminuição de metas (deixo a Grécia) o que interessa é que antes do entendimento estará a sua ausência e depois dele continuará na mesma.

Nem sequer apelo ao Logos que habita o Céu apesar da deusa Dikê (Justiça) estender, pelo raciocínio, a mão aos homens que se afastam da multidão e querem seguir pela via da verdade. 

     No espaço habitacional do pressuposto entendimento vemos que é pela impressão (recorrendo de novo ao famoso filósofo escocês, David Hume) que lá chegamos. Porém toda a linguística sofreu e sofre (ainda está hospitalizada) forte impacto e daí certas modificações a notificar os pensantes sobre o entendimento para dar fundamento à actividade pensante.

     Impressão, sem desrespeito a Hume, faz-nos a todos, quando nos mexe no bolso, nos magoa no sapato, num dente partido, ou numa conta calada que fala alto.

     -“Fiquei impressionadíssimo” – será o grau de impressão recomendado aos que usam os sentidos em prol do entendimento, logo que a impressão ultrapassa o dito. O homem sem o entendimento fica no estado mais natural, e é a primeira afirmação categórica e apodíctica que aqui deixo.

     Demonstro, por tal método simples (ver meta e odos gregos) temos, ao que se diz, olhos. Mas, reparando melhor, logo se nota que só raros têm visão. Daí o malogrado humorista inglês, P.C. Wodhouse, ter escrito uma excelente apologia das vistas amplas no memorável romance “Um homem de visão” e o seu espantoso personagem, o mordomo Jeeves, ressuscitou com as tecnologias mais fortes, no Ask Jeeves, que tudo sabe. Um homem de visão é algo bastante raro. É mesmo um raro elogio aplicar tal atributo a um bípede falante, dito “homo sapiens, sapiens”. Quanto se diz tal, estamos a colocarmo-nos humildemente na categoria dos que a não têm mas sabemos vê-la nos outros. Também não vamos mais longe e nem nos referimos aos visionários o que o remeteria para o ver demais o que já é grave para o bom entendimento.

     A seguir, a impressão essencial deverá ser o tacto. Coisa raríssima e julgada comum a todos. Não é um qualquer que tem tacto. O tacto nunca é evidente ou visível. É uma virtude rara, um dom, um segredo da natura que só nos dá só o que considera indispensável porque, depois de nos ter dado a razão, já determinou que temos de nos desenvencilhar sozinhos (assim nos conforta Kant e está muito certo). Dizer verdades e receber aplausos quando elas são verdades (a aleteia dos bons gregos) requer mesmo enorme tacto.

     Segue-se que uma tal criatura, na linguagem um pouco teológica que admite que fomos criados, cheia de tacto, rodeia-se de uma auréola de pacifismo e tolerância admiráveis.

     Quanto às impressões auditivas, todos fazem dela o que bem querem. É audível um grilo ou uma mota, como é audível um elogio ou uma censura. Mas fazer ouvidos de mercador, fazer-se desentendido às vozes de aviso ou a vozes que não chegam ao céu, é ter bom entendimento.

      «Ninguém me diga -“vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo que se animou. Não sei por onde vou. Não sei para onde vou. –Sei que não vou por aí…»   dizia o poeta, José Régio, no seu poema “cântico Negro”.. Não sei por onde ele foi mas deixou um vigoroso apelo aos “ouvidos surdos”, desamparou-nos de vozes alheias e ficámos a sós com a nossa própria consciência e escolha. Há quem tenha ouvido apurado para a calúnia, para os boatos e desinteresse em ouvir música, pássaros, grilos ou os outros. Cada um ouve o que quer. Para os que não querem mesmo ouvir, o povo diz que «entra por um ouvido e sai pelo outro»!

 Seria impensável não me referir ao olfacto, que já foi o nosso mais apurado sentido, rivalizando com os caninos e certos resíduos olfactivos ainda nos fazem conhecer a mãe só pelo cheiro, logo que nascemos, mas agora “cheira a esturro”, ou ainda estaremos como nas primitivas tribos em que, pelo olfacto, se conhecia se uma pessoa era inimigo ou amigo e o perfume mais inebriante para os famigerados árabes era o da cebola. Na sociedade do consumo gasta-se um dinheirão em essências fabricadas aos litros para despejar sobre os seres humanos desde criancinhas até idosos, com uma estatística mais elevada na idade juvenil para zelar por uma aparência bio sócio culturalmente aceite.

   Indo mais longe, temos o famoso gosto! Causa de tanto desgosto, o gosto pode ser bom ou mau. Se for igual ao meu, será bom gosto, se for mau é porque é diferente do meu, ou não tem gosto nenhum.

 O gosto e o bom gosto em geral tornam-se maçadoria, monotonia, sem dizer nada de novo. O mau gosto é o da contradição, da teima, do inventor ou do desmancha-prazeres. O saber como sabor é o que queria Barthes e depois José Augusto Seabra com a leitura que seriam fruição de um desejo sempre fugidio, tanto como o entendimento nos foge com a chegada de todo o imaginário colectivo e individual que rapta a clareza de todos os juízos. Mas quando se compara sabor e saber não se pode esquecer como a fuga do sabor do que se come é um convite bem concreto para mais comer, já o texto, embora seja devorado (o que pode apavorar um escritor neurasténico) tem um sabor fugidio, não faz engordar, nem ler mais depressa pois, saborear um livro, é uma deglutição que remonta à Idade Média, com o seu «ruminatio» da escolástica, muito paralela a muitas dissertações de hoje, ou, pelo menos, com o mesmo sabor de «dejá  vu»

Chegadas que são todas estas impressões, transformadas em percepções e depois em juízos que o entendimento peneira, soma, arrecada são postos em ordem e prontos a usar. A meio caminho, entre a percepção sensível e o entendimento, está, desgraçadamente, a imaginação! Kant afirmava que é uma função indispensável e cega. Claro que assim se quebra todo o rigor da interpretação, pois sendo como as sereias, tem metade sensível e metade inteligível o que obriga a confessar que o rigor do entendimento depende de algo que não é,  nem por sombras, rigoroso.

A imaginação que liga tudo e, por vezes, Mallebranche tinha toda a razão quando a chamava: «La folle du logis» pois “a louca da casa” varre para dentro e a nossa mente recebe tudo o que seria “spam” de um computador, se tal fosse da época das Luzes e do estimável Kant.

       Quando dizemos nós, temos necessidade e consciência de sermos muito mais nós que eus, e queríamos referirmo-nos a esse difícil pronome plural que nos faz pensar pelas mesmas leis férreas do pensamento como o “terrível e venerável” Parménides de Eleia bem cedo e não em vão, nos mostrou. Porém há os nós que são ditos e escritos do mesmo modo mas também são possíveis laços ou nós górdios de que só Alexandre, o grande, (sem confusão com filmes) percebeu que só pela espada e nunca pelo entendimento, se podem desfazer ou desatar e nem todo o tacto, ouvido, olfacto, vista ou gosto cortam. 

   Abolindo os vagos vestígios de entendimento universal, apesar da sua existência lógica e científica, caímos todos no pântano das palavras guiadas pela imaginação que nos faz crer em mil realidades, mil mundos e mil desentendimentos.

Não me admirarei se ninguém entender o que escrevo porque não tem o dever disso. Se for entendido, nada lhe faço entender, se for desentendido pensará que estou a falar com demasiada superficialidade sobre tão inefável assunto e o entendedor, como de tudo entende, o mais certo é ficar ofendido.

    Também quem é que o mandou ler? Logo a mim que escrevo como quem gosta de respirar e de pertencer à república do reino dos fins e da Liberdade?

              Afinal não há razão para nenhuma dessas posições porque o que me importava referir não é o entendimento humano, mas o seu desentendimento e isso fiz por vários odos (ver outra vez gregos) pois a verdade ( a velha e sempre nova aleteia, ---os gregos são a nossa sombra maior ---) sem a mínima  dúvida e “ab absurdum” deve ser dita, escrita ou cantada muito seriamente sempre a rir.