" DEMANDAS "

  • Sobre cinco infindáveis viagens.

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

      

 

Princípios do Mundo.

[  "Salto do Cabrito",  S. Miguel. Açores ]

[ © Alfredo da Ponte, foto digital . ]

 


 

 

       INTRODUÇÃO

 

 

          Da interrogação resta a tragédia do silêncio e a Esperança de erguer de novo a voz…

 

 

      Longe da sua nascente, a palavra já não jorra límpida e transparente. Traz o selo do remoto e da ambi­guidade, tem o poder das viagens, das peregrinações, dos mares e dos desertos invocados, por vezes, mesmo sem querer...
     Cada ilha – oásis – representa um perigo de estagnação e de uma sedimentação. Cada paragem é apenas um momento de passagem, um tempo mais longo, quase estático, quase petrificado, que urge abandonar.

     É no caminho e na navegação que se afirma a huma­nidade. Mesmo em círculos, mesmo em deambulações, mesmo que seja por mares de sargaços e miragens impossíveis, mesmo que tudo se de em rumos diluidores de um “telos” definido ou em redemoinhos fatais, é necessário prosseguir. Por entre perigosas dunas ou ondas, por entre vales profundos de análise ou de sínteses distantes em montanhas sonhadoras, tudo isso é um “fieri” incompleto e constante que se afirma.

  “O movimento envolve o ser no seu mundo”, dizia Merleau-Ponty. São as vivências, os gestos, a ansiedade de caminhar o que torna este mundo humano. Jamais essa viagem pode empobrecer ou repetir-se. Antes pelo contrário, o fascinante segredo da decifração da caminhada é que de sentido a cada uma delas. Nenhuma demanda será a primeira de todas... A última que se faz fica aberta a outra revelação, a uma descoberta inacabada, uma decifração inadequada devido à sua fecundidade perene.

     Oásis ou ilha, estalagem ou torre de Babel, é a tentação de Caim, do sedentarismo com uma negatividade inconsciente oculta na rigidificação das formas. O “status quo” é benéfico, aparentemente, mas a sua sedução é bem capaz de levar ao desejo do paragem, à imanência de porta fechada, acabando com a frescura de uma rebeldia sã e forte de avançar, de caminhar, mesmo que rumo não seja seguro. Só esse avanço corajoso é que rompe com a mumificação de todo o acontecimento pantanoso...

     Estátua de sal! Estátua de sal!

     É a paragem e o olhar saudoso. De repente, surge o espanto de já ter caminhado tanto. E desperta a tentação terrível de permanecer
.
     Do olhar contemplativo, estático, voltado para um passado morto...

     O corpo parado, estático, na meditação do que já foi, é o risco de chegar a um não-ser, para que não aconteça mais nada. Então, Narciso e mulher de Loth encontram-se e confundem as suas sombras, petrificam-se numa paragem a rigidez suicida.

      Estátua de sal!

       No âmago do regresso, para sempre impossível, está a fraqueza da queda, ou a forca do caminhante. O apelo das forças ctónicas das origens contrapõe-se à necessidade da miragem do deserto, ou a esperança da terra-à-vista tal como o descontentamento do nosso quotidiano nos leva a sonhar com uma partida e nunca com um retrocesso...

    A quotidianidade, recuperada modernamente pela reflexão filosófica, nada fez mais do que rasgar uma cortina de mitos e ritos muito nossos e bem vivos. A brecha da aspiração dos longes surge no desagrado pelo passado e todas as suas falhas e no descontentamento pelo presente, quando tudo nos parece demasiado parado e perto.

     Sentir que tudo se repete é um aguilhão de angústia que torna os passos mais bruscos e apressados. Embora impossível, a repetição pode actuar como um convite para ir mais longe, um pouco mais para diante. Sempre...

   “Não é a altura, mas a encosta que é terrível” – dizia Zaratustra.

   O coração do homem tem a sedução da altura, a inquietação dá-lhe um desassossego de viandante a quem nada contenta ou nada prende, sempre em busca de altura maior, preso da vertigem alucinante de subir, subir mais e sempre. Apesar da dificuldade da encosta, o homem nunca é vencido pelo desânimo. Muito embora se possa apavorar ou espantar, se assumir o fardo do desespero, não parará! Cambaleando, oscilante e frágil mas sempre subindo, avança para o alto. A meio da encosta, o homem medita. Afasta-se. Procura entender a própria encosta, a própria subida, o próprio sentido dessa ânsia de Absoluto, desse desespero e angústia que ele próprio incarna. Tanto pode rir-se como embriagar-se da altura. Tanto pode resignar-se, como ultrapassar-se. Nessa viagem interior, nenhuma montanha, por mais alta que seja, o contentará jamais. Nenhuma subida, por mais transcendente que possa tornar-se, apaziguará o coração humano, sedento de infinito.

     Daí aparecer essa tentação contraditória:  a torre de Babel!

      É uma subida blasfema mas que não é totalmente negativa. Afinal, reflectir sobre Babel é tentar uma nova busca, agora divergente, uma outra subida só tentada pela meditação e interioridade.
      Reflectir sobre Babel é tornar o acontecimento, seja ele mítico ou não, uma forma de acesso ao Ser, uma forma de revelação do Ser. O que se julga repetido --- aparência --- não se pode  redizer, muito menos o Ser. Pelo contrário, desvenda-se apenas um pouco mais, na infinita possibilidade de decifração oferecida ao viajante.

    Deste modo, o homem pode assumir a sua própria fragilidade. É o “vime pensante”, desafiador, apesar de todos os riscos! O homem será sempre mesmo indirectamente ontológico, descobrindo a graça, as suas potencialidades de multiplicação dos sentidos, de tantos formas dizíveis do real vivido, experimentado, mesmo quando é vivido na sua transcendentalidade. Essa é a melodia que o passado nos propõe. Uma melodia que existe oculta e para cada um descobrir. A melodia subsiste sempre, mas as nossas variações existem só pela nossa viagem…

     Em cada mutabilidade da música espreita o poder do Ser e do seu acesso para novas caminhos. Tal como uma partitura, que está muda e esquecida de se tocar, na espera e no silencio, da graça do artista capaz de a libertar...

     Babel! Babel!

     É  o sinal da primeira desmesura social, a união dos opostos inconciliáveis. No fim de contas, é a inscrição na pedra do primeiro sistema filosófico destruído, ferido de morte logo que tocou nas nuvens.

     Babel! Babel! 

      Aviso do regresso à seriedade das coisas inadiáveis, aos factos que se amontoam em pedras que nunca serão catedrais, nem estradas, nem sequer caminhos abertos para novas partidas. Babel é a negação do deserto e do viajante. São os círculos fechados, círculos e mais círculos em sistemas estranguladores, cada vez mais pequenos, mais estreitos e mais frágeis. Apenas círculos de produção de elos, anéis sem fim da cadeia do produtor e do produto.

     O sonho, esse, guardou-se no seio da História, adiado teleologicamente e dizível apenas pela “sageza”, quando esta se refere aos caminhos da humanidade...

     Babel! Babel!

     Desafio da mão inscrita na pedra derrubada, desafio escrito na palavra revelada, no sonho adiado mas ainda não vencido. O futuro, consolidado por milénios de esperança, não dará mais força ao sonho?

     Babel! Catedral! Arranha-céus...

      A mão que se ergue até às nuvens e a consciência, ora desafiante, ora humilde e desesperada mas sempre em aposta contra o inatingível é o que homem sonhador procura vencer, para além, sempre para além dos seus próprios limites.

 


 

 PRIMEIRA DEMANDA

           

A TERRA PROMETIDA

 

 

Gustav Doré, "Jacob luta com o Anjo" [ © - Ver nota 4]

 

Tão cedo se aprende a partir e nunca se acaba de aprender

 

       Vamos marcar encontro com Jacob.
        Será à noite, depois da sua travessia do vau de Jacob. Esta travessia implicava um regresso, uma partida em demanda de outra, uma caminhada em que este momento poderia ter sido um acontecimento banal, sem história, sem teofania, quer de palavras, quer de vivências.

      Mito, símbolo, sinal...

     Tudo isto ou mais. A luta de um Deus velado com um homem na encruzilhada do seu destino. É o imprevisto de um encontro crucial em que pode estar presente a graça, mas, sem isenção de imenso perigo e desafio.

       Parámos na curva da noite. O que queremos está oculto nessa noite, nessa treva feita de enigma e de desmesura.

       Nesta altura da sua vida, Jacob já não era novo. Soubera vencer o destino usando mesmo armadilhas e astúcia. Não é em vão que se fala ainda de um prato de lentilhas com o qual conseguira roubar a direito de primogenitura do seu irmão Esaú. Nessa altura, fora sua mãe quem o apoiara e lhe dera força para tal sucesso. Fora um apoio gratuito e imprescindível, que só um amor maternal pouco lógico lhe possibilitou. Ele encontrou, nesse episódio, mais graça aos olhos de sua mãe do que o seu irmão mais velho. E essa graça não se explica...

      Só à força de paciência conseguiu vencer as armadilhas de Labão, o pai de Raquel. Longa e pacientemente a amara. Só a esperança tremendamente forte explica sua teimosia e luta. Pode dizer-se que, no fim, venceu Labão. Porém, o episódio mais misterioso da sua vida reside nessa pequena passagem bíblica:

   “Tendo ficado só, alguém lutou com Jacob até ao romper da aurora”. (Gen 32. 24.).

     Jacob chegara àquele local apenas de passagem. Ardilosamente, preparara um encontro com o seu irmão, desavindo e ressentido. Deixara a família adormecida e tranquila, os criados preparados, os seus rebanhos em sossego. Porém, o seu espírito, em que conflitos se debateria? Que rebeldia ou desafio seria aquele?...
     Talvez escutasse vagamente o marulhar do vau. Talvez meditasse no passado, na misteriosa graça recebida ---sem mérito, sem direito, gratuitamente ---que a Providência pusera sobre a sua cabeça, abençoando-o... Talvez se angustiasse com o futuro, a sua peregrinação, ---  de­manda ---  mal entrevista ainda, da terra prometida.

    Talvez como nunca antes daquela noite, Jacob sentisse a solidão e uma angústia terrível o invadisse, só a ele que velava, se a ele, enquanto toda a sua gente, até mesmo a sua doce Raquel, dormia. Só, com os seus pensamentos e interrogações. Terrivelmente lúcido, nessa hora privilegiada, hora fecunda em que a liberdade e a graça se concatenariam numa encruzilhada feita de rebeldia e de desafio, feita de esperança também...

    É este o homem que buscamos, lá, nos confins dos tempos, nessa noite escura e grave.

     Jacob ia ao encontro de um irmão. O diálogo com um tu concreto, igual, na linguagem que ele procurava e ia, afinal, cruzar-se com o Tu Eterno, noutra relação mais profunda, a única que fundamenta todas as outras. Era a relação com o Ser que ali se ocultava.

      Será Jacob um “santo”, um sábio patriarca?...

    Por acaso o símbolo de Israel poderá existir sem sageza?

O tu que Jacob procurava, pela graça, vai transmudar-se no Tu eterno, o único em que todos os outros se cruzam misteriosamente. Afinal de contas, não tiveram tantos sábios, filósofos, santos e prevaricadores a sua noite de luta com a Anjo da face velada?

    Nicolau de Cusa, Descartes, Pascal falam-nos de uma noite luminosa, de uma estranha mudança, de um diálogo repentino com o Inefável...

    Muito antes, Sócrates escuta a voz imperiosa do seu “daimon”. Uma vez atendido jamais o abandonará... Se Pascal sofreu dolorosamente a angústia da noite e Kierkegaard se refere a uma “misteriosa ferida”, tudo isso não serão formas de uma revelação trágica, de um sentido oculto, de uma esperança Iangando ponte para além do desespero?

     Ainda se pode falar em separar o Deus único do desespero dos homens? De todos os homens?...

    A grandeza da alma humana, no bem ou no mal, a sua busca e ânsia de Absoluto, terá algum modelo. algum padrão para a sua medida?

     Por tudo isto, assistimos, mais uma vez, misteriosa luta contra o Anjo e Jacob. Luta longa e terrível! Sem que nada nem ninguém os interrompa. Como pode Jacob resistir? Ele, que de bom grado, se entregaria ao Anjo? Mas, como aceitaria Deus, sem luta, sem restrição, a sua entrega total?

     Árdua e terrível questão.

      O Absoluto absorve-nos e aterroriza-nos. Talvez, por isso, Jacob lute. Talvez, mesmo Deus, não queira aceitar
.
Jacob sem luta. Talvez, mesmo Deus não queira o trágico e o desespero, na sua desmesura de herói. É ele que assume esse heroísmo na noite. Como se toda a gran­deza tivesse de atravessar a treva para poder chegar à Luz. Corajosamente, na solidão, ele luta.

    Aristóteles colocou a dimensão do homem “entre a besta e o anjo” e é nesse espaço humano, profundamente humano, que Jacob luta.

     Que luta mais misteriosa e transcendente se poderia imaginar?

    Deus humaniza-se. Jacob diviniza-se. A luta vai durar toda a noite.

    Haverá em Jacob, como muitos já pensaram, a prefiguração de Cristo?

    Um elo profundo, imenso e inconsciente dá-nos passa­gem no tempo até esse homem em luta. Navegamos no mesmo rio de águas profundas e distantes...

   Por isso, nos sentimos próximos de nós esse terrível encontro. Por isso nos assombra esta luta, onde apenas o desespero e o absurdo da fé dão a dimensão e a altura cósmica da liberdade e da graça unidas enigmaticamente num ser humano.

   Jacob, até então, fora um homem privilegiado. Um homem de viagens, amante de aventuras e do deserto, da meditação e da acção. Ambicioso e astuto, paciente e contemplativo, é bem singular a sua natureza. Faltava-lhe porém a última luta, a última dimensão a que pode ascender o ser humano. Tornar-se oblativo, no sentido mais intenso e profundo da palavra. A dimensão da ascese atinge aqui um carácter misterioso, oculto. Ser recebido por Deus e ser capaz de receber com toda a disponibilidade, ultrapassar conflitos, lutas e ir além do próprio absurdo...

    Jacob, até aqui, não tinha chegado a uma desmesura heróica. Subira a encosta da vida com o apoio gratuito de Deus. Triunfara por golpes de sorte, sem ser total­mente posto à prova. Agora é a sua hora de luta suprema. Deus é o seu grande desafio. Mas é uma outra face de Deus que ele tem de desvendar, o Amor desvinculado da necessidade, o Amor apenas seguro numa confiança cega, com uma fé que precisa do absurdo pare a sua suprema prova.

   Por isso, na noite, a luta tem de continuar. 0 Anjo parece que perde as forças. Se Jacob ganhar, tomar-se-á num herói amaldiçoado? Esta luta foi permitida, mais ainda, foi-lhe concedida. Por isso, ele não poderá ficar amaldiçoado, nem sequer afastado do olhar de Deus.

    Por outro lado, o Anjo do Senhor não pode perder também... Como seria terrível sair vencedor de uma luta com Deus?... Como poderia Jacob viver depois disso?

     É o absurdo deste homem! Apesar de tudo, ele continua a luta. O conflito da aproximação de Deus e a fuga misturam-se com o orgulho humano:

      --- Até onde irei?...

     Tudo são limites que Jacob aprofunda. O Senhor exige Jacob, mas não um Jacob passivo, fiel e obediente e, sim, um Jacob cheio de fogo e de mística, na resistência trágica.

    Foi o Absoluto que desafiou o homem. A única vitória deste será aceitar o desafio. Será lutar duramente contra si, consigo e transcender-se muito pare além de si mesmo. É a liberdade maior --- a dignidade suprema --- o desafio contra o Amor Absoluto; o Bem/Bondade que aqui se representa. As grandes almas terão de ter as maiores lutas na angústia e na solidão da noite
.
    Quem tivesse visto Jacob, pastor de rebanhos, mal adivinharia a força que no seu interior vivia. Ele, que nem a Deus se entrega facilmente, antes aceita o seu desafio, é o enigma e a contradição. Grande no assumir do trágico, o paradoxo atinge assim tamanha dignidade que se diviniza na sua contradição. Grande é o assumir do trágico, é o paradoxo e é «natural» que Deus ainda o ame mais.

   Se recusasse a luta, logo de início, Jacob perderia a sua dignidade. Passaria à categoria de homem de bem, comum mortal, cujas lutas perpassam na sua vida mas, sem tragédia ou grandeza, sem profundidade de compromisso total, absoluto. Jacob, à beira de mergulhar no pântano dos sonhos, na ambição, no desencontro de si mesmo, alcança o caminho para dentro do si, mergulha nos seus próprios abismos, explora-os até aos seus confins. Por isso, luta na noite, sem armadilhas, com simplicidade, após a aceitação do desafio. Se, neste episódio, estivesse escrito que Jacob encontrou alguém que quis lutar com ele, e, assombrado e temeroso, se lançou por terra pedindo a ajuda de Deus, eis que a dignidade do homem ficaria aviltada, a graça não estaria a par da liberdade, a fé não alcançaria a sua prova de fogo.

    Pela recusa é que Jacob se transcende e atinge o cume mais perigoso. A altura pode ser igualmente a vertigem e atracção do abismo. É um frágil mas magnífico equilíbrio! É certo que Jacob ama Deus mas, absurdamente, tem de lutar contra Ele. Tem de ser “abandonado”, afastado, tem de ser anjo e besta. Tem de ser Amor e Ódio, antes de ser digno de si e do seu Senhor. Ele, a quem a quem o Senhor poderia prometer que “das suas entranhas sairão reis” e ser abençoado por Ele, antes disso, deve ser senhor do si mesmo.

    Aceitando o desafio, Jacob mostra uma grandeza estranha, maravilhosa, deixando os teólogos perplexos, os artistas encantados e os místicos silenciosos.

    Não é como no caso do mítico desafio de Prometeu. Aí a graça não existe, o herói luta contra Zeus que não ama o herói. Também não é a acção amaldiçoada e blasfema de Lúcifer para quem o Céu é um tormento e o Amor o seu maior desespero, suprema humilhação para o seu orgulho. Aqui a luta é de quem ama. Mas, será lógico lutar contra Quem se ama? Ainda mais, fazer dessa luta, a luta maior?...

     Esta luta situa-se, para além de toda a lógica, para além de toda a revolta, tem o selo de uma fé que reme­temos para uma perspectiva kierkegaardiana, pare além da moral comum, só própria de uma experiência religiosa no seu mais alto grau, experiência proposta apenas para o “cavaleiro da fé”. Ora, não a Jacob, o filho do Isac, esse, que Abraão iria sacrificar, contra toda a lógica, contra toda a esperança, contra toda a moral e todo o Amor?...

     Jacob descende dessa linha de cavaleiros da fé. Certamente que, ao longo dessa noite, recordou, entre uma queda ou uma paragem, as provas que Deus infligiu a seus pais e a grandeza do seu Senhor. Mais do que para desisti, essas reflexões devem-no ter feito recuperar as forças.

     A quem pode pedir ajuda, este homem?... Só, absolutamente só, e o ardor da luta que o mantém de pé. E não desiste. Não pode desistir!

     Porém... se as forças lhe faltassem, se a manhã chegasse e, nesse instante, ele desistisse, por medo, por fadiga, por abatimento? Se ele, do fundo do abismo em que se sentia, tivesse gritado:

   ----Senhor, ó Deus dos meus antepassados, ajuda-me, Senhor!

    Ficaria intacta a liberdade, a dignidade humana? Quantos serão assim experimentados?

     Mesmo às grandes almas, ou possivelmente até mais a essas, tem de ser exigido mais. Pedro, o apóstolo pescador, num assomo de fé, atreveu-se a caminhar sobre as ondas. Mas logo, num repente muito humano, gritou: ---
Socorrei-me, Senhor, que estou a afundar-me!
   Todavia Simão Pedro era homem de fé, impulsivo e corajoso, cobarde e forte, num misto de sentimentos tão humanos como perto de nós. Só se ultrapassará quando for consumido pelo Espírito Santo, então, transfigura-se, torna-se homem sem medo, mártir, testemunha ardente e fogosa.

Nas horas diurnas talvez seja mais simples pedir tréguas, receber a graça. Maria, a virgem de Nazaré, está muito distante de Jacob.

    A graça que inunda a Senhora não tem analogia. Não há noite, treva ou luta porque a libertação da Senhora é ilimitada, como fora a graça. A graça transfigura a Senhora porque nunca poderia ter havido conflito ou dualidade em Maria. Ela é já dom de Deus. Por isso, a sua harmonia a eleva sem reservas no seu Sim resplandecente de Luz. Mesmo ao humilhar-se, a Senhora só se exalta. O Senhor que ela exalta, eleva-a consigo. O Anjo da Anunciação diz-lhe o que antes já estava escrito em seu coração. Para si, a Senhora nada tem a pedir, nada pede. Por tudo isso é Senhora de si, absolutamente livre e por isso mesmo cheia de graça.

    Nada disto se passa corn Jacob. Ele está só, sem auxílio, enquanto a noite passa lentamente. Será que Deus lhe permite vencer? Ou, pelo contrário, toda a luta humana acabará pela vitória divina?

     A terra prometida não pode ser conquistada pelo homem mas sim dada, gratuitamente, por dom divino?

     Vendo que não podia vencê-lo, comprimiu-lhe a coxa, e a coxa de Jacob deslocou-se enquanto lutava com ele”. (Gen 30. 26).

    Podemos considerar “traiçoeiro” este acto do Anjo. A tenacidade de Jacob levou-o aos últimos extremos. Tocar no nervo da coxa é dolorosíssimo mas ele suportou a dor e continuou a luta. O Anjo quer partir, a aurora já se anuncia. Agora é Jacob que impõe condições. Não o deixa partir sem ser abençoado. Deus tem de ficar com Jacob. Contrariado?

    Não! Deus deseja ser conquistado, forçado, a sua permanência junto do homem só se consegue pela força da alma, nunca apenas devido a graça. Esta está sempre na outra vertente contrária onde se encontra o esforço humano e o auxílio para a salvação.

    A dolorosíssima noite de Jacob, toda a sua angústia e medo, todo esse sofrimento paradoxal é símbolo de fé mas, esconde na escuridão a desespero e a esperança reunidos num momento do Destino que pode ser experimentado por qualquer grande alma.

     Se o desafio fora de Deus, já os termos da vitória são ditados por Jacob, vencedor e vencido. Mas, qual a vitória deste estranho e trágico combate?

    Jacob ficará para todo o sempre abençoado. Mas o Anjo dá-lhe um aviso tal como ja lhe dera um sinal. Ele mudou! O seu nome também mudou. Deixou de ser Jacob a agora passou a chamar-se Israel!

   Israel, transfiguração de Jacob, é o ferido na coxa, para sempre claudicante, para sempre singularizado e paradigmático.

    Depois da noite e da dor, após a luta, o homem que anseia por Deus, ficará ferido. Fica livre e preso. Possuir Deus em si, ou ser possuido por Deus, eis um dilema que nem sempre acaba bem. A bondade suprema, o supremo bem aliados à liberdade mais plena que o homem pode atingir nem sempre pode alcançar um equilíbrio.

     A noite, a luta, a ferida existem sempre nas gran­des almas. Todavia nem sempre a aurora vem encontrar um homem novo, transfigurado como Jacob... Ele ficou coxo, mas não provoca risos nern piedade. Atingiu a dignidade do guerreiro. Nunca será objecto de troça por causa da sua luta. E, por trás de todas as possibilidades, fica-nos uma certeza, ser ferido por Deus só é próprio das grandes almas e das grandes lutas. Vencer Deus, como acontece com Jacob, só o alcança o homem que se transfigure. Deus, ao conceder a graça, quebra todas as pontes de regresso. Se todos os horizontes são possíveis, nenhum lugar é perto, o selo do místico combate singulariza para sempre, estigmatiza para sempre...

    É claudicando que Jacob-Israel irá mais firme e senhor do si, ao encontro do Destino e da terra prometida. Ele que estivera frente à face de Deus, mesmo velada pela noite e continua vivo. Abandonou a senda do vulgar mortal, trans­mudou-se em peregrino, mesmo que tal implique o deserto.

    De bom grado chamaríamos a este episódio a primeira demanda. Encontrámos um homem, uma viagem, uma demanda e um encontro explicável apenas pelo dom da graça e a confiança da fé.

      Poderíamos também chamar a única demanda, arquetípica, a que reclama todas as almas, todas as lutas pelo apelo mais profundo do homem se assumir e de se transcender a si mesmo.

    Peniel, ou seja, o lugar onde Jacob viu a face de Deus, mesmo na escuridão, passou a ser o nome desse local por onde passa o vau de Jacob.

   O murmúrio do ribeiro nem sabemos se já cessou mas esse foi o lugar da transfiguração e da promessa. Esse foi o lugar da conquista da esperança, do caminho da salvação...

    Daí em diante, Jacob-Israel terá direito a outros encontros com o Divino. Mas o Senhor insiste: --- “Chamas-te Israel” --- e esses encontros são feitos de aceitação e reconhecimento, em par profunda, Bela corno a aurora após a terrível noite. Agora, marcado pela sua singularidade, a promessa é a força toda poderosa da esperança para procurar a terra prometida.

     Nunca o oásis. O deserto sempre...

     Não será este o destino mais profundamente humano e o que marca indelevelmente o filósofo, eterno demandador da terra prometida?

 


 

     SEGUNDA DEMANDA


      
O VELO

 

 

Jasão entrega velo a Pelias, vaso grego, séc. IV A.C. - [ © - Ver nota 5]

 

 «…o ser quebrável não é o mesmo que o perecível».

 Chesterton. Ortodoxia

 

 

      Em vez de aceitarmos a espirituosa ironia do poeta francês Clement, célebre só por esses versos: «Quem nos libertará dos gregos e dos romanos?», mais vale repetir a viagem com um espanto que é um sentimento sempre novo, acabado de inventar:
    ---
Quantas vezes teremos nós a coragem de voltar, por inteiro à Grécia?
      A refontização não traz nem a mesma sede, nem sequer o mesmo gosto de beber. Não há possibilidade de regresso. Todo o regresso é uma esperança frustrada, um desejo jamais cumprido... O nosso caminhar é paradoxal. Temos em frente de nós o deserto porém, mesmo caminhando para diante, há um círculo que se cumpre, um centro em qualquer parte... Caminhamos para dentro de nós, ao descobrir trilhos novos a enfrentar. Na ambiguidade das sombras, na dialéctica do fora e do dentro, encontramos os outros quando nos encontramos connosco. O enriquecimento ctónico, telúrico, aprofunda a nossa essência, liberta-nos para nos prender. Estamos submetidos ao «envolvente», no misterioso caminho que traçamos na beira da floresta.

     Quantas vezes o nosso inconsciente nos atraiçoa? Quantas vezes julgamos seguir o atalho luminoso da floresta e estamos completamente perdidos no meio de mil e uma árvores da grande floresta? Interrogamos agora Jasão e a sua demanda do Vela de Ouro. Jasão será o ser solitário e o caminhante que veio de muito longe, da existência segura junto a um mítico centauro que o escondeu dos inimigos durante a sua infância. Só o encontramos quando, de repente, na força da vida, se apresenta com a maior audácia e coragem no meio da praça, no meio da populaça que o admira.
      Singulariza-se no meio da multidão. Pélias, o tirano de lolcos, sabia quem havia de temer. Um dia, tinham-lhe já predito, voltaria aquele a quem tinha de entregar o trono que usurpara. Um dia, um homem marcado pelos deuses, voltaria para vingar toda a sua família... Agora Jasão está ali. Claudicando
[1] pela perda da sua sandália, ao atravessar o riacho. Seguro de si e estrangeiro em sua própria terra, ele é o herói predestinado e temido. A falta da sandália era o sinal que só Pélias, aterrado, decifrava.
     Estranhos contrastes e misteriosas forças se reúnem neste herói. É descendente de Prometeu e de Sísifo, cujos mitos estão tão vivos em nossa memória...

   E toda a tragédia viverá à roda de Jasão mais do que nele próprio. Tudo se reúne em seu redor, todas as forças se concatenaram como se ele atraísse os deuses e demónios, as forcas mais fortes do Mal...

    Não há conflito interior que o faça sofrer angústias íntimas. Todo o seu valor, todo o seu esplendor está na acção, no exterior. Talvez por isso, ele atraia tanto sem que, com isso, o seu coração se comova. Ao vê-lo, forte e altivo, Pélias tremeu. Ele, que era o usurpador, ele, que era o inimigo de toda a família, sentiu o medo invadi-lo. É o medo que lhe dará recursos pare usar artimanhas e armadilhas para com o herói. É o medo de Pélias que traça a coragem de Jasão. Se Jasão reclama o trono, não será conveniente provar antes que é digno de glória, honra e poder?

    A “arete” de Jasão revela-se logo. Ele é insaciável, deseja ombrear com todos os heróis, com os deuses até, se isso lhe for proposto. Deparamos com este herói num momento crucial para ele e muito mais crucial pare todos os que o rodeavam. Ele será o herói eficiente, imperturbável que, serenamente, sem medo, insolentemente, porque sabe quanto vale, aceitará qualquer desafio ou luta.

     Pélias, desejoso de se desembaraçar de um tão perturbante inimigo, encontra um meio engenhoso e habilíssimo de o provocar. Sem o saber, o tirano, tocara no calcanhar de Aquiles do herói, na sua soberba, na sua desmesura terrível.

    O fito da demanda será pois o velo do ouro! Se conseguir trazer, provará a sua «arete» de digno pretendente ao trono. Logo um punhado de jovens ardentes a corajosos, desejosos também de glória e triunfos, até então impossíveis, junta-se a Jasão. Se a população tinha sido atraída pela presença desse estrangeiro forte, corajoso e belo, assim acontece com a plêiade de jovens que com ardor juvenil anseiam provar o seu valor.

    Pélias suspira e serena.

   Eis que se esboça a grande demanda. Agora não será pelo deserto mas, pelo mar tenebroso, cheio de monstros, armadilhas e perigos terríveis que vão viajar.

    Estamos diante da primeira demanda marítima!

   O velocínio de ouro é um objecto mítico. Seria o fruto de um remoto e imaginário sacrifício sanguinolento de imolação para aplacar a ira dos deuses. Por outro lado é a polarização de todo um espírito patriótico ou, melhor dizendo, de todos os anseios e sonhos do longe acalentados por um pequeno povo. É a busca do longe, do desconhecido, das terras estranhas que tanto atrai os povos sonhadores… 

    O velo de ouro teria origem num sacrifício de imolação de dois irmãos feito por seu próprio pai, um velho rei tresloucado pela sua jovem esposa. No último instante, os jovens foram substituídos por um cordeiro imolado. É um rito vitimário, semelhante a tantos que as religiões usam para libertar as comunidades. Pode ser ainda um rito de expiação de um «bode expiatório» escolhido que carrega os pecados e as faltas do povo para longe e permite a harmonia novamente. Um rito que permanece entre nós com os nossos próprios bodes expiatórios, mas sem cerimónias ou desconhecimento do seu significado o que nos culpabiliza muito mais, por não ser alheio à nossa vontade e consciência o que muito agrava as nossas culpas face a um passado onde o rito era exterior e ingénuo. Para René Girard isso está na raiz de todas as religiões e da sua violência. O povo, não se dando conta da substituição, aceitaria o sacrifício que os deuses, cheios de piedade, evitaram. Salvos do seu trágico destino, os dois irmãos são levados para a fantástica Cólquida. Mas, pelo caminho, ficara a jovem Hele, afogada no mar...

   O cordeiro, de qualquer modo, é o salvador. Será transformado em símbolo de ouro, riqueza, sol, trigo, algo aparentado com um símbolo alquimista, capaz de dar abundância e felicidade a quem, com honra e coragem, o alcançasse. Mas, por isso mesmo, estava guardado numa árvore sagrada, ferozmente vigiado por terríveis monstros invisíveis e demoníacos.

    Mesmo que a história e o mito sejam labirínticos, é necessário esclarecer que a árvore estava dedicada a Ares e que Zeus só permitiria que se alcançasse o velo da felicidade e da abundância se, quem a tal se atrevesse, se revestisse dos feitos mais arrojados e destemidos. Não podiam pois faltar perigos e dificuldades aos heróis.

    Mas Jasão quer partir. Com satisfação de todos leva no seu rasto, talvez sem se dar ao trabalho de solicitar muito, seguidores dos mais ilustres. A sua figura e soberba conquistaram os mais valentes jovens.

     São os Argonautas! O navio, Argos. o dos cem olhos brilhantes, será mais um indicativo da predestinação da demanda. A protectora da empresa é a deusa Atena, a filha dilecta de Zeus, ao contrário de Ares, também seu filho, cujo frenesim guerreiro o irrita. Atena é a deusa do bom conselho, da inteligência mas também inspiradora de governantes a de sábios. Será ela quem alimenta a chama de glória, o ardor dos combates, o desafio dos perigos pelos jovens Argonautas. Ela nunca amara seu irmão Ares! O repto também a atraiu irresistivelmente. E insufla coragem aos heróis conhecidos em toda a Grécia. Com Jasão partirão Orfeu, Hércules, os irmãos Castor e Polux, Peleu, o pai do futuro herói Aquiles, Lince, Tífis e tantos outros companheiros na demanda.

   A viagem começa! Com os maiores perigos a dificul­dades a enfrentar. A demanda que alguém já  comparou com a nossa demanda do caminho marítimo para a Índia e parafraseou, por isso, alguns poemas do nosso Fernando Pessoa, já que o grande Camões tinha a estrutura bem claramente delineada...  

      O mar para os gregos e para os portugueses é a sua grande estrada azul. Mesmo que o perigo seja o quotidiano e o risco, a aposta total. O mar é o símbolo do mistério e do infinito que está mais perto de nós... Não faltam ciladas no mar, calmarias, desejo de ficar, voltar, ou até sereias com cantos de enlouquecer. Nas tentações, muitos se perderão! Muitos ficarão pelo caminho. Hércules é um deles. Abandona a demanda no desespero de encontrar um seu amigo que se perdeu devido ao feitiço de uma ninfa das águas. Séneca afirma que muitos sofreram o castigo de Poseidon por terem profanado os seus territórios, por terem tentado desvendar os seus segredos. Mas, tal não acontece a Jasão. Ele segue com um fito seguro. Arroja contra tempestades e ciladas, arroja, enfim, contra o Destino, parece traçar o rumo e rir-se dos deuses. E, aparentemente eles são-lhe favoráveis. Jasão tem de seguir até ao fim para poder encontrar-se consigo mesmo, lá no seu fim, medir forças com aquele desconhecido terrível que habita as suas entranhas, ele mesmo e o seu “daimon” em luta inconsciente e cega. Eis que os Argonautas chegam a Cólquida! Foram embalados pelas canções das ondas e das melodias do mavioso cantor, Orfeu. Até os filhos de Leda, esses que os romanos consideravam deuses protectores dos nautas, estavam com eles! Todos tinham bebido, antes de partir, da taça de ouro para que os deuses os favorecessem. Era aquele a seu elixir da coragem. O seu pedido da graça é todo exterioridade, como é exterior é toda a demanda. Não se trata de uma luta interior, tal como fora o caso de Jacob, mas uma arrojada aventura juvenil que suplica a benevolência paterna. Rito de iniciação, mito de transfiguração, a demanda dá aos jovens o direito a uma desme­sura que, para os gregos, era sempre o maior risco: o desafio aos deuses.

    O pretexto está ali. É o velo de ouro. Árvore sagrada, dragão, riqueza, felicidade, tudo se polariza e multiplica de sentidos. A terra prometida dará sempre a possibilidade de sonhar ser feliz, ter honra e toda a glória. É a recuperação de um estádio anterior perdido pare sempre o que se sonha.

      Zeus tomara essas vozes em atenção?... Ouvira mesmo a voz da deusa sem mãe, a sua filha dilecta, Atena? Quem terá tratado despreocupadamente os destinos: Zeus ou Cronos?... Afinal, afirma Heraclito: “Cronos é uma criança jogando gamão, o reino de uma criança”. (Heráclito, 52).

   Chegados à Cólquida, apesar de mil perigos e peripécias, Jasão é tão seguro de si que nem se espanta por ser bem recebido por Aetes, o rei. Este, levado pela deusa Hera, fora natural e hospitaleiro. Depois dos seus hóspedes comerem é que os interroga, assim eram as sagradas leis da hospitalidade. E, ao saber a razão da vinda desses hóspedes inesperados, o seu coração encheu-se de ira e ódio. Sabiamente e com prudência, não mostrou os seus sentimentos. A raiva adensou-se apenas em palavras sábias e venenosas. Assim seja! Mas, antes... Jasão tem de se submeter a uma prova, só assim pode estar a altura da recompensa. É a prova derradeira e a mais temível. A célebre sementeira dos dentes de dragão. Mal estes são lançados à terra transformam-se em terríveis guerreiros que Jasão teria de abater!

    Aceite o repto, os Argonautas retiram-se. O rei, Aetes, com certeza tranquilo, vai para os seus aposentos. Os dados do Destino já foram lançados. Jasão atinge, talvez aqui, uma nova dimensão de coragem. Torna-se trágico, tal como o veria Aristóteles, nessa noite ele inspira “piedade e medo”. A singularidade do herói está ali. Frio e lúcido na visão do perigo e da morte mas, avançando sempre! Sem recorrer a ardis, ele iria entregar-se à tarefa de combate contra a sementeira dos dentes de dragão, sempre!

    Daqui em diante, porém, é Medeia, a filha do rei, quem nos interessa e é ela, nessa noite, quem iremos procurar.

    Medeia não é uma princesa qualquer. Neta de Hélio, conhecedora de artes e magias terríveis, a uma feiticeira mas, sem tomar a forma horrenda das bruxas, antes é uma donzela de grande beleza. Levada pela curiosidade quis ver Jasão. Mas, a curiosidade era já a acção da deusa Afrodite, que a levou a sentir-se presa do herói e com a alma em chama. Durante a noite sente a maior inquietação, o maior dilema. Sou pai dorme sereno enquanto ela se angustia. Medeia, na sua assimetria, vai tomar-se na mais trágica das figuras que os gregos nos legaram. Eurípedes tomou-a como a personificação das forças cegas e irracionais da Natureza. Ela, a maga, é uma estrangeira, uma força da oculta da terra, uma força tão poderosa que os gregos a temem. Medeia é um enigma, tão inteira como Jasão, toda ela é brilho e luz, mas com uma assi­metria extrema.

     André Bonnard dirá de Jasão: “...Não ama nada. É como egoísta que se apresenta diante de nós”. Medeia, pelo contrário, tem a irracionalidade de um amor aterrador, nocturno, carregado de segredos e magias, carregado de contradições. É uma força telúrica tão formosa como assustadora. Séneca, ao descrevê-la, até parece que a teme. Bonnard assemelha-a a “um monstro” mas, talvez influenciado por Eurípedes, acrescenta... “tentemos compreender”, está bem perto de nós...

    Medeia será uma mulher como poucas vezes os gregos nos apresentaram. É preciso aprofundar este ser humano, sagaz e cego, para melhor entender Jasão. Porque, sem Medeia, Jasão permaneceria ainda corajoso, heróico mas sem o cunho do trágico.

    Nessa noite, Medeia reflecte. E a noite não é boa conselheira para ela. Um conflito arde-lhe no peito. Insuflada pela deusa desrazoável, presa de uma paixão demoníaca, desmesurada, sem equilíbrio, ela ainda hesita. Sabe que só ela pode salvar Jasão. Sabe que só ela pode ser o escudo e a forca do herói. Só por ela, o herói poderá voltar triunfante à sua terra. Hesitamos em saber se a grande vitória, o prémio mais justo que os Argonautas trouxeram, foi o velo de ouro ou esta princesa estrangeira, forte e sem medo, conhecedora dos segredos da terra, rebelde a todo a razoável, capaz de trazer nova seiva, indómita e selvagem para o povo helénico.

     É esta a noite do encontro e da decisão.

     Reflictamos um pouco. Se o fazemos, é porque eles ---Jasão e Medeia --- representam muito de nós mesmos. A coragem do herói é quase um suicídio, uma falha da lucidez, já que a tarefa é desmesurada, mesmo para ele. Medeia quer salvar Jasão porém, mais ainda, ela quer Jasão. Ele é o seu oposto. Tudo o nega e, nesta oposição e impossível, brota a atracão do inacessível, a fascinação que os gregos atribuem aos deuses e, em Medeia é o seu “daimon”. Medeia trava um conflito duríssimo, a luta contra o pai, procura a própria essência feminina, até aí negada. Nela florescera apenas a sua beleza de donzela mas, negada por um superego que nela era fortíssimo e interiorizado.

    Se Jasão vencer a rei seu próprio pai, será ela quem vencerá ainda. Se ela partir com ele, será um novo nascimento que se dará. O narcisismo de Medeia polariza-se para um objecto normalmente ambicionado pelo homem e não pelas mulheres. É o saber, as ciências mais terríveis que ela conquistara. Esta magia introjectara nela, deste modo, uma força que a faz dominar os seus fantasmas e medos inconscientes e projecta-os sobre os outros com um halo aterrador. O pai é um obstáculo paradoxalmente amado mas que lhe faz aumentar o seu desejo por Jasão.

     Ora, para Jasão, esta princesa estrangeira será apenas um meio para atingir o seu alvo. Os seus companheiros fazem-lhe mesmo ver os benefícios que esta paixão por ele pode trazer. Assim o narcisismo do herói satisfaz-se com aquele amor mas, não o deslumbra, não o atrai senão como meio para os seus fins. Esta será uma noite de desencontros e de solidões! O estado de graça - novo nascimento - que anseia a princesa não pode acontecer com Jasão. A graça que ele lhe pede, por sua vez, é toda feita de constrangimento, de contracto c compromisso. Curiosamente, a graça está presente. Não atinge o verdadeiro estado da graça porque, a hora privilegiada foi um acumular de dois narcisismos. A intencionalidade de Jasão e os fantasmas de que Medeia está presa, roubam-lhes a liberdade do encontro.

   Tenhamos em linha de conta que se trata de uma demanda. Também será demanda para Medeia, mas demanda de um amor que ela não alcança. Primeiro a ferida narcísica, o fantasma paternal, a super valorização do objecto tudo isso fará as possibilidades de repetição que Medeia enfrentara. As tentativas falhadas de libertação, com um superego poderosíssimo e ambivalente, farão de Medeia uma mulher só, durante todo o tempo, até que se encontre diante do seu espelho partido. A sua libertação é perversa, a introjecção depressiva e a “repetição” do acto libertador do pai arrastará outras figuras inocentes, até à última negação, a mais profunda e terrível, a do assassinato dos próprios filhos inocentes.

    Mas Medeia, a maga, nada disto ainda sabe. Reflecte. Sonha talvez... Seu pai confia nela. Essa confiança torna ainda mais duro o conflito. A princesa nada tem de amazona, nem sequer tem o tipo de mulher criança mas, também não é mulher. A figura paterna hostiliza as suas forças interiores contra si própria. É ela o símbolo do um matriarcado que o homem grego ainda tinha na Antiga Grécia. Era ela que guardava os segredos da terra. E, mesmo que inferior perante os gregos, ela é compensada pela sua ciência, a sua infernal magia. É essa a arma que oferece a Jasão. Este, apesar de tudo, sem ela nada será. E o desencontro dá-se. Como bem salienta Melanie Klein, a mulher terá sempre inveja de não ser homem. O homem terá sempre inveja de não ser mulher.

    Aqui, a palavra inveja tem forte conotação com falha, anseio de diferente ou posse de algo desconhecido, inalcançável que ambos infinitamente desejam. Daí que o amor entre Jasão e Medeia é uma rede de enganos mútuos, o desejo de se amar infinitamente atraiçoado através da imagem que o outro lhe dá de si. O espelho idealizado de ambos cria um espaço e um tempo irreais que se manterão enquanto ambos buscarem no outro precisamente o que não existe e lhes é, portanto, impossível de dar.

    Jasão foi, em criança afastado da mãe. Inimigos espreitavam o futuro pretendente ao trono... A criança, não podendo perceber isso, por certo manterá uma relação difícil com qualquer mulher. A mãe, objecto de aversão e terror e amor sem eco, leva-lo-á a sentimentos de ansiedade culpabilizante, ou a rasgos de afirmação viril no constante anseio de agradar. O Centauro que o criou, salvou-lhe a vida mas causou a morte de uma afectividade adulta e oblativa. Jasão é narcisista e egoísta por destino. O egoísmo, que os autores lhe reconhecem, fechou-lhe as portas ao amor e deu-lhe o gosto insaciável pela posse, pelo poder. A infelicidade caminha na sua sombra... A sua pegada claudicante era sinal de um mal distante.

    Medeia decide-se só. Jasão com o grupo dos Argonautas e por conselho de um jovem, sobrinho da princesa estrangeira. Ambos se encontram no meio da noite. A decisão está tomada! Para Jasão não há senão um pedido, para Medeia há tudo! A poderosa maga despoja-se de todos os seus poderes, atraiçoa os seus, renega a sua pátria. Jasão aceita tudo isto e encara com naturalidade tanto sacrifício. Pois não é natural que o amem? Ele, que tanto se queria amar, não precisa desesperadamente da afirmação da sua beleza, do seu valor? Medeia é toda nocturna e a sua luta íntima é abissal! Sente dilacerarem-se todas as fibras. Mas a vida vence! Ela segue Jasão com tudo o que ela arrasta no seu cortejo de luto, de morte, de perversão, no louco desejo de liberdade e de Sol.

    Na noite, apenas as estrelas sabem da luta da princesa. Apenas os olhos de Argos baloiçantes nas águas do porto, meditam no estranho destino dos mortais. A donzela maga, a bela princesa será para sempre pólo de ódios e repulsa, capaz de ser temida e amada, repelida por monstruosos actos, quase incompreensível. «É um monstro»... diria Bonnard. Talvez, mas isso torna-a tão fragil, tão perto de todos nós!

    Na noite, Orfeu encanta os companheiros com as suas maviosas melodias... Talvez Jasão o escute vagamente enquanto o barco da profecia espera o vento do Destino.

   Quão longe estamos já da luta de Jacob com o seu Anjo!

    Quanta confusão de almas ao contrário da prova de fé levada até ao absurdo no coração de Jacob, o inquebrantável claudicante!

    Medeia na sua contradição desce a Jasão. No seu desencontro e desequilibro desaparece a graça. Antes Medeia tinha em si reunidas, a sabedoria ctónica, a nocturnidade e a magia do céu e da terra. Para Nietzsche ela tinha conseguido «a combinação frágil da harmoniosa entre o apolíneo e o dionisíaco, entre a vida e a tragédia».

    É esta faceta obsidiante que revela a origem telúrica, estrangeira, que ela empresta a tragédia clássica. Equilíbrio que, repetimos, será tanto mais instável quanto a altura que alcançou e o abismo monstruoso que a espreita...

    --- «Recorda-te de Medeia!» - diz a princesa ao dar o filtro que protegerá o estrangeira. É um pedido? Uma ameaça? Que dar em troca de tamanha dádiva?

    Jasão, arrebatado, seguro, sem querer ver o horror da dádiva, responde apenas:

   ---- «Se quiseres – reparemos no tom condicional - virás para a Grécia. Serás lá venerada pelo que fizeste por nós, e então, nada a não ser a morte, nos poderá separar!»
.
    Trágicas palavras! Jamais a princesa da Cólquida esqueceria tal promessa, pese embora a sua ambiguidade.

    A destruição da sementeira dos dentes de dragão é bem sucedida. Nenhum guerreiro saído das entranhas da terra pode tocar em Jasão, protegido como estava com o mágico filtro. E o herói, lançando pedras no meio dos guerreiros, voltava uns contra os outros, acabando por os vencer a todos.

    A despreocupação juvenil leva os Argonautas a festejar o que ainda não era a vitória. Mas eles não cuidam do dia de amanhã. Será Medeia, angustiada a chorosa, que irá correndo, apressá-los, fazendo-os agir. A demanda está nas mãos de Medeia, os Argonautas passaram a segui-la, a obedecer-lhe apenas...

     Jasão, ao ver o terror que se apossa dela, obedece. É preciso ir buscar o velo de ouro e vencer a serpente que guarda a árvore. Medeia é quem o guia o protege. E ela quem sabe cantar de modo tão maviosa e mágico que adormece a serpente dragão da árvore sagrada. O próprio Orfeu, o mais célebre cantor de toda a Grécia, capaz até de abafar o coro das sereias pelo seu melodioso cântico, nenhuma acção exerce sobre a temível fera.

    Vemos que o velo de ouro não é roubado pela coragem mas por mando de Eros e é ele, e não Atena, que agora comanda o Destino e insufla a acção. A demanda é ganha, mas, a que preço?

     Eros exige paga. Ele comandará o regresso. Traição a traição, é Medeia quem lhes abre o caminho. O seu amor imenso é uma horrenda renúncia, uma destruição que não consente obstáculos. Não poupa o pai, muito menos o irmão, Abirto. Talvez o tenha atraído a uma emboscada. Depois, corta o seu corpo friamente e vai lançando ao mar, pedaço a pedaço, o corpo dilacerado, fazendo parar o barco que perseguia os fugitivos.

     O sangue dos inocentes começa a marcar o caminho da princesa exilada...

    Toda a Hélade se rejubilará com o sucesso da demanda! Mas, no silêncio impressionante das máscaras, está todo o segredo do “pathos” terrivelmente guardado nos corações.

     Medeia não se liberta da culpa. No regresso é ela que maior interesse nos merece. Jasão, cada vez mais sedento do poder, é o mesmo egoísta, por isso mesmo cada vez mais ligado à mulher forte que com ele viera. Aquele egoísmo que o torna vulnerável, impotente e frágil é o mesmo que o obrigara a trazer Medeia e que o faz sentir quanta força e poder ela tem.

   Que sentimentos mais contraditórios terão nascido na alma de Medeia? Ela está só, sem os seus, demasiado amante, demasiado difícil de amar...

   Em breve a situação complica-se. Ela, que fora ainda na sua terra, a arma que o libertara dos inimigos, ela que restituíra o pai de Jasão, de novo jovem, mercê dos seus segredos mágicos, cansa-o e aborrece-o. Jasão acredita demasiado em si, ilude-se ao ponto de desdenhar os sentimentos de Medeia. E quer agora tomar outra mulher por esposa.

    Para a princesa da Cólquida todo o seu mundo se resumia a Jasão e aos filhos que dele tivera... Que será dela, no exílio, sem protecção, desdenhada e com as crianças abandonadas?...

    Lucidamente, é agora que ela tira a venda de Eros.

    Quem é Jasão para ela. agora... Egoísta, inconstante, incapaz de amar, insaciável de poder... Um argonauta a quem os deuses tanto tinham favorecido. É toda a construção de uma nova vida da princesa que se desmorona mais uma vez. Agora já sem pátria, exilada, estrangeira...

     É de novo, «a repetição compulsiva»; o aniquilamento de todos os obstáculos, de todas as cadeias que a poderiam segurar. A princesa barbara é como que o inconsciente que irrompe na vida com toda a sua força e ferocidade.

      Não é apenas o ciúme da esposa desdenhada, ou a angústia da mãe pare proteger os filhos. É a desmesura de Eros. Como canta o coro na tragédia de Eurípedes: «…quando vem com demasiada intensidade (Eros) nunca trouxe a virtude ou boa reputação aos mortais»; por isso a vingança de Medeia, embora nos cause temor, não a afasta de nós. Demonstra-nos uma realidade do amor levado ao extreme do ódio. É ainda amor porque, na sua lucidez vingativa, Medeia não toca em Jasão. Deixa-o incólume, embora tudo à sua volta seja destruído. Como dizia Kitto acerca desta tragédia: “quando alguma paixão natural ultrapassa os seus limites, o castigo tem de ser pago, quer pelo pecador, quer pelos que estão à volta dele, ou por todos”.

        A futura esposa de Jasão, a princesa de Corinto morre, entre suplícios terríveis pois Medeia enviou-lhe um presente envenenado. Um lindíssimo vestido impregnado em unguentos horríveis que, a incauta e ingénua princesa vestiu, e logo se incendiou causando-lhe a mais pavorosa das mortes e até a desaparição do corpo!

     Os filhos de Medeia serão as suas derradeiras vítimas. Para o aniquilamento de Jasão, a mulher amante não tem escrúpulos perante a mulher mãe. Numa “auto punição” inconsciente, com uma virilidade que esteve sempre latente nela, na sua ânsia de destruição de todo o afecto de Jasão, os filhos são a prova de amor que ela agora nega a todo a custo. A morte deles “liberta-a” de Jasão. Ela, que traíra os seus, que no caminho da glória e de Eros deixara o campo juncado de mortos, manifesta que é tão absoluta no ódio como no amor.

    São forças cósmicas que aqui se manifestam. Eros e Tanatos irrompem violentamente. Dá-se uma catarse perversa, tanto como a anterior o fora, introjecção de um superego implacável, com toda a sua lógica nocturna, que nada tem a ver com a moral ou a lógica diurna que o inconsciente ignorará sempre.

     Medeia, por tudo isso, não pode morrer. Ela é um símbolo e foi o instrumento dos deuses, a personificação das forças trágicas da vida no seu imenso abismo. Agora que a demanda terminou, o herói perdeu a graça dos deuses e ela, como joguete deles, deve partir, desaparecer...

     Com o auxílio de Hélio, liberta-se e parte pelos ares, num carro de fogo...

    Então, Jasão, desesperado, exclama:
    ---  “Depois de consumares isto, de todas as coisas a mais terrível, mostras a tua face ao Sol e à Terra?”.

    Mas ele esquecia-se que as forças naturais são sempre mais ardentes e fortes que todas as lógicas humanas. Jasão não entendia que a demanda só tinha valido enquanto busca e desejo do inatingível. Logo toda a paragem, todo o orgulho, era pura ilusão de querer permanecer em cena, quando os actores já se tinham transformado em fantoches.

    Jasão gozou demasiado os louros de uma vitória que nem fora sua. Tudo isso o tornou vil, mesquinho. Afinal, à sua roda, o palco do seu destino estava vazio...

     Talvez ainda sonhasse com a glória perdida quando visita o velho barco Argos. A embarcação lembra-lhe a sua juventude, mas, agora, está no porto, meio apodrecido e, uma trave misericordiosa cai-lhe sobre a cabeça pondo fim à miséria da sua existência e dos seus pesadelos.

     Na realidade tudo tinha terminado há muito.

     Medeia desaparecida, nada agora podia dar força aos poderes mágicos do velo de ouro…

 


 

 

TERCEIRA DEMANDA

 

A TAÇA

 

 

Santo Graal, pintura de Edward Burne-Jones, 1857  - [ © - Ver nota 6 ]

 

Chamas a isto sede?

Ante lhe chamaria apelo do Infinito.

 

    Por entre as sagas e as lendas, por entre os mitos e as histórias maravilhosas, por entre a morte e a vida, no âmago da Idade Média, surge, como se fosse uma aurora translúcida, a demanda do Santo Graal.
     Esta demanda é uma concatenação de luz e de som­bra, de desmesura e de contenção, uma claridade magnífica, no seio de densas trevas.

    É o Graal!

    É a viagem mística da alma, a luminosa ascese que brotou, no cadinho da nova civilização, como uma bela flor.

       É a vez da alma humana tentar libertar-se, superar-se, ultrapassar-se. A demanda do Santo Graal liga-se às gestas e jornadas cheias de heróis e cavaleiros mas é, por igual, a visão do «Cavaleiro Perfeito»., um caminho para Deus.

      O anseio de Deus apodera-se das almas e esta será a demanda que melhor o expressa. Há uma ânsia do divino tão forte, tão insistente que só será comparável aqui, à luta de Jacob.

    Enquanto na demanda do velo de ouro, a sua exterioridade tudo nos diz, a exterioridade da demanda da Taça mística tudo nos esconde.

   Trata-se, no entanto, de um grupo de jovens cavalei­ros, tal como os Argonautas, mas estes cavaleiros rivalizam em nobreza de alma, em feitos heróicos, em firmeza e vivência espiritual. Como acontecera com o velo de ouro, o arquétipo continua a desafiar interpretações.

     Todas as demandas, na verdade, transportam-nos para o reino do poético, do simbólico e do imaginário. As imagens desvendam-se e ocultam-se conforme quem as tenta decifrar, conforme o código usado, conforme as metáforas que veste.

     Podemos verificar, nos primórdios da poesia medieval, na poesia céltica, nas canções de gesta, como essa linguagem era uma caminhada anunciadora de nova espiritualidade. Apesar de balbuciante e, por vezes, confuso, é o cristianismo que se afirma, no que tem de mais firme e absoluto.

      Há uma era anterior que nos envolve em brumas e mistérios, uma certa nostalgia por um mundo perdido enquanto se avista novo rumo. E é o homem novo, vivificado que vai despertar.

    A Idade Média viveu a sua espiritualidade coberta de metáforas muito próprias. Contribuíram para isso os povos primitivos e suas tradições, os mitos druídicos, os feitos anónimos, os acontecimentos fantásticos e toda uma poesia popular que preparou a atmosfera lendária à volta do Graal.

     O rei Artur e os seus cavaleiros serão o paradigma para a iniciação na cavalaria, mas não se pode ficar só por isso.

    As aventuras dos cavaleiros da Tavola Redonda mais o seu rei, eram o sonho de um reino de paz e harmonia que vai ceder lugar a uma busca mais transcendente. Ficarão para trás e ultrapassados os problemas materiais, os amo­res e as traições terrenas. O mundo da facticidade remeterá para um outro rumo, o do Infinito.

     A demanda do Graal exige uma compreensão muito profunda. O lado exterior esconde toda a densidade silenciosa do drama humano e a angústia cristã vividos num imaginário que oculta um sentido novo para o destino humano.

    A espada mágica, Excalibur, remetia para uma simbologia de poder terrestre. Será parte importante no Reino do nobre Rei Artur, com toda a carga ontológica da realidade e de sonho. Os cavaleiros desse maravilhoso Reino têm uma nobreza e coragem que lhes dá direito a pertencer a esses eleitos. Cobardes, traidores e fracos vão ficando para trás. Mas, note-se ainda, fala-se de uma dimensão muito humana com ardis e magias pouco cristãs, muita ingenuidade e ferocidade misturadas.

     Na demanda do Santo Graal há uma transmutação, uma espécie de transfiguração que não se evidencia do exterior. É preciso muito silêncio à roda do mistério do Graal para que se explique um pouco a purificação e ascese que, então, mas só então, o coração e o espírito podem entender.

      Gomo se fossem duas faces da mesma medalha, o Reino do Rei Artur e o Reino do Cordeiro Místico, serão uma forma de mostrar a possibilidade de uma «Imitação de Cristo
[2]». Difícil de ler, tanto a demanda como a obra mística, pois se trata de uma outra linguagem que só ligada à vida medieval melhor se entende. Tudo isso está, para nós, muito distante, por vezes, obscuro como uma floresta densa onde a limpidez da visão fosse impossível.
    A demanda do Santo Graal trata das aventuras a que se quer submeter um cavaleiro cristão a fim de ser digno da visão do Graal. Tal como era submetido qualquer cavaleiro do rei Artur. Mas o mais importante nesta busca é indizível, impossível de narrar, impossível de explicar. O conjunto de normas, ritos e actos de bravura ocultam o anseio profundo de purificação, de ascese. É da alma humana, no fundo, e não do cavaleiro, que se fala. A caminhada simboliza a luta desesperada contra as amarras do mundo terrestre, a luta contra as suas tentações e perigos. As lutas íntimas da alma são as mais terríveis, mas também as mais silenciosas. Por isso, em grande parte, a dificuldade em entender o jovem cava­leiro Galaaz. É o sonho de um homem novo, o fruto de uma espiritualidade nascente que ele incarna.

    Eis o sonho da Graça, no seu sentido total, com toda a carga cósmica e divina, com a maior entrega humana na espera de um dom --- favor --- sem a mínima garantia para além da fé.

Na sua disponibilidade máxima, a criatura só se sustém por causa de uma esperança que, cada passo, lhe pode faltar.

   É tão frágil a ponte entre o terreno e o divino! Tudo pode oscilar entre a angústia e a fé, entre a confiança e a tentação... Nessa arriscada busca, o homem tem de colocar toda a sua esperança, toda a sua fé numa demanda que lhe exige a autenticidade absoluta e entregar toda a sua liberdade sem que Deus lhe dê nada em troca.

    Só assim, despida de qualquer arrimo terrestre, a alma pode tentar a caminhada. E sabe que toda a graça que receber não lhe confere direitos, sabe que, a qualquer instante, tudo o que lhe foi dado, lhe pode ser retirado. É por isso que a sua luta é feita de terríveis angústias, medos e desalentos, ao lado de assomos de fé, esperança renovada e confiança cega que tenta sempre manter. Deus responderá ao seu apelo!

     Todos os cavaleiros sabem que existe a «hora propícia», que é a hora da graça. Todos sabem que tal hora é fruto de acaso e de esforço pessoal. É um encontro que é mistério. Intui-se, vive-se mas não se explica, nem se justifica pela lógica e suas deduções. Os caminhos de Deus e os encontros com Ele são sempre fruto de graça e de mistério.

    A alma, ou os cavaleiros, nem sempre serão capazes de aguentar o terrível desafio. Quantos ficam pelo caminho?

Quedas, desvios, tentações e desânimos são provas que .todos terão de suportar. Para os mais corajosos e puros, estas provas serão um aguilhão para reforçar a continuidade da busca, da subida e da ascese...

      É a nova fé que o exige. Sob a espessa camada do imaginário, da rudeza das cenas, do fantástico e do maravilhoso vai surgindo outro maravilhoso e fantástico. Há agora uma nova fé. A pureza da alma liberta desliga-se do profano, das aventuras prodigiosas, das poções mágicas, das fadas, de Merlin...

   A nova fé do cavaleiro é a fé cristã, o cavaleiro de Deus que, no jovem e puro Galaaz, encontrará o símbolo perfeito, a imagem cristã mais inatingível mas, também a mais bela que o sonho pode criar.

    Galaaz, o cavaleiro eleito, supera todas as provas e proezas dos seus companheiros. O que faz ou diz este cavaleiro, não nos é dado entender muito perfeitamente. Atem-se a uma simbologia a que somos, em grande parte, alheios.

     Pela obra “Imitação de Cristo”, o sagrado surge em plenitude. Estamos outra vez perante uma linguagem estranha, quase se diria pueril, fantástica ou beata. É necessário acrescentar que, para o místico não há tradução linguística possível, nem pontos de referência a que nos possamos ater. Estamos em terras desconhecidas e impossíveis de narrar. Quem regressa de uma viagem dessas pouco sabe contar. Não há termos comparativos e, por isso, surgem explicações confusas, linguagem infantil, expressões quase poéticas ou quase sem significado.

     Perante o êxtase do místico, resta o silêncio. Os outros, todos os outros, por mais curiosos e interessados que estejam, estão separados dessa comunhão, por mais breve que tenha sido.

     De Galaaz é também o silêncio o que fala nele. É uma promessa que se cumpre.

  Este é o outro lado do homem. A superação de si mesmo leva-o, como se fora uma criança, a aceitar, mesmo sem compreender, todas as maravilhas de Deus. Há vários caminhos para Deus. O mais misterioso é o da purificação, do despojamento, até à simplicidade perfeita. Neste estádio existe um repúdio de todo o raciocínio e toda a lógica. A fé pode ser iluminada pela razão, mas também o é pela graça e esta remete para outra vertente: o mistério.

     As reacções de Galaaz são mais distantes de explicações que podemos encontrar para Lancelote ou outros cavaleiros... Ele, por certo que ri, chora, actua, mas com tal simplicidade, tal candura que nos desconcerta. Como os juízos de uma criança desconcertam os adultos, assim Galaaz desnorteia os críticos literários presos nas malhas de uma decifração em que a transcendência não tem lugar. Galaaz é já transcendência...

     Ele chega na véspera do Pentecostes. É o anúncio da vinda do Espírito Santo aos cavaleiros da corte do rei Artur. A demanda atrai a todos e ficam tornados de fervor religioso...

     Vão todos os cavaleiros célebres... Lancelote do Lago, Boonz, Percevel, Leonel, Estor, Galvain e GirfIet, todos os doze partem. Foram “chamados”, mas, a graça, esse dom gratuito, pertencerá somente a Galaaz.

    O rei Artur abençoou-os a todos e, curioso é reparar, como o rei nem tenta sequer partir com eles. Libertam-se aqui os cavaleiros dos laços terrenos. Não se trata do reino deste mundo, nem de valentia ou coragem, de provas de torneio ou de dragões. O reino é   outro, a Força vem agora do alto, do Espírito Santo.

     Um a um, os cavaleiros vão perder-se no caminho. Apesar de tudo, a taça esteve sempre ao alcance de todos. Mas, como se de um só se tratasse, é necessário perderem-se para se encontrar. Descobrir como Galaaz, após quedas, pecados, falhas da alma mais fraca que não consegue resistir às provas. Cada vez mais as aparências terrestres vão desaparecendo, Galaaz ganha em força e grandeza. Ganha como símbolo o que perde em veracidade humana, apenas humana. Agora a verosimilhança está nas possibilidades mais recônditas da Alma, no mais oculto do Ser.

    Podendo parecer um modelo rígido, vazio e desumano de cavaleiro, parece-nos mais que, o jovem Galaaz, é a manifestação da Graça, a superação do homem pelo homem, a possibilidade da humanidade atingir o Santo Graal ---  Plenitude, se assim o desejarmos ---  tarefa que cabe a qualquer um, desde que aspire a uma “imitação de Cristo”, a um sublime Ideal Cristão.

    A demanda perderia o seu sentido oculto, o mais profundo, se a Alma .--- Galaaz --- não enfrentasse as lutas, não se esforçasse, embora toda a sua pureza e disponibilidade. Tudo foi concedido gratuitamente mas ainda exige uma purificação que a liberdade vai conduzir no caminho certo.

     A dificuldade de abordar Galaaz persiste. Há demasiada ambiguidade e um equilíbrio, muito frágil em toda a sua figura. Mais fácil nos é referir as aventuras maravilhosas dos outros cavaleiros, as lutas com a espada mágica, Excalibur, o poder do Bem e do Mal, enfrentam-se em feitos extraordinários, os amores e as traições cuja desmesura é patente, ora trágica, ora assombrosa.

     A atmosfera que se respira nesse passado lendário é fascinante. São os encantamentos de Merlin, as feitiçarias de Morgana, a exaltação ingénua do maravilhoso, do rude e violento, em que os factos quotidianos são misturados com uma naturalidade espantosa com o mundo mais misterioso e fantástico que se possa desejar.

    De repente, abruptamente, surge o outro lado da medalha... Uma espiritualidade invulgar, uma nova fé, uma pureza sem medos ou dúvidas, quase como se um outro mundo real aparecesse. Será um outro lado infantil do homem, ou uma nova infância (a palavra “nfans” remete-nos para um estádio em que não existe a palavra) que só se atinge através da máxima sabedoria, essa, que só a dada aos pequeninos, essa de que falava Cristo ao dizer que só como meninos se entrava no reino dos Céus...

     Este é o outro lado infantil do homem. Na superação de si mesmo, na re-novação, na re-descoberta do mundo, torna-se criança, pura e inocente.

     A aproximação de Deus dá-se por uma via a que está alheio todo o raciocínio lógico, baseia-se só na fé – intuição – numa confiança que a criança possui por graça natural e todos nós vamos perdendo... Tudo isso que possibilita uma aproximação de Deus por uma via de ignorância e pureza que repugna a qualquer mente estruturada na rigidez cartesiana das ideias clara e distintas, das noções quantificáveis e de tudo o que nos orienta sem que demos conta de tal.

     Por isso, as reacções de Galaaz não são menos humanas que as de seu pai, o cavaleiro Lancelote, ou mesmo dos outros companheiros. Ri, nega, aceita ou chora mas sempre com uma tal simplicidade que nos desconcerta, como uma criança desarma um adulto. Todos os seus juízos são puros, ingénuos e, é notório o facto da dificuldade dos críticos, literários ou não, o seguirem. Desconcerta, não tem humanidade, ou é demasiado simples e impossível!

      Na verdade será que se ascende à infância ou será que nunca se sai dela?

       Herdamos noções freudianas que nos criam conflitos com a nossa infância. Será que o homem adulto só existe se a criança morrer?

       Ou será só adulto quem se reconcilia com a sua própria infância?

      A criança que fomos permanece em nós, oculta, mais ou menos disfarçada, mas a «idade da graça» mesmo muito distante, tem um sentido ontológico inerente a todo o ser humano em qualquer estádio. A teofania seja qualquer for até a religião, implica uma gratui­tidade, uma busca que supera a razão, uma fala nova de um único Verbo. O homem reconciliado com a Natureza toma uma atitude fundamentalmente cósmica de aceitação sem reservas, pleno de disponibilidade para quem tudo toma sentido. Por certo uma experiência vivida difícil de atingir, um sentido oculto, mas profundamente sentido por quem regressa desse estádio de místico. Não é esse o significada das frases dos santos ao dizerem-se brinquedos na mão do Verbo, simples brinquedos com os quais o Deus Menino brinca?

     Por de trás da linguagem pueril que imenso sentido cósmico isto encerra!

     O arquétipo ou, se assim o quisermos, o mito do Santo Graal, pode subsistir a todas as investidas de interpretação intuição numa confiança que a criança possui por graça natural e todos nós saímos perdendo... Tudo isso que possibilita uma aproximação de Deus por uma via de ignorância, pureza a que repugna a qualquer mente estruturada na rigidez cartesiana das ideias clara e distintas, das noções quantificáveis e de tudo o que nos orienta sem que demos conta de tal.

      Por isso, as reacções de Galaaz não são menos humanas que as de seu pai, o cavaleiro Lancelote, ou mesmo dos outros companheiros. Ri, nega, aceita ou chora mas sempre com uma tal simplicidade que nos desconcerta, como uma criança desconcerta um adulto. Todos os seus juízos são puros, ingénuos e, é notório o facto, da dificuldade dos críticos, literários ou não, o seguirem. Desconcerta, não tem humanidade, ou demasiado simples e impossível!

      Na verdade, será que se ascende à infância ou será que nunca se sai dela?

       Herdamos noções freudianas que nos criam confli­tos com a nossa infância. Será que o homem adulto só existe se a criança morrer?

       Ou será só adulto quem se reconcilia com a sua própria infância?

      A criança que fomos permanece em nós, oculta, mais ou menos disfarçada, mas a «idade da graça» mesmo muito distante, tem um sentido ontológico inerente a todo o ser humano em qualquer estádio. A teofania, seja qualquer for a religião, implica uma gratuitidade, uma busca que supera a razão, uma fala nova de um único Verbo. O homem reconciliado com a Natureza toma uma atitude fundamentalmente cósmica de aceitação sem reservas, pleno de disponibilidade em que tudo toma sentido pleno. Por certo um estádio difícil de atingir, com um sentido oculto, mas profundamente vivido por quem regressa dessa experiência mística. Não é esse o signi­ficada das frases dos santos ao se dizerem brinquedos na mão do Verbo, simples brinquedos com os quais o Deus Menino brinca?

     Por detrás da linguagem pueril que imenso sentido cósmico isto encerra!

    O arquétipo ou, se assim o quisermos, o mito do Santo Graal, pode subsistir a todas as investidas de interpretação e permanecer mudo, impenetrável, incompreensível. Importante será procurar entender sem usar um excessivo racionalismo. É pela liberdade e vivência fundamentalmente emotiva que se vivia na Idade Média que talvez melhor se possa perceber esta demanda cheia de beleza e de frescura. Era a época em que se acreditava piamente em Anjos e votes, em luzes e milagres e, a cada passo, o sobrenatural irrompia na vida.

      Isso era tão patente que, aquando do julgamento e de todo o processo de Joana d'Arc, jamais se duvidou dela ter escutado vozes. Santa Joana falava com seres celestes. Só se punha em causa se seriam vozes de anjos ou de demónios, essas suas «vozes». Vozes do Céu ou do Inferno era o dilema maior. Histeria, racionalismo, alucinações não tinham lugar nessa época. Que dizer então dos primórdios medievais?...

    Era a época em que as fadas viviam nas florestas, os gnomos eram alegres e trocistas, as pessoas amavam e odiavam com a maior intensidade, cometiam os crimes mais abomináveis e logo se penitenciavam com o mais profundo arrependimento.

    A palavra encantatória prendia os auditórios, exaltava a imaginação. Época de contrastes e de misturas, o pagão e o cristão vivendo paredes meias, os cultos de origem céltica, nórdica, a nova espiritualidade, a nova concepção da mulher, o seu culto, tudo se concatenou para possibilitar mais tarde, um São Francisco, o pobrezinho de Assis, um Alcuino, cuja sabedoria é feita de elementos bem ecléticos, ou mesmo um São Luís de França cheio de contradições aos nossos olhos...

    Deste modo a demanda do Graal é uma forma de cami­nhada para a Perfeição, a caminhada da Graça pela lenta sublimação da Alma. Tudo tem de ser entendido num claro-escuro da enunciação poética, onírica, mágica, enfim própria do homem medieval, não mais crédulo do que qualquer um de nós, apenas crédulo de um modo diferente. A grosseria da comparação da crença em OVNIS, seres extraterrestres, ou similares que ocorrem nos nossos dias servirá talvez para melhor nos atermos significação do Graal.

    A plenitude, o êxtase, a sabedoria – aspiração que se tenta atingir pela via religiosa – é uma caminhada e luta travadas nas jornadas destes cavaleiros, perdidos do seu rumo certo, com traições, tentações satânicas revestidas das aparências de belas jovens e damas, angústia de perder o dom da graça, mesmo sendo “escolhido”, pois ninguém pode saber quem será eleito. A interrogação é quase desesperada e com esperança sem ponto referencial seguro, que caminha cada paladino. Este herói desfavorecido, ignorante dos perigos da floresta mas atraído por ela, quase pode ombrear o semideus trágico, só se separa dele pela sua dimensão de fé
.
    Curiosos de reparar são certos paralelismos entre o Velo de Ouro da Antiguidade e o Santo Graal da Idade Média. Ambos são fruto de um sanguinolento sacrifício de imolação para a salvação de um povo ou grupo de “eleitos”. É um ritual de expiação e de libertação que está no âmago de ambas as sagas. Foi sempre um modo de expurgação dos males das comunidades primitivas e ainda nos nossos dias o «bode expiatório» tem tal conotação que salva da terrível constatação das nossas faltas e dos nossos erros. Os inocentes carregaram o peso de todas as faltas e abriram o caminho para a redenção. Mas esta tem um preço muito alto que já não é deste mundo enm oferece poder e glória ou chave dos reinos terrestres. As duas demandas são um testemunho que espera o cumprimento profético, o cumprimento heróico do Homem.

     Exige, como aos Argonautas, a coragem, o entusiasmo, todas as potencialidades humanas porém agora mais sublimadas, mais espirituais do que nunca.

     Para além da melodia encantatória das músicas de Orfeu, a força toda poderosa de Hércules, a astúcia e o ardil de Ulisses, agora é a bondade, a pureza, a inocência e a purificação do Mal o que se exige do herói.

      Pese embora todo o perigo das analogias, em todos os povos, em todas as épocas, o fenómeno da teofania está presente muito embora os símbolos possam ser diversos. Assim, o Velo de Ouro e o Santo Graal, afastadas que sejam todas as questões de particularidades teológicas, apresentam pontos comuns e curiosíssimos mas, que se podem ser usados com prudência e sabedoria.

    Galaaz atinge a sua hora privilegiada, rodeado de um todo um novo universo oculto, uma beleza mística que rodeia a sua chegada a Coberic onde o aguardava o lendário rei Pescador, Peles o guardião do Santo Graal. Toda a espiritualidade medieval nos surge nessa visão ingénua e deslumbrante.

    O Rei Peles, já curado das suas chagas pelo Perfeito Cavaleiro, através de três gotas de sangue da taça, dirige-lhe um discurso cheio de metáforas místicas, de cumprimento profético, «de flor da nova árvore de Jesus Cristo» se assim o poderemos traduzir.

   O cavaleiro «puro e sem mancha» atingiu pois o cimo da sua montanha. Não pode voltar jamais. Ele representa a Alma que se purifica no itinerário interior e tem de se perder para se encontrar. Galaaz já não é deste mundo. A saga do Graal toma o caminho dos céus, o Cálice da Última Ceia não pode permanecer no reino dos humanos, mas os homens poderão seguir o caminho dos Céus. Assim pois Galaaz, o cavaleiro com toda a sua candura e perfeição, no seu misterioso êxtase, e na sua própria superação, pode desaparecer da terra, morrer para viver eternamente. E é na mítica cidade do Sarras, que se dá este acontecimento. A demanda termina com a morte. Ou com a vida eterna...

      Todavia nada ficou terminado. O caminho ficou somente apontado, os cavaleiros que tinham tentado acompanhar Galaaz voltam ao reino de Logres, continuam as suas lutas, a vida retoma o seu curso, mas a via transnatural, tem agora uma possibilidade. Toda esta espiritualidade deixou uma vivificação da esperança, a ânsia do Absoluto deu uma sede nova, que não é deste mundo, que nada nem ninguém pode saciar porque, nesta demanda, a tragédia foi vencida, a esperança que Galaaz incarna pode trazer um novo sentido para a vida de muitos homens.

      Toda a nova Europa medieval até aos nossos dias guardou ecos da maravilhosa história da demanda do Santo Graal...

      Como nota curiosa e risonha, recordemos um episódio em que o rei de Portugal, D. João I, ao ver-se em dificuldades e grandes trabalhos com os inimigos castelhanos, se queixava amargamente por não ter cavaleiros como os cora­josos seguidores do rei Artur. Com muito espírito e graça, alguém lhe teria respondido que ali não faltavam cavaleiros corajosos para a peleja como esses, os de Tavola Redonda, o que faltava para a luta no cerco de Lisboa era sim o rei, o rei Artur, com quem, ao que consta pelos cronistas, o Mestre de Avis, pouca semelhança poderia ter, em coragem e valentia...

     Igualmente, é do conhecimento de todos que Nuno Álvares Pereira, o Condestável do Reino, se inspirava em Galaaz e o seguia como modelo espiritual. Toda a cavalaria medieval sofreu forte influência desta demanda, das narrativas das lendas que tomavam uma feição libertadora, uma nova experiência reveladora da Graça. O carácter sobrenatural da cavalaria torna natural o misterioso destino do homem. Dá-lhe possibilidade de, mesmo fraco e penitente, elevar-se ate Deus, até uma “imitação” de Cristo. Propõe-se uma nova escala de valores com uma ascese libertadora, uma das mais belas heranças medievais!

     Avançando ainda um pouco, D. Quixote de la Mancha, o cavaleiro da triste figura, parece-se um pouco com Galaaz decaído, ridicularizado, visionário que se perdeu na caminhada a no sumo de Coberic, e. em vez de morrer em êxtase místico, depois do vencer as forças do Mal, o triste cavaleiro vem a morrer, multo prosaicamente em sua casa, na sua aldeia.

    Desprende-se, por vezes, das páginas de Miguel Cervantes, uma tal melancolia, uma nostalgia que, a juntar-se com acerba ironia, melhor se diria que ele chora rindo, num trágico que aparenta um cómico mas, no fundo, no mais recôndito da Alma, há somente o homem que chora a escolha que não houve e a graça que não recebeu...

     D. Quixote será assim um Galaaz sem rumo, sem tempo propicio, sem hora privilegiada, cuja demanda só produz um «pathos» de um herói trágico oculto por uma máscara de comicidade.

    Por outro lado, o nosso rei, D. Sebastião, sonhara também tornar-se o Perfeito Cavaleiro. Que pretendia ele, nas quentes areias de África, senão um sonho grande demais para o seu próprio tempo e para o seu próprio reino? Sem o fascínio da demanda do Graal como poderia esse infeliz rei, sonhar tão alto?

     Tal como o rei Artur, D. Sebastião ficou oculto na lenda e nas brumas da História. O rei Artur foi levado para a ilha de Avalon, as fadas não consentiram na sua morte. Um dia ele voltará... D. Sebastião, num dia de nevoeiro também regressará. Está em alguma ilha dos Açores, no ilhéu de Vila Franca do Campo, ou em alguma ilha encantada
.
     Alimentou o sonho de muitos sebastianis­tas e insuflou a sonho saudosista num regresso profético e messiânico.

    Tanto nos faz falar a Demanda! Porém bem pouco por dentro dela conseguimos decifrar...

   É como se viéssemos de muito longe, de um reino distante, da infância e da pureza contar o que os olhos humanos nunca deviam ver. É como se tentássemos uma contemplação mística e depois a quiséssemos contar em linguagem que todos entendam. Mas a linguagem torna-se impossível e os pontos de referência deixam de existir.

    Eis então que a linguagem pueril surge. E a criança que penetra nos reinos mais puros, no seio do Divino. É ela quem surge, entende mas, nega-se a explicar. Não o pode fazer. São tão pobres as palavras dos místicos, tão misteriosas as suas imagens, as suas metáforas! Quando interrogados, desiludem profundamente. Se é tão difícil, quase impossível e sempre traiçoeiro, contar um sonho, quanta mais não o é passar todo a intuído para o campo racional?

      É o inefável, feito de silêncio e uma sabedoria total­mente desligada da linguagem e símbolos habituais.

     Reparemos bem neste estranho estado. Saber e conhecer e, quando se nos pede explicação, logo uma barreira nos impede de explicar, de traduzir. As vias do conhecimento são múltiplas. Quando a linguagem racional nos abandona, recorremos à poesia e esta, por sua vez, requer, exige silêncio. E, se recorrermos à música, de novo, com toda a sua força, é o silêncio que a sustenta.

    Por tudo isto, enquanto aguardamos a palavra do místico a da sua visão, a narrativa da sua viagem, cheios de curiosidade e de fascínio, ficamos profundamente desiludidos com o que ele traz no regresso, nos escritos que nos deixa, nas poesias que esboça. Tudo aquilo nos é alheio, como alheio nos está  o estado místico, a ascese, longo fruto de sabedoria, que não nos é dado entender somente na palavra, nas metáforas de um sentir, intuir, amar, vivencial mas intransmissível.

     Ascender a um novo estádio implica uma nova consciência. Esta consciência é tão luminosa e transparente, tão simples pela purificação de todo o acessório, que só é comparável com a consciência infantil, no seu grau mais sério e lúdico e donde ressaltam as sombras de actos importantes e sérios, tão sérios e importantes como inúteis e infantis. São duas perspectivas como são dois os estados de consciência.

   A demanda e o jogo, a subida e a ascese, a angustia e a Graça, o desespero e a libertação estão ali todos presentes. Haverá que meditar profundamente nisso. A palavra não está já na Demanda. Exige, depois de evocada ---invocada --- uma resposta!

 


   

A QUARTA DEMANDA

 

O CASTELO

 

 

Cartaz de Franz Kafka, Praga [  © - Ver nota 7 ]

 

      Este constante telefonar soa aqui nos nossos telefones como se fosse um maru­lhar e um cântico.
       Com certeza o senhor também ouviu isto.
       Ora este marulhar, este cântico são a única coisa certa e segura que os telefo­nes nos transmitem. Tudo o mais é ilusório… Não há nenhuma ligação telefónica determinada com o Castelo, não há nenhuma central.
..”

  KAFKA , O Castelo ( p. 87. )

 

       “K”* [3]chega à aldeia que pertence ao Castelo. Inicia-se a demanda --- ou aquilo a que Kafka procurou dar a dimensão de peregrinação solitária da angústia humana num mundo que nos desconhece --- que nós, na nossa perspectiva, entendemos intitular assim.
     Anoiteceu. Tudo tem uma aparência calma. Nevoeiro e silêncio impregnam de ambiguidade o ambiente. Começa-se pela névoa que tudo envolvera sempre.

     O próprio “K”, o estrangeiro, tão próximo de nós, manifesta-se por vezes, terrivelmente distante.

    “K” inicia a narrativa, contemplando a ponte de ligação com a aldeia que, por sua vez, (será que alguma vez se saberá?) está ligada ao Castelo.

   Estamos de novo num local de encontro com um estrangeiro, envolto num mistério, Tudo ainda separa “K” da peregrinação, da aldeia, do mundo da “quotidianidade” do qual o estrangeiro quer fazer parte. Ele está fora da institucionalização irracional da lógica dos pequenos gestos, da ordem, do estático, da repetição longamente vivida a consentida. “K” virá abalar a vida em quotidianidade, pôr em foco o absurdo do gesto repetido, a sentido do próprio repetir.

      “K” esta só. Como todos nós, sente a solidão e a distância do quadro em que se devia integrar sem sobressaltos como todos os outros. O mundo que o rodeia é banal e ao mesmo tempo, assustador, hostil, misterioso, impenetrável para quem não sabe as regras do jogo, para quem quer jogar com regras. A todo o transe, “K” tenta comunicar com qualquer pessoa que encontra, estabelecer pontes mas, a cada passo que julga avançar, logo reconhece que nada conseguiu e quase desespera. É a palavra que o atraiçoa, o raciocínio lógico que se desfaz numa teia imensa que à sua volta se tece, se teceu sempre, muito antes desse estrangeiro chegar àquele lugar, seja lá onde for...

    Cada interrogação, cada insistência, cria ainda maiores barreiras, mais equívocos entre ele e os habitantes da aldeia. “K” tenta sempre o diálogo mas, apenas nós mesmos, ao descobri-lo, é que parecemos dialogar com ele. E, ele mesmo quase que desaparece e somos nós que ficamos. Sós!

      Estamos sós! Todos! A névoa dos tempos heróicos, os fantasmas, as lendas, os deuses felizes, as fadas encan­tadas, a Imensa Esperança, os heróis sem medo e enormes feitos, tudo, tudo desapareceu. Estamos sós...

     A fria lucidez invade qualquer raio de esperança numa humidade pegajosa como que de pântano, e o nosso olhar perde rumo. A penumbra, o tempo morno, ambíguo que nos segura os braços carregados de senso prático e lugares comuns. A solidão de “K” torna-se a nossa na insistência em encontrar um lugar, uma pista, uma certeza que, apesar do tudo, queremos que exista, como se todas as interrogações tivessem de ter resposta...

    Em “K” perdem-nos porque nele nos encontramos. É a nossa própria sombra, a nossa própria busca, a nossa peregrinação e o nosso absurdo.

     Recebemos um convite qualquer, ambíguo, enigmático, que nos obriga a algo sem que se saiba muito bem o quê, nem quem o mandou, nem onde começa a ordem e o dever a cumprir. Algures deve estar escondido um sentido, a obrigatoriedade ou a disponibilidade. Recebemos um convite, como “K” e, por mais que tentemos penetrar no mistério a na decifração da nossa tarefa, cada vez mais nos perdermos em brumas e confusões de linguagem e de interpretação.

      Estamos “aqui” perigosamente seguros e incertos pois nem a certeza de termos chegado a tempo, nem demasiado tarde ou até, demasiado cedo, nos é concedida...

   Descemos ao palco para um público anónimo, nós próprios teremos de ser heróis anónimos, tal como é “K”, o enigmático personagem do mundo de Kafka. Representamos o nosso papel, sem ardis e sem armas. O público é indiferente. Tudo se repete infindável e monótono como nós o poderíamos ser sem a máscara do absurdo.

    Tudo está estabelecido na aldeia. A leitura do jornal velho «desta manhã», o papo-seco, o café, a chuva, os transportes, a rádio tudo nos diz exactamente certo o que seria  tal qual o mesmo, sem o convite e sem a nossa presença. Além de estamos sós, será que estamos a mais?...

    Ninguém dá conta da nossa presença, qualquer outro nos podia substituir, a cena que se repete no palco, é indiferente a quem representa, a peça é sempre a mesma, os actores podem ser outros, isso não interessa, não altera absolutamente nada.

   Terminaram-se as magias de Merlin, os encantadores de serpentes já nem são críveis, os enigmas decifram-se, só nós permanecemos misteriosos...

     Todavia, num repente de lucidez, atravessamos a ponte e começamos a demanda...

   Tornarmo-nos estrangeiros porque o absurdo nos atinge, nos faz cair a máscara que teimaram em nos colocar. Agora, se alguma coisa nos sustém, se há alguma força ainda, terá de ser uma esperança, sem sentido e sem justificação. A certeza da esperança nem a reconhecemos com nitidez em nós, só é verdadeira dentro da nossa alma, e a nossa ânsia, o nosso desejo de atingir o cimo, de entrar no Castelo!

     Para lá chegar, temos de procurar, caminhar, tentar ver rumos, formas, interrogar os outros, decifrar mensagens... Talvez o caminho que estamos a seguir esteja o errado, talvez nos estejamos a afastar em vez de nos aproximar, talvez tenhamos entendido mal as instruções, as frases e as mensagens. Talvez mensageiro que nos falou nem fosse o certo, ou quiçá ele dirigia-se a outro qualquer estrangeiro. Quem sabe se perguntando melhor, de outro modo mais subtil, se obteria resposta? Quem sabe se é preferível procurar de outra maneira?

    Como todo o estrangeiro, como “K”, sentimos a angústia da solidão, da falta de alga indefinível, muito importante mas inexplicável. Sabemos que há um segredo qualquer, um mistério porém estamos cansados, a fadiga envolve-nos sempre. Procuraremos pensar nisso amanhã.

      Quando chega uma notícia do Castelo, por muito vaga ou estranha que seja, a cabana, a estalagem, toda a aldeia parece iluminar-se. Tudo se torna mais quente e mais vivo. Todos esperam uma resposta. Mas as mensagens do Castelo são vagas, como que sonolentas a extraviadas. Tentamos desesperadamente decifrá-las, interrogamos os mensageiros, aborrecemos os outros, insistimos, reflectimos com cuidado no significado ambíguo, sempre ambíguo e tudo fica vago, cinzento, confuso. Ter-se-ia o mensageiro enganado? Quem pode confiar nele? A ordem seria mesmo aquela? Alguns mensageiros parecem tão insignificantes e, sabe-se lá quem os enviou lá de cima, do Castelo... Eles têm tanto a fazer, as tarefas no Castelo são terrivelmente complicadas. No meio de tudo isto, a rotina continua, regular, sem alterações, apenas “K”e nós somos uma interrogação, uma dúvida quase insuportável.

      Quantas dúvidas se levantam quando se acaba de tentar decifrar uma misteriosa mensagem! O mensageiro podia ser o Anjo de Jacob, podia ainda ser o mensageiro da carta de alforria, o homem que nos vendeu o número da lotaria, Merlin que nos vem oferecer uma das suas profecias, um juiz com um veredicto de condenado, um moço de recados que se extraviou no caminho. Mas, ele é um mensageiro!

    E, mesmo por instantes, o Castelo parece mais perto. Logo, porém, se afasta, inatingível, porque a men­sagem é complexa, a palavra projecta-se em mil direcções, estilhaça-se em migalhas que inutilmente se procuram agrupar, dar sentido.

     Em vez disso, a palavra esquiva-se, nega-se, rebela-se por completo. E o Castelo continua suspenso no Alto, inatingível, cada vez mais distante. Quando parece mais perto,” K” descobre com temor e desespero crescente que ainda está mais longe...

    Como estrangeiro, “K” nem sequer pode ter situação definida, sentir-se estabelecido porque espera uma ordem, uma resposta, uma indicação qualquer...

Tudo é provisório, tudo é névoa, imponderabilidade e insegurança...

        Até mesmo o amor, o riso, a agressividade, nada fica definitivamente claro, sem ambiguidades. Nada é aceite sem uma ponta de desconfiança, de reserva.

        “K” deambula, tenta saber como lutar, quais as armas que pode usar, se é que tem armas, se é que tem inimigos... O que lhe parece ser uma facilidade ou um auxílio repentino, logo se manifesta ser uma hostilidade ou um obstáculo novo. Mas, apesar de tudo, ele aceita o desafio. Luta. É o absurdo?

        Não, pelo contrário, a realidade que enfrenta é que é absurda. Afinal nunca se encontra a realidade, ela é sempre impossível...

       Culpado ou inocente, na soma dos pequenos erros e equívocos, surge a hostilidade da teia do “estar ali” e ainda por cima a mais… Não há possibilidade para um estrangeiro de viver na ronronante tranquilidade cega do quotidiano. A rotina não é permitida a ele. Vive o dia a dia mas numa espera que lhe é imposta, na qual procura encontrar sentido, É por isso que a sua demanda atinge o trágico. O que torna heróico é precisamente a insistência na monotonia, na repetição, o lado anti-heróico, o lado anti-grandioso da existência.

      A demanda continua. As outras foram diferentes, com uma grandeza luminosa, um brilho e encantamento para o herói. Agora, o herói, se o é, mergulha na opressão, na luta brutal com a penumbra, sem lograr uma áurea de glória, de honra, sem certeza ou predestinação, sinal que o conduza...

     Apesar de tudo, o herói pode existir. Pode nascer em nós, pode nascer na culpa que sentimos, envoltos em mistério e em indecisão, tacteando na penumbra e insistindo na luta.

     Nem a consciência em “K” consegue permanecer-lhe fiel, tal como nos acontece tantas vezes, e as interrogações sucedem-se indistintamente às coisas, aos seres, a todos os que nos rodeiam por menos importantes ou significativos que possam aparentar. Quem sabe se há alguma mensagem oculta nessas frases banais, aparente­mente banais, nos gestos, nos acontecimentos que podem ter algum sentido oculto?...

    Todas as peregrinações ou demandas exigiram valor, luta, transcendência. Uma singularidade de herói, uma disponibilidade, orgulho ou sentido de missão. Agora, para tentar atingir o Castelo, ninguém tem nenhuma taça de elixir, nenhum poder da força telúrica ou mágica, nenhum poder ou graça dados por um misterioso desígnio. «Hibris», desmesura ou “pathos” estão lá porém. E no assumir a própria condição de estrangeiro, sempre estrangeiro, nesta “aldeia” e permanecer teimosamente nela.

      Para quê?...

     Até para dar resposta a isto há ambiguidade. Todos confundem, interrogam, duvidam de “K”. Ele torna-se uma peça desconcertante num mundo que se conformou com as ligações enigmáticas e misteriosas com o Castelo, seus senhores e mensageiros. Os habitantes do lugar têm toda a paciência, herdaram-na tal como receberam a terra e o Inverno por herança. Bens que, no fundo, todos sabem ser do Castelo... Os habitantes deixaram de usar a palavra para interrogar, mas em alienações sucessivas, na fluidez da terra, do tempo, onde o Inverno é contínuo, como um vago mal-estar. Naquele local só há raros dias onde a Primavera é indecisa ou o Verão balbucia tímidos raios de sol.

      E tudo parece ser como se fosse um jogo de xadrez. Tudo muda de lugar continuamente. Nada é sólido. O cansaço não dá tréguas e é preciso lutar com a vontade de parar, de desistir que aparece a cada canto, a cada passo... Ora é o mundo que tenta mergulhar o herói no seu quotidiano, ora é a miragem do Castelo, sempre inatingível, lá no alto, que se dilui no sonho, quase no impossível.

    Não foi por um mero acaso associativo que escolhermos esta obra kafkaniana neste nosso deambular incerto de demandas. No nosso deserto interior existem muitos caminhos e veredas. Porém, só alguns podem tor­nar-se sendas de peregrinação. As demandas, nossas ou alheias, reportam-se a uma simbologia, a um arquétipo cujos valores pertencem a todos. Esta é a demanda que hoje mais perto está de nós! Esta é a demanda da angústia da solidão, no meio das gentes, a demanda da incapacidade de comunicar com o Absoluto que tantos ansiamos.

   O próprio Absoluto interioriza-se. Existe dentro de nós. A caminhada não tem exterioridade. O Castelo, que está por trás de todas as máscaras é finalmente o Mistério.

    E somos nós, os peregrinos, que nos descobrimos em “K”. O protagonista da narrativa torna-se a nossa própria pessoa. O seu peregrinar é a nossa busca num repetitivo dia-a-dia onde a narrativa perde quase todo o poder, como se fosse uma odisseia esmagadora do herói. Esse herói tem outro combate, outra demanda, adentro outro quadro de referências, a própria banalidade é o seu inimigo.

    É que, no romance de Kafka, o Mistério é a única certeza. Tudo participa dele. Mesmo sem dar por isso, como seres minúsculos numa teia, ou num labirinto. Desde o mais onírico ao mais mesquinho, desde os gestos mais desastrados às tentativas mais corajosas, vamos em busca da nossa luta, do nosso velo de ouro, da nossa Taça, da Terra da Promissão. Invocamos, consciente ou inconscientemente o Castelo, o mistério, a nossa esperança.

    Parece-nos demasiado pobre a interpretação de ”O Castelo” como uma visão puramente semítica e histórica da longa peregrinação dos filhos de Israel através dos tempos. Posto que tal interpretação ja foi dada por alguns críticos, não a negamos, apenas acre­ditamos que pode tomar uma dimensão muito mais ampla, no paradoxo da epopeia do homem comum, quotidiano, que, perante si mesmo se interroga. Sem negar todas as influências da obra, afirmamos a nossa presença “ali”, nesse mundo   desconcertante que é o nosso. É um mundo hostil e próximo, o nosso, com todos os obstáculos à comunicação, a culpabilidade velada, os erros impossíveis de apagar, os passos errados já dados, as hesitações cobardes e a nossa falta de jeito e habilidade de viver. Vivemos na vaga névoa, no equívoco inevitável da acção e omissão, no conhecimento impreciso do que é certo ou errado, com o peso de uma acusação qualquer nos cair a qualquer momento sobre a nossa cabeça.

     É esta a luta sem glória, sem rumo que nos é proposta. O  estrangeiro, veio com uma profissão definida: é agrimensor. Mas ele nem sabe o que medir, nem onde começar, nem o quê. Ele iria ser um agrimensor chamado para o Cas­telo. Mas onde está a medida exacta? E de quê? Talvez ele nunca chegue a medir absolutamente nada, talvez ele esteja a medir tudo num outro modo de medir do qual nem se dá conta.

      Os fins mais aparentes não são os mais falsos? Quais os padrões certos para medir quando só se fala de distâncias humanas, de seres e sentimentos muito humanos?...

    “K” acredita sempre e teimosamente que foi escolhido e que deve haver uma razão para estar “ali”. Todos nós sentimos que estamos muito perto dele. A sua convicção é também a nossa, não pode ser apenas atribuída a um povo, ao povo judeu, mas a qualquer ser humano que quer desesperadamente dar um sentido à sua presença na aldeia. Ainda mais do que isso, convence-se que conseguirá, até terá direito, a entrar no Castelo e conhecer o Senhor.

      Isto é uma verdadeira loucura para os habitantes da aldeia. Não têm consciência de que foram chamados ou o podem ser  a qualquer momento. O quotidiano apoderou-se deles, há longo tempo atrás, e ninguém se sente o absurdo das suas tarefas, o vazio do sentido daquela aldeia que depende completamente do distante Castelo. “K”, causa, com a sua irritante e insistente atitude, admiração e despeito, desconfiança, ironia e até desprezo. Poucos procuram entendê-lo, se o fazem é para o afastar do seu intento.

       Porém, se o convite para o Castelo chegar?

       Nem todos o sabem interpretar. Há muitas maneiras de viver tal momento. A jovem Amália foi chamada por um dos senhores do Castelo e recusou-se. Torna-se trágica na sua grandeza, no desprezo a que a aldeia a vota, a sua recusa engrandece-se nas humilhações que atraiu para si a todos os seus. Ela era livre de o fazer. Ou porque não soube interpretar a mensagem, ou porque o mensa­geiro se lhe dirigiu erradamente, Amália rejeitou o que podia ser um bem ou um mal. A sua figura é mais um enigma que não se pode decifrar. Obstinou-se na recusa como “K” se obstina na comunicação. Todos são espiados, observados, vigiados. As personagens mudam, os locais diluem-se quase em descrições semi oníricas. O agrimensor tem os seus ajudantes, misteriosos e insistentes personagens que se tornam indissociáveis dele, desprezados a despo­jados de personalidade própria, nunca o abandonam, exasperam-no, traem-no, regressam mesmo que se afastem. Tornam-se nos seus duplos, na sua própria sombra, um pouco como se fossem um “daimon “ obscuro e atribuído a “K”, que os reconstrói-os, espia-os por sua vez, vê-os diferentemente e as palavras anteriormente ditas tomam novo sentido que o agrimensor nunca tinha imaginado. O diálogo aparece agora, precisamente agora, que só pode ser reconstruído e já nada pode ser dito de novo...

     É na renovação da ignorância que a luta se dá e todas as frágeis pontes são pacientemente reconstruídas. As linhas cruzadas, os telefones que emitem mensagens estranhas, a longa cadeia burocrática. Tudo isso tem sentido mas este escapa a “K”.

       Esta peregrinação começou pela noite, no frio e na névoa. Pelo silêncio opressivo para lá de uma ponte misteriosa... A aposta foi aceite, sem juramento, cerimónia ou rito. A aposta (com quem?) é também parte do Mistério e chega ao fim sem transmutação, sem ascese, sem vitória. Houve a caminhada, a incerteza, houve o problema sempre oculto por trás de cada passagem, de incerteza em incerteza, entre o desespero de deixar correr como está, ou a infinita Esperança de conseguir atingir a Mistério.

     O fascínio do Absoluto tem de ser Mistério. E esse permanece intacto até ao fim da obra. Que afinal ficou inacabada como mais um símbolo ou enigma. Afinal, num súbito romper com o leitor, Kafka é quase brutal. E, pese todo o deses­pero e amargura do final, lá fica a mensagem de esperança.

     É a estalajadeira, essa mulher que afinal pode nem ser uma estalajadeira, que diz as ultimas palavras:

     «--- Amanhã recebo um vestido novo. Talvez te mande chamar».

    Amanhã, sempre amanhã, as aparências --- vestidos --- sempre a mudar e apenas a esperança como um fio ténue nesse labirinto. Talvez... incerteza velada de toda a esperança e de todo o desejo que está aí concatenado. Talvez...Amanhã... Por trás da aparência está o mistério.
    Talvez amanhã o estrangeiro descubra o mistério. Talvez amanhã seja o seu dia da graça porque a Vida é Graça, “K”, somos nós, qualquer um de nós. E, quem sabe? amanhã...

 

  


 

A QUINTA DEMANDA

 

    A GRAÇA

 

 

"Senhora com o Menino", autor desconhecido.

[ ©   José David Couto, foto digital]

 

Perder a Graça?

Que é isso senão saber que já se teve? Como falar de Esperança e do Mistério sem tais começos?

 

 

       

Remeto-me para a visão de um quadro, um humilde e simples calendário na minha frente. E, por instante que seja, suspendo todas as buscas e questões, todas as demandas e interrogações. Dá-se um encontro.
       Esta imagem do calendário, vivendo no seu sentido existencial, obrigou-me a parar. Há uma repentina intuição de graça há tanto procurada, historiada que, desta singela imagem emana e, em mim, se reflecte.

     Não passava antes, de um anúncio, utilidade, feito para olhar sem ver, sem reflectir, um ornamento tranquilizador de um tempo que se procura quando se esquece a dia de hoje. Num pestanejar rápido de olhos, vem o rótulo imediato, a dia “de hoje” ou o de “amanhã”, marcação de data, precisão de controlo, logo ultrapassado…

     Remeto-me, por um acaso do olhar em volta, para este quadro. Repito o olhar. E logo, reparo no erro. Jamais se repete qualquer olhar. O quadro muda. Eu também... E esta gravura medieval --- reprodução --- de intenção religiosa de idealizar a Virgem Mãe com o Seu Filho, Senhor e Deus Criança altera-se a cada instante sob o meu olhar. O seu tom dourado, a sua placidez, o seu intimismo, a impossível permanência naquele quadro prendem o olhar e roubam todas as certezas.

      Há uma ambiguidade nesta presença cheia de graça. Tanto que procurei essa disponibilidade, esse “dom”, essa escolha e, agora, singelamente, é-me dada aqui gratuitamente. Afirma-se, afinal, como é livre a graça, como o Espírito sopra onde quer...

     Mas, de quem é a disponibilidade deste encontro?

     Acima da Lei, do Direito, acima de “eleitos”, ou “escolhidos”, acima da moral no seu sentido social, a graça é, fundamentalmente, mistério.

      Magnanimidade para quem a concede e a dá livremente porque assim o entende. Libertação e alegria pare quem a recebe porque captou um momento privilegiado, ultrapassou muitas barreiras, ficou pobre e disponível pare ter coragem de ser humilde, aceitar a pobreza de receber...

     Terá o pintor sentido a graça de sua inspiração? Será a sua expressão de graça uma revelação profunda que me chega de longes terras e tempos, por tangos caminhos andados?

      Terá a jovem modelo entendido o seu papel, será “sua” a graça que emana do quadro? Terá a criança criado esse estado de graça primordial e dela irradiara toda a belíssima luz que ilumina o quadro? Ou haverá que recorrer a uma transcendência, a um Mistério maior da Virgem, do Deus Menino e das suas graças livremente distribuídas a todos? Incluindo eu que caio num abismo de reflexões sem fim?...

    Diluem-se a apagam-se as explicações e análises da “Kharis" grega. Desaparece o sentido da simbologia que os gregos emprestaram à encarnação da Alegria, das Flores e do Brilho quando representaram três belas jovens unidas num gesto de dança. O mistério é maior. Nem os dados, o mirto e a rosa, os três símbolos da graça, com toda a sua carga potencial de forças da Natureza basta neste caso. Nem a sorte, nem a flor humilde, nem a perfume da rainha das flores, a rosa, bastam pare explicar o que os meus olhos tentam entender. A minha consciência foi mais longe. O Mistério continua mas, agora, é a graça primordial, a primitiva, a mais pura, para a qual o meu espírito se dirige, mais liberto e disponível do que quando carregado de longas reflexões e meditações...

    Em mim se concatenam forças externas e internas. O inconsciente actua tal como o consciente, neste encontro que deixou de ser ocasional para se tornar intencional, permitido pela falsa repetição do olhar. Pais, pose embora todo o senso comum, o olhar a sempre outro, outra visão, outra captação vivencial de um real a cada passo recriado, inventado.

     Na intencionalidade da minha consciência, este quadro fascina-me. Atrai como um poderoso íman. Obriga-me a tomar novos rumos, novas interrogações e demandas inexploradas, talvez mais familiares, talvez mais intimas ou, quem sabe? Mais exigentes e longínquas.

      Nesta percepção, consigo comunicar comigo mesma e o quadro passa a ser pretexto para isso. Sei que, directamente, nunca comunicarei com o quadro, ele estará sempre para lá da minha consciência, para lá da minha interpretação, de todas as interpretações. Ele está potencialmente “sempre ali” capaz de provocar uma contemplação estética, um estádio passível de se transmudar em consciência moral, ou até memo, no máximo do esforço da consciência, num estádio religioso no seu sentido mais profundo e intransmissível, coma experiência religiosa.

      Atinge-se aqui primeiramente um estádio estético, de beleza, de sedução fascinaste por múltiplas razões. O gosto, a procura. a gracilidade e intimismo da situação deram origem a um estádio fortuito e simples de encontro. Outros, agora são possíveis. Mas sempre outros...

     Tal como o estádio da minha consciência, a imagem chega-me aureolada de uma luz indecisa, crepuscular, um vago acordar que anuncia a noite próxima ou lembra um amanhecer que se avizinha...

    Todo o quadro obedece a uma unidade. Há uma estrutura circular, tal como os nossos olhos, tudo converge numa harmonia tão simples como aquela que depende da aprendizagem e se tornou tão íntima que se transforma em sabedoria. Porém, toda a sabedoria, ou se quisermos, sageza, do anónimo pintor é vagamente entendida, o “tempo suspendeu o voo”, a cena petrificou-se, transcendendalizou-se, projectou-se num futuro, ultrapassou qualquer data, qualquer tempo, qualquer calendário...

      Apenas se destaca a alegria irradiante da pintura, uma alegria suave, tranquila, inefável, como que um indicativo da Graça.

    A interpretação adensa-se no contexto das minhas circunstâncias. Recordo e introduzo dados novos, aumenta a auréola do mistério e do conhecimento.

    Reconheço ignorância, recorro a sabedoria... Mas digo sabedoria e mergulho profundamente as suas raízes na ignorância. Mais, digo sabedoria e alargo a minha vastíssima floresta de mistérios.

    Nesta cena do quadro há dados banais e segredos primordiais. Maternidade e nascimento, infância e amor, alimento e vida. É uma cena bíblica, medieval, quotidiana, plena de ingenuidade e profundo sentido humano a divino.

     Renovo o olhar. O quadro é, agora, ingénuo, terrivelmente ingénuo.

     Na sua limpidez, adensa segredos e acrescenta a densidade do olhar. Remeto-me para o mesmo quadro e ele muda, deixa de ser reflexo passa a ser um vidro por onde tento ver, como se de uma janela pela qual espreito, um mundo que me é alheio e impenetrável.

    A ambiguidade cresce. Por um lado, o fundo dionisíaco, despreocupado, pendendo para o nocturno e iniciático aumenta, enquanto por outro lado, o aspecto apolíneo, luminoso, irradiante de luz interior está mais patente, etéreo, fragilizado na transcendência de uma graça indefinível.

    Reconheço-me como “numeno” para mim mesma. Rebelo-me do meu desconhecimento, das minhas próprias frágeis percepções diante de tudo o que fica para além delas e de mim, com todos os meus condicionalismos Estas percepções, transcendentalizadas na linguagem ---  neste caso, o dizível é o meu único caminho do real --- procuram pontos de apoio, analogias, orientação para interpretações, para um “logos”, exigente e rotineiro. O risco que rodeia esta contemplação ultrapassou o prazer, a simples sensibilidade ou capricho.

     Cheguei “aqui” por intuição e esta pode ser gratuita, como o é, na maior parte das vezes. Todavia, é notório como só se pode encontrar por acaso, por intuição, o que levou muito, mas muito tempo, trabalho, caminhada de procura de uma qualquer resposta
.
     A intuição abriu portas ricas de possibilidades, mas de outros tantos riscos. É o fio de labirinto que a alegria ilumina e a angústia ensombrece.

Reconheço cada vez melhor o quadro. Porém, tal reconhecimento não traz tranquilidade ou inocência. Obriga a avançar --- coragem --- ou obriga a recuar --- temor. De qualquer modo obriga a tomar uma atitude, uma reacção que jamais será igual a um hábito quotidiano. É muito raro encontrar uma porta desconhecida, é muito raro encontrar uma chave e saber abrir uma fechadura. Tudo isso é graça mas devida ao esforço, à reflexão, paradoxalmente acessível e impossível de conseguir. Há uma hora para a graça. Uma hora ou instante que não podem ser constrangidos ou exigidos.

     Por isso o meu “numeno” se multiplica, se desdobra, se aprofunda e, no entanto, permanece, enquanto numeno, intransponível e inacessível.

      Para mim, eu comigo, na realidade que sou eu mesma com todo o meu exterior no interior da minha consciência que nada toca e tudo transcendentaliza.

     O quadro “permanece”. Mas, tal como se eu raspasse a terra dura de um velho e conhecido caminho em busca do que se oculta, também ele se modifica lentamente. Todo o sonho de permanência se esvai, apenas se usa por comodidade porque a existência e intensidade do devir incomoda, desequilibra e inquieta,
.
    A graça atribuída as figuras, ao quadro, à contemplação, polariza-se e desdobra-se em mim. Ausentaram-se os símbolos tradicionais, as ninfas primaveris de Botticelli, as companheiras de Apolo, deram lugar a uma Maternidade de fecundante mistério. O quadro invoca a vivência em beleza, com brilho e alegria transfigurando a Vida.

     Mas, de que falo eu agora?...

     A que Mãe me reporto? Ou a que Filho?
      Reconheço a Mulher e a Criança por participarem de mim? Será isso por causa de uma simbiose incons­ciente e inicial da graça e de um Paraíso que para sempre perdi?...

      Será que me reporto a um arquétipo colectivo --- a Maternidade ---  através da simbologia do quadro que em mim se polariza? No fundo trata-se de um jogo com o imaginário colectivo e o imaginário pessoal sem que eu me possa dar conta da participação que tenho de ambos?...
        Projecto-me na mãe, ou na criança? Num Natal distante no tempo mas que reconheço estar “ali” a presentear-me uma festa da vida?

      O homem um animal de símbolos e de metáforas também. Tentar interpretar é sempre deturpar, dizer de modo analógico, tentar passar a intuição para o racional, o sentir para o deduzir.

      Ignoro como separar tudo isso. Ou se é possível mesmo separar. Há sempre um cordão umbilical por cortar
.
    Entre a imagem como símbolo e a minha intuição que, ora me prende, ora me afasta, o quadro torna-se mais vivo, mais real e igualmente, um obstáculo intransponível como é a intencionalidade --- foco de atenção --- da consciência.

    Afasto-me a cada momento e logo regresso. Com esforço ou sem ele, a contemplação é sempre feita de teias a fios inconscientes, laços e elos de cadeias subterrâneas, a unir e a separar do objecto artístico.

     Ao chamar objecto artístico ao quadro, não desejo retomar o estádio estético a ele passível. É possível transcender esse estádio, tornar a contemplação uma outra revelação de mundos ocultos, uma outra via do conhecimento.

       Que desejava o pintor revelar naquele quadro?

       Que causam ligam a sua hora de graça as minhas possibilidades de intuição?

       Quem são aquela criança e aquela mulher?

       A jovem seria um modelo idealizado, sem muita ligação com o real, ou a própria mulher do pintor? A criança seria seu filho colocado no colo dela num momento de amor e de graça? Ou seria aquela jovenzinha, uma escolhida especialmente por entre muitas jovens da rica burguesia da época? O modelo corresponde a uma vivência dela, só, ou com a criança, ou ainda do pintor ou de alguém que lhe encomendou o quadro?

      Com os seus modos tímidos e tranquilos, há grande serenidade nos gestos e no olhar. Todo um conjunto de hábitos, de pequenos objectos se encontra colocado lá, no seu lugar, na sua ordem secreta. O cesto de costura, o livrinho de missa ou de orações, o jarro, as flores sobre o armário... Tudo fala da uma existência que ali “permanece” roubado de um quotidiano agora perdido.

       O menino modelo, com o seu arzinho muito sério, como o de um velho sábio, participa da mesma serenidade. Seria ele escolhido pelo pintor, seu filho, ou colocado ali, naquele colo, por sua disponibilidade e singeleza?...

    Mas, não, será tudo isso e muito mais ainda. O pintor sonhou, meditou, recebeu talvez uma encomenda, uma ordem, procurou uma linguagem, revelar um mundo, imanente e, do mesmo modo, transcendente.

Tudo está ali, cheio de presença, de graça. Tudo está ali, sedento de divindade e de Absoluto. 

     «Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher, para que recebêssemos a adoptação de filhos». (Gal 4. 4-5).

     Eis a graça, a redentora graça, a manifestar-se no seio do quotidiano em situação, na liberdade da condição humana. Há pois uma transcendência do modelo feminino, da criança e do local. Tudo se universaliza, tudo se torna harmonioso na recepção humilde do dom divino.

     É a plenitude da Graça que tudo pode atingir. Dor, sofrimento, angústia, incerteza, nada faz parte desse privilegiado momento. E, notando ainda melhor, a iluminação não provém da mãe mas centra-se e emana suavemente da criança.

    Mas, guardemo-nos ainda, um pouco antes de examinar a criança do quadro. Há poucas horas ainda, vi uma jovem mãe com seu filho nos braços. Era um filho muito desejado, muito amado. Todavia, por contraste, por mais que observasse, não encontrei harmonia, qualquer graça suave e jubilosa como a que se patenteia no quadro. Havia gesto protector da mãe mas a degradar-se pelo cansaço, pela rotina... A criança, em vez de serena e doce, estava sonolenta, bebia o leite da vida quase sem dar por isso.

    O rostinho contraído e inexpressivo não irradiava nenhuma luz interior, nenhuma serenidade se colhia ao olhar o par
real, mais parecendo o cumprimento de um ritual obrigatório que um acto livre, disponível de Amor. Era a fecundidade da carne, mas a fecundidade do espírito também se poderia ali expressar.

   Tudo isso se degradava na vivência real, nada se podia vislumbrar de brilho ou beleza. Por trás da aparência, do visível, da imanência de tantos “dons” havia que procurar outra dimensão. Agora, no memento em que penso na cena que vi, posse recordar-me que a Graça existia ali. A presença imperfeita, a falha no olhar, tudo a que poderia ser ausência ou perda desaparece. Aprender a ver é tão difícil! Agora que nada vejo, sou capaz de compreender melhor, porque não atendo a pormenores sem interesse, não há nada que possa acrescentar e o essencial resta patente, muito mais vivo e brilhante do que quando examinava a cena.
   Incompletude da Graça, afinal, é o que alcanço captar. O artista no seu quadro era mais feliz, recriava fugindo do tempo, do espaço e libertava a Graça, universalizava o tema.
   Pela arte, pode haver um regresso as origens sempre iniciais, pode-se purificar o presente, re-ligar o cosmos numa outra forma de religião.
   E, mais uma outra vez, remeti-me para o quadro Sempre velado e descoberto na sua aparente simplici­dade. está a jovenzinha, ou a Virgem Maria, o arquétipo, o símbolo universal da renovação, da terra, da vida, enfim do Mistério a da Graça.
    Mas esta mulher não pode ser analisada só, separada da criança que está no seu colo. É a criança que faz a mãe. Sem aquela criança no colo, a mulher não teria coerência e o interesse do quadro desaparecia. A sua suavi­dade, a beleza irradiante e dourada, o seu mistério, tudo isso, deriva da criança. É a criança que fecunda a beleza da mulher, do quadro, da contemplação...
    Antes daquele quadro ser pintado, esboçado sequer, existiu um tempo anterior. A harmonia das figuras, dos objectos, da unificação de todo o símbolo exigiu tanta preparação e cuidado. Depois, no preciso memento, só a serenidade ficou, petrificada e impossível.

     Num gesto protector, seguro, o braço esquerdo da jovem sustém a criança. Esta está despreocupada, protegida, adaptada ao colo. Ambas as figuras revelam uma calma admirável, unidas por secretos laços. A jovem retira uma colher de leite da malga existente na mesa. O gesto é grave e gracioso ao mesmo tempo. A criança espera sentir o leite na boca dentro de breves instantes. Mas isso nunca acontecerá...

      Lá fora, há uma vaga aldeia, impossível, uma aldeia tranquila que mais se parece com um quadro pintado dentro do outro quadro...

     A janela quadrada ainda acentua mais o efeito do quadro, pois a curva da imagem se assemelha ao nosso olhar que deixa na penumbra todo o circundante...

    Sem se fitarem, ambas as figuras olham a mancha brilhante do leite, a colher imóvel, em cada pormenor há uma petrificação expectante. E, do conjunto, ressalta a síntese criada pelos laços da vida --- leite e alimento --- leite branco, pureza da fecundidade gratuita que os olhos baixos, velados de ambos, da criança e da mãe, tornam ainda mais misteriosos.

    E chegamos a um pormenor tão pequeno como curioso que o guardamos para o fim. Enquanto a mão da senhora se prepare para dar o alimento, a criança, com o braço esquerdo, imita-a vagamente. E, na sua pequena mão direita, o menino segura, inútil e pueril, como se fora um brinquedo, uma colherzinha bem pequena, tão pequena que, por certo não saberá, nem chegará a usar. É um brinquedo...
     Eis que estamos no âmago da cena. É a longa viagem que regressa ao seu início.

      A criança que brinca é o ser mais presente que existe na terra! Está cheia de graça, pureza sem mancha. A graciosidade dos seus gestos deriva mesmo daí. Irradia-a no menino do quadro com a sua colherzinha inútil em sua mão. Nenhum homem pode ser mais humano como quando joga, quando brinca. Nunca está tão presente, tão perto da beleza e da plenitude.

     O mistério do quadro revela-se assim, pela criança, polimórfica, densa de todo o poder da Graça. Sob esse poder, os sentimentos apagam-se para dar lugar a um júbilo novo, renovado e fresco.

Esta é a alegria que o artista captou e petrificou pare sempre num só instante.

     Repetimos toda a longa peregrinação realizada. Agora no sentido inverso. Voltamos a aldeia de “K”, ao cavaleiro Galaaz, a Jasão, a Medeia, a Jacob e ao Anjo, a Babel...

   A mulher foi, muitas vezes, mediadora, anjo, imanência de Graça... Porém quero radicar mais longe e profundamente toda a demanda, no Absoluto, em Deus!

       A busca da mais profunda sabedoria, a “sageza” infinita.

       Todas estas palavras não foram mais do que formas dizíveis do Verbo. Todos os caminhos regressam à Alegria do “Puer Aeternus” ---   Eterna Criança --- pois nada é mais perfeito do que Deus que brinca, pois nada é mais sério nem mais pleno de Graça.

     «A casa de meu Pai tem muitas moradas.... » (Jo 14,-3). Foi-nos indicada a senda, o meio, o mistério. O Júbilo magnifico da Graça está dentro de nós --- o Reino de Deus --- que o místico recupera quando entende o Verbo:

     Deixai vir a mim as criancinhas, não as afasteis. pois a elas pertence o Reino do Deus. Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele. Depois tomou-as nos braços e abençoou-as, impondo-lhes as mãos”. (Mc 10-13.16).

    O que é dizível pelo filósofo, já sofreu a degradação da palavra que o místico alcançou ultrapassar. O que é regido pela moral já sofreu a degradação da convenção social que o religioso logrou desprender-se na sua experiência íntima e religiosa. O que é regido pela beleza na obra de arte, é apelo do sensível, apelo por vezes mudo, porta que se entreabre para uma libertação que se inicia, um novo conhecimento que se promete. Gratuito. Para alguns...

     E, a cada passo da demanda, seja ela qualquer que seja, o risco e a graça, a liberdade e o livre arbítrio encontram-se, num mistério que se aceita mas jamais se entende.

     Todavia, ali, no quadro, a criança brinca com a sua pequena colher. Inutilmente, ela brinca...

De novo, remeto o olhar carregado de esperança para a visão do quadro. Um centro de outro olhar que de espelho passou a vidro. transparente a par onde pude espreitar outros mundos, outros conhecimentos que, pela minha razão, a lógica jamais aceitaria.

       Um cântico de alegria silenciosa brota, límpida e transparente. Por momentos, só por vagos instantes, a infância invade a vida, reconcilia-se com ela.

       É um instante de graça. A possibilidade da sua plenitude.

        O silêncio recupera todas as palavras, como se fossem migalhas espalhadas no caminho. O silêncio que existe no quadro e me fez falar, apodera-se de mim. Remete-me para outra demanda. A única que recupera todas as outras:

       A demanda do Absoluto!

 


 NOTAS:

[1] Carlos Eduardo Soveral, Jasão e Medeia, Livraria Tavares Martins, 1964,Merediano Universitário, 2.
[
2]
Obra atribuída a Tomás de Kempis, sacerdote alemão, embora muitos a considerem de autor anónimo do século XIII ou XIV.
[3] K é o personagem principal da obra, “O Castelo” e será através dele, que nos representa ou ao próprio Kafka, que entramos este mundo de Kafka.

[4] - Gravura tirada de http://employees.csbsju.edu/dbeach/images/Dore-Jacob%20Wrestling.jpg .

[5] - Description: Jason bringing Pelias the Golden Fleece. Side A of an Apulian red-figure calyx crater, ca. 340 BC–330 BC.
      Location:
Louvre, Department of Greek, Etruscan and Roman Antiquities, Sully wing, Campana Gallery (K 127)
      Photographer:
Jastrow (2006)
      fr: Jason apportant à Pélias la Toison d'or. Face A d'un cratère en calice à figures rouges du Peintre des Enfers. Apulie, 340–330 av. J.-C.

[ 6] - Gravura tirada de http://www.templaricavalieri.it/images/santo_graal_dipinto_di_edward_burne_jones_1857.gif .

[7] -Gravura tirada de http://www.digischool.nl/ckv1/literatuur/kafka/franz_kafka.jpg .