" As Metamorfoses do Mal "

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

     

 

O outro lado.

[ © Porto, Zona de Miragaia. Porta e fechadura antiga, 2006. ]

[ © Foto digital . Levi Malho]

 


 

 

 

 

 I - No fundo e à superfície

 

Que quem já é pecador / Sofra tormentos, enfim! / Mas as crianças, Senhor, / Porque lhes dais tanta dor?!... / Porque padecem assim?!...

Augusto Gil, Balada da Neve

 

 

    Apesar do tom comovido do poeta, há uma perspectiva da dor que encerra uma acusação contra Deus pelo mal que acontece, pois se esconde ainda, por trás do moralismo generalizado de que talvez nunca Augusto Gil tomasse consciência mas é a saída mais comum para a velha questão da dor e do mal.
    Convenhamos muito simplesmente que vivemos num mundo construído por homens e não por deuses e ainda trazemos o selo do passado, tal como já Aristóteles reflectia, é muito difícil afirmar que alguém é feliz. Uma pessoa só podia ser mesmo ditosa se as suas gerações também o fossem e evidentemente não seria inocente quem fosse castigado pelos crimes dos pais. Tal mentalidade remonta muito para além do judaísmo, derivando do tempo em que os trabalhadores laboriosos conseguiam boas colheitas e os ociosos não obtinham bons frutos. A comunidade tinha de os castigar e logicamente também Deus, pela moral de retribuição que os homens criaram, livraria os bons servos e castigaria os maus. A riqueza tinha o selo da aliança do divino com o humano. Mas é também uma excelente forma de desculpabilização nossa atribuindo a Deus a obra humana, como é a cidade dos homens em que se pretende aplicar as leis a todos, inclusive determinar pelos seus raciocínios qual a lei que se aplica a Deus e que papel representa na sua relação com o mundo.

    Afigura-se que não se respeita aqui a liberdade do Criador querendo utilizar para Ele as leis da criatura. O argumento da racionalidade é inaplicável, quer pela fragilidade das leis humanas, quer pela extrapolação da mesma para a categoria que transcende o humano e está fora da sua capacidade de entendimento. É certo que estamos a apostar num conceito de liberdade e não de racionalidade, mas terá mais bom senso afirmar a falta da fundamentação racional, psicológica, social da liberdade, seja qual for o contexto em que seja usada. Atemo-nos mais a uma necessidade da ideia de liberdade dentro de um argumento kantiano que a aceita por carência e limites da própria razão.

     É tão válido afirmar Deus pela racionalidade como negá-lo porque, de qualquer modo, são lhe atribuídos critérios antropomórficos reducionistas.

     A teologia de um Deus providencialista que pune os pecadores, mas deve isentar os inocentes, transita por toda as épocas. A ausência da consciência responsável diante do sofrimento alheio leva a lamentar o que acontece como se não houvesse uma partilha da Terra por todos os homens.

     Quanto tempo levarão os homens a tomar consciência do planeta ser a sua habitação passageira e da urgência do nosso testamento não legar tamanhos males que nos tornam amaldiçoados pelos herdeiros do futuro?

    Com maior ou menor dramatismo, temos escritores que se colocam na perspectiva de Augusto Gil mas a fundamentação dos seus argumentos denota que como a religião regressa em todos os tempos e também nos nossos dias.

A relação entre o sofrimento, os cataclismos, naturais ou provocados pelo homem, vem sempre levantar questões metafísicas e o exímio escritor português, Rui Tavares, com toda a lucidez, menciona:


    «As religiões ocupam um lugar central na grelha de leitura pós 11 de Setembro e, em consequência, na grelha de leitura que estava em vigência a 26 de Dezembro de 2001 (refere-se ao maremoto na Ásia)»
[1].

     É o mundo que temos que nos acorda e que cada vez mais a globalização nos dá uma perspectiva mais complexa. Sem os meios de informação que temos o impacto destes acontecimentos seria diferente. A maior parte dos comentadores deste tema não toma porém a atenção devida ao fenómeno religioso na perspectiva dos fundamentalistas islâmicos com todo o contexto em que a sua fé é vivida, nem ao novo mundo com todo o terrorismo que é um dado muito complexo. Para além da perplexidade, da compaixão, há a descoberta que esse flagelo pretende um uso novo para os media e dentro da «aldeia global» jogando com a multiplicação do mundo virtual.
     O mal e as suas consequências fragmentam qualquer imagem organizada do mundo e as informações desestruturadas misturam desordenadamente as maiores futilidades da vida de vedetas, com acontecimentos trágicos, anúncios de detergentes ou bebidas, descobertas científicas e cataclismos, facilidades de obter dinheiro contraindo dividas, desgraças pessoais, revoltas nas cadeias ou actos terroristas num infindar de informações que nos deixam perplexos e incapazes de montar um puzzle sem muitas interrogações sobre o que realmente «é» o nosso mundo.

   Se bem que os media têm de ter ética e não se toleraria uma liberdade completa
[2], o risco da manipulação está sempre presente e visível.
   Um fenómeno que brevemente teremos de considerar é que o mundo está a mudar também em termos geográficos e populacionais. A maior parte dos habitantes do planeta vive na China e na Índia e parece que o nosso velho mundo se esqueceu do seu irmão mais velho: o Oriente que não é um gigante distante ou adormecido. O mal tal como o Ocidente o encara tem de ser completado pelo entendimento do se pensa do outro lado do mundo.

 

 

 

  II - Um olhar sobre os outros

 

    Só há bem pouco tempo, é que tem surgido uma atenção compassiva pelas vítimas, quer do presente, quer do passado, num clamor um pouco conflituoso em busca de culpados que nos isentem. Durante muitos e muitos séculos de história reinou a indiferença, o hábito de perceber a dor alheia, do bárbaro, do selvagem ou do estranho, de um modo distante e ausente. Recordemos as lutas tribais culminadas com sacrifícios humanos e canibalismo, as conquistas das cidades na Antiguidade, com todas as suas atrocidades, os seus habitantes passados a fio de espada, as orelhas e os narizes cortados, as mulheres e as crianças mutiladas e mortas. As cruzes ladeavam os caminhos que levavam às cidades gregas e a Roma. Era a morte mais aviltante mas também se procurava que fosse a mais dolorosa. A aceitação «natural» da escravatura através dos tempos, a venda de negros e «selvagens» como escravos e a condição de «raças inferiores» está ainda bem perto de nós, ou toma outro modelo mais aceitável e consentido, bem como a terrível fome e a devastação da Terra que são um grito sem voz que nunca tem resposta.
    As metamorfoses do mal, manifestam-se com mais clareza à distância do que à nossa volta. A preocupação pelo «facto» histórico é um processo de afastamento da realidade do quotidiano que tanto pode trazer resultados positivos como negativos. Precisamos de nos proteger da nossa própria cumplicidade inevitável. O mal que se espalha sem que se dê conta disso, com uma insensibilidade defensiva contra o Outro, seja ele quem for, é o que menos se vê, ou ainda não se quer ver, ou pior, recusamo-nos terminantemente a ver.

    Numa sociedade de sucesso, a doença é vista como uma derrota, o doente é um derrotado ou culpado moral e socialmente, como o era na época em que se atribuía ao castigo dos pecadores. A ideia de que uma atitude «positiva» face à doença, com força de vontade e auto ajuda tudo pode curar, é denunciada por Susan Sontag numa corajosa postura contra as concepções punitivas das enfermidades
[3].
     O ostracismo dos doentes e de todas a pessoas atingidas por males próprios da condição humana, velhice, miséria, perturbações mentais, marginalidade e outros é próprio da sociedade «ligth», do homem «cool», céptico e descontraído, onde a banalidade e a busca do prazer imediato permitem uma escalada cada vez mais veloz em busca do prazer imediato de viver o minuto ou o segundo.


   «
O que é que se mostra ainda capaz de espantar e escandalizar ? A apatia corresponde à pletora de informações, à sua velocidade de rotação, logo que é registado, o acontecimento é esquecido, varrido de cena por outros ainda mais espectaculares [4] ».

Há um silêncio cúmplice quase que invencível dos media, dos governos, de tudo o que se pode chamar poder acerca da realidade sem filtragens. Separam-se as cidades em guettos, bairros, condomínios fechados, favelas, bairros de lata, tanto para os «alfa», como para os «épsilones» como para os «sem voz».
     O filósofo lituano e judeu, Emmanuel Lévinas (1906-1995) que sofreu na pele a experiência terrível dos campos de concentração, quer na Alemanha, quer na Bretanha, apercebeu-se das consequências de uma ética centrada na consciência do «eu» e dos riscos que um tal pensamento pode criar, até fazer desaparecer o lado humano do outro, esse Outro que será a sua «paixão» como filósofo da «alteridade e da responsabilidade». Era ele quem insistia em dizer que; «o mal não tem rosto» no que tem razão, porque todas as máscaras com que se pretende ocultá-lo são jogos perigosos, invisíveis nos seus pequenos meandros, incapazes de abalar as consciências que não estão atentas a esses crescentes dramas internos mas que, no seu todo, são capazes de mudar o rosto do planeta. A expressão «
o dia que mudou o mundo» pode aplicar-se a diversos acontecimentos históricos, mas o que muda mesmo é a mentalidade acerca do mundo e essa é sempre lenta nas suas metamorfoses por mais protestos, avisos e reflexões de uma dada época ou cultura.
    É à má consciência deste tempo que não encontra paz que Lévinas atribui também um «tempo de prestação de contas. A má consciência no fim de milhares de anos de gloriosa Razão, da Razão triunfante do saber; mas também no termo de milhares de lutas fratricidas, políticas
[5]
».
    Há muitos séculos já, Santo Agostinho (354-430) sentia que estava a viver o fim de um tempo, quando, em 410, viu a invasão de Roma pelos visigodos e, pouco antes de morrer, presenciou o cerco de Hipona pelos vândalos. Teve a primeira visão cristã da História com três períodos antes de Cristo e criou a sua concepção da “Cidade de Deus” som a crença de que a “cidade dos homens” era a preparação para a Pátria verdadeira. A Igreja traçaria a ponte entre o mundo terreno e um outro perfeito, no qual estaria a verdadeira morada do coração inquieto do homem.

     Entretanto, visto que todos, bons e maus, tal como o trigo e o joio, infiéis, predestinados e heréticos, se encontram confundidos na Casa do Senhor na Terra, a unidade dialéctica das duas cidades, só se realizaria nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no inferno.

    É mais uma grande utopia unitária da história, porém mais marcadamente uma teologia do que uma metafísica filosófica, será mesmo uma das variantes das teorias da História que se encontram, por exemplo, em Hegel, (1770-1831) com toda a sua riqueza dialéctica e teleológica do devir histórico pressagiado pela promessa de liberdade trazida por Cristo mas que só se cumpriria pelas mudanças e reformas religiosas.

   A filosofia de Hegel pode ser vista, em parte, como uma teoria evolucionista da teleologia do Espírito que anima os povos, os heróis e «sopra onde quer», ou seja, o Espírito “Santo” que se realiza pelo particular mas com um fim universal. A sua visão está muito para além do presente: «
o que os povos e os indivíduos procuram e obtém na sua activa vitalidade, é o seu próprio bem, mas ao mesmo tempo são os meios e os instrumentos de uma coisa mais elevada, mais vasta que ignoram e, inconscientemente, realizam[6] » Porém quantos antes ou depois de todos os autores, sentiram e revelaram a mesma inquietação e constatação?
   A ausência de valores é o que parece prevalecer agora. A inquietação esconde-se mal no seio da sociedade que se recusa pensar e todavia está “perfeitamente” organizada. Os antigos valores não foram substituídos por outros que supostamente dariam fundamento a um pensamento reflectido e a uma acção consequente, mesmo que os meios e fins não fossem dos melhores. Simplesmente há uma privação de valores e esta ausência seria tão grave que fez Lipovetsky escrever sobre o vazio da nossa época, «com a profusão luxuriante dos seus produtos, imagens e serviços, com o hedonismo que introduz, com o seu clima eufórico de tentação e proximidade
[7]» para satisfazer o apetite da sociedade de consumo, numa lógica de sedução que oferece tantas imagens e em tanta quantidade que se tornam incapazes de serem claras numa amálgama de possíveis escolhas que dá um efeito de equivalência na informação, nos valores, na crescente descontracção e indiferença que chega a letargia. Não temos nem tempo de sentir, muito menos de reflectir. Os acontecimentos são esquecidos, os livros vendidos, as pessoas desaparecem e surgem outras a substitui-las no estereotipado sistema social. Se reina a lógica da indiferença, é inútil o apelo ecológico, regionalista, o patrimonial seja lá do que for. Não é preciso procurar o mal no exterior da sociedade, está no interior e mina por dentro insidiosamente.
     No fundo, o homem da pós modernidade usa tantas máscaras quantas as alternativas que possam adaptar-se às suas representações dos múltiplos papéis, mudando de personalidade como de roupa, para manipular os outros e fundamentalmente para manter a sua narcísica imagem. Para que tudo gire sobre rodas, o burocrata tecerá a mais temível rede de barreiras impeditivas de uma aproximação humana dos cidadãos, que serve para se poder chegar até à negação do Outro como um Outro eu, o torna «apenas» numa coisa, algo que se consome, usa, gasta e até se pode exterminar.

 O horror banalizou-se, a imagem minimizou o dano que poderia trazer o excesso de sensibilidade. Pelo contrário, a sensibilidade é mal vista, como se fosse uma doença, uma fraqueza. Por isso: «
Na nossa sociedade as emoções são desencorajadas. (…) … tornou-se um ideal pensar e viver sem emoções. Ser “emotivo” passou a ser considerado sinónimo de doente ou de desequilibrado [8] ».
    O homem medieval tinha uma emotividade espantosa, completamente distante do aceitável de hoje, sentia com toda a veemência a dor e a alegria, o ódio ou o arrependimento, tanto quando chorava copiosamente numa prédica religiosa, como fazendo justiça por suas próprias mãos.

      Agora, com o recurso à imagem, o mal tornou-se num bem de consumo. Vende-se e consome-se como um outro produto qualquer. O mais aterrador é que a tentação nos atinge a todos. Habituamo-nos a “ver em directo” as guerras, os carrascos e as suas vítimas, as lamentações dos outros com toda a sua carga de dor. Já não nos deixa gelados de terror, ou com lágrimas dos olhos. As emoções fortes só surgem com espectáculos de multidões bem organizados onde o pensamento reflexivo não se pode exercer e apenas a massa humana que não pensa, só sente, berra e causa imensa algazarra diante de «artistas», mestres de técnicas e cadências de sons, luzes e vozes até dos sub liminares indutivos de hipnose colectiva e em ambientes propícios a atitudes fora da norma padrão e sem limite ou sentido. Os danos colaterais e as armas inteligentes nas guerras são formas hipócritas de designar as vítimas que, até há pouco tempo, eram aceites como uma inevitabilidade decorrente de um bem que sucederia ao mal.

     O estigma das vítimas que são inocentes tem poder suficiente para acordar a culpa? O horror das faces mutiladas, deformadas estigmatiza o doente, o ferido, o sobrevivente, tal como o leproso, o sifilítico de outrora e as imagens suavizam-se, como muito bem escreve Susan Sontag, para mostrar que até na tradição iconográfica dos mártires cristãos se impôs um duro «cisma» entre o rosto e o corpo. Este pode-se apresentar ferido e em ruína, tal é o caso de tantas imagens de santos, São Sebastião, Santa Ágata, São Roque, Joana d´Arc mas, apesar disso, há que manter um rosto puro, imaculado, alheio ao mal que sofre. Por isso acontece que: «Por trás de certas considerações morais, ligadas à doença, escondem-se julgamentos estéticos sobre o belo, o feio, o limpo e o sujo, o conhecido e o estranho ou insólito»
[9].
    Em todas as épocas, a doença, como símbolo do mal, pode provocar repulsa, afastamento, ou a visão romantizada ou ridicularizada de uma fraqueza ou languidez propícias apenas a determinadas moléstias, como antes era a tísica e agora é a depressão, as perturbações mentais, a Sida, o cancro que estigmatizam os pacientes, resignados ou envergonhados, que procuram esconder o seu sofrimento bem real mas que não é aceite sem humilhação e desprezo pela atribuição de culpa, fraqueza de animo da pessoa, pela falta da sua atitude positiva diante da vida, porque não se entende a abulia ou o desânimo numa sociedade de sucesso.

    A culpa do mal cai com um peso terrível sobre o doente já desanimado. Uma sociedade onde se cultiva a eterna juventude e a alegria, o aturdimento pelo gozo, as energias negativas substituíram o mau-olhado, as receitas de auto confiança e auto ajuda tornaram-se uma forma de negar o mal ou o condenar quem o declara sofrer.

    Hoje a interrogação é sobre a possibilidade de continuar a acreditar num optimismo que aceite sempre que, até dos males piores e inimagináveis, poderá sair um bem melhor?   

 

 

III -  Espelhos imperfeitos 

 

    A literatura, pintura e outros movimentos estéticos possuem um vago pretexto para muita denúncia supostamente moralista ou mesmo eficaz do mal e da dor. Mas há uma certa cumplicidade com os geradores do mal, porque se tornam metáforas mais capazes de ilibar e isentar aparentemente o artista da culpa, sem deixar de o beneficiar muito bem com isso em muitos casos, tal como o grupo a que pertence, restituindo um entendimento social harmónico pela expurgação do mal que continua vivo mas remetido de novo para o inconsciente ou para uma exterioridade desculpabilizante.
     A obra de arte pode ser catártica para a colectividade pela atribuição da culpa a outro e consequente bem-estar geral. Depois de uma exposição de quadros denunciadores de desgraças e alienação, sabe bem um bom jantar num ainda melhor restaurante. O cinismo existe, apenas não se dá conta dele, nem do terrível cepticismo moral.
     Nunca como nos nossos dias se falou tanto das vítimas mas tal não se traduz no minorar da agressividade e antes num risco do aumento dela.

   O contributo dado ao problema da violência pelo polémico René Girard, francês, nascido em 1923, antropólogo que tem uma relação complexa com a religião judaico cristã, tem aumentado progressivamente. Ao longo de trinta anos que escreve sobre os mitos e a religião, para aprofundar o tema da violência do sagrado e da mensagem bíblica. É como que a contra gosto que aceita, embora seja igualmente polémico, muito do que a psicanálise trouxe para estudo da mente humana e das sociedades, mesmo já sem o peso da ortodoxia freudiana, e não é tão isento, como procura parecer do contributo das ciências de hoje. Provavelmente o que realmente acontece e tanto interesse desperta à sua volta é a revitalização da mensagem cristã, na sua faceta inédita contra a violência como a de «dar a outra face» o que é o grande desafio cristão na sua espiritualidade.
     Interrogamo-nos porém sobre toda a luta pela não violência que no Oriente se leva a cabo e não está fundamentada na religião cristã.

     A conexão entre os temas da mimética do desejo, do «bode expiatório», das vítimas e da violência confrontada com o sagrado, mostram-se tão presentes em todas as épocas que nos aproximam antropologicamente dos antigos sacrifícios rituais e dão uma nova visão das sociedades e das motivações dos nossos comportamentos. Tudo isso afinal não são mais do que metamorfoses do mal tal como ele se esconde e espreita, seduz ou assusta, liberta uns para tornar outros vítimas.
    Assim se descobre que o mal está entre nós, pode ser um de nós, somos nós todos que o ocultamos. É uma forma de escapar à realidade que assusta e pode ser camuflada por uma «justiça» em nome de todos sobre um culpado.

    O que daí advém e o que é mais visível e mais violento, é o contraste entre o conformismo geral e a denúncia incidindo sobre um escolhido e acusado, em nome de todos, seguindo-se possivelmente uma «caça aos caçadores» sem diminuir o ódio e a passividade hedonista que nos embala e em que nos envolvemos confortavelmente apesar da nossa cada vez mais aguda consciência do erro.
    Já acontecera o mesmo com Vítor Hugo, pela voz de Jean Valjean, o condenado das galés, “, ao escrever: «Depois de ter julgado a sociedade que o fizera desgraçado, julgou a Providência, que fizera a sociedade, e condenou-a também"
[10]
   Verifica-se a mesma estrutura apontada anteriormente a Augusto Gil e o pensamento comum em ambos apesar de pertencerem a contextos sociais afastados e relatarem temas distintos.
     Estamos sempre diante do problema que tanto angustiou Dostoievski e o fez interrogar-se também acerca do sofrimento dos inocentes, especialmente das crianças, na sua imortal obra, “Os Irmãos Karamazov” (1879-1880), o seu último grande romance, terminado pouco tempo antes da sua morte, em São Petersburg (1881).

     Hoje encontramos influências e citações deste grande pensador de tal forma espalhadas e em tão grande número que demonstram cabalmente como as suas ideias foram relevantes para a mentalidade de hoje. “Os Irmãos Karamazov” é uma das maiores e mais profundas criações literárias de todos os tempos. Desvenda com espantosa profundidade a alma humana, tal como já fizera em “Crime e Castigo”. O autor debate de uma forma sublime as infindáveis dicotomias da natureza humana, revelando a luta entre as forças do Bem e do Mal. Diante de um pequeno castigado por ter batido no cão de um senhor, fechado numa masmorra e depois perseguido nu por uma matilha de cães, defronte da mãe desesperada, Ivan Karamazov encontra o maior obstáculo e interrogação na crença num Deus «que permite um mundo onde há crianças que são torturadas? Se Deus é bom, como pode permitir o sofrimento dos inocentes?»
[11] .
     Só que se trata, mais uma vez, da responsabilidade do homem e do mal que este é capaz de ver, denunciar e praticar, sem com isso sentir que há uma terrível cumplicidade entre todos e que, remeter a responsabilidade para Deus, é usar um falso argumento, apaziguador das consciências atormentadas. Afinal, em sua profunda agonia e tortura moral, o autor russo tem ainda uma relação com Deus porque: «No mais profundo da condição humana repousa a espera de uma presença, o desejo silencioso de uma comunhão. Nunca esqueçamos: este simples desejo de Deus é já o começo da fé»
[12] . É isso que se sente ao ler as terríveis palavras que ele escreveu: «Então, se Deus não existe, tudo é permitido».
   A morte de Deus arrasta consigo inevitavelmente a morte do homem. Agora toma um sentido terrível a resposta de Caim a Deus quando o interroga sobre o seu irmão Abel: Que tenho eu com isso? Por ventura sou eu guarda de meu irmão?

   O eco dessas palavras chegou até estes tempos, como se fosse um espelho imperfeito onde todos nos reflectimos.

 

 


 IV - Improváveis Primaveras e poucas andorinhas

  

 O mal pode insinuar-se de tal modo que se torna invisível e essa é uma das formas mais terríveis que toma de tal modo que nem se suspeita dele. Não se diz que o «hábito é uma segunda natureza?» e quantos erros a tradição conserva sem sequer damos conta disso?
  Com René Girard
[13] poderíamos analisar a relação entre vítima e algozes de modo diferente porque se dá a inversão da relação da inocência e da culpa, entre vítimas e carrascos e isso é a pedra angular de inspiração bíblica que está presente em toda a história. A violência hoje deixou de ser uma forma institucionalizada de rituais contra o mal, mas continuam, embora sem a presença de ritos, a haver bodes expiatórios, que tornam os grupos mais coesos e dão segurança a uma normalidade do quotidiano que substitui a antiga noção de pecado. O mal é polarizado para grupos ou figuras externas que apagam a possível responsabilidade pelo mal real. É mais uma metamorfose do mal que se oculta embora continue a actuar e bem presente.
    O famoso psicólogo e fisiologista americano, William James (1842-1910) citava o exemplo da dama sensível que se debulhava em lágrimas no camarote do teatro por causa das desgraças fictícias representadas no palco e nem pela mente lhe passava sequer a ideia de como sofria realmente o seu cocheiro a tiritar de frio, lá fora no meio da neve, à espera que ela acabasse de soluçar romanticamente, para a levar bem aconchegada para casa, satisfeita porque se tinha feito justiça e a ordem social se restabelecera-se no palco e os castigos e prémios tinham sido distribuídos.
     Os pobres limitam-se a uma resignação feita de hábito, como só os desgraçados conseguem aguentar e que o já citado e chamado «pai da Psicologia, nos Estados Unidos da América pelo menos, Willam James, explica como a força do hábito é a causa dos pobres pescadores, em frias noites de temporal, irem para a sua arriscada faina, vendo como dormem felizes e inconscientes todos os outros, no conforto dos seus lares.

    O hábito das desigualdades sociais confunde-se com o conformismo, mas este tem ainda uma certa consciencialização ausente na repetição das tarefas e inserida nas condições sociais em que cada um nasce. Todas essas profissões de risco, degradantes, humilhastes no mundo desleal e mimético, dissimulam-se no habito de olhar o mundo, interpretando-o sem reflexão nem capacidade de actuar. A divisão das tarefas é exercida sob o triste manto do hábito social que inibe toda a rebelião. É simplesmente a rotina de repetir sempre as mesmas tarefas e não pensar como todos podiam mudar a situação que não leva à insurreição
.
    É aos olhos dos homens que a relação crime e castigo se emprega e depois de dirige a Deus em prece, passando rapidamente para a acusação de Deus visto como a causa de todo o mal. Mas a liberdade do homem deveria ter o peso da responsabilidade também.

    No poema dos nossos tempos, Bertold Brecht, (1898-1956) insiste na questão do hábito: “Nada é impossível de mudar” é o mesmo tema que o poeta canta mas tentando despertar os adormecidos:

«Desconfiai do mais trivial na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural e nada deve parecer impossível de mudar».

    Temos aqui toda uma revolta contra o hábito visto como um terrível mal que corrói as sociedades, os corpos e as almas, mas raros foram os que se deram conta disto.
    A desordem repentina causada por um terramoto, uma guerra, uma horrível cheia, altera a rotina e verificamos, de repente que o mundo não é a casa segura que nos habituámos bem mal a considerar. O mal que acontece aos outros atinge-nos e procuramos uma causa natural ou moral. Se da primeira estaremos em parte isentos de culpa e só não nos isentamos do que se pode reparar, na segunda, o mal moral é bem nosso também pois somos indiferentes telespectadores, leitores ou o que quer que sejamos à distância que em todos os sentidos que nos protege.
    Nos mais antigos escritos bíblicos, babilónico e egípcios, a culpa dos males que as pessoas sofriam vinha do Céu, para expiar os seus pecados, era castigo divino, como é o episódio das cidades de Sodoma e Gomorra, destruídas pelo fogo do Senhor e tantos outros casos que levaram à interrogação da culpa ou inocência dos habitantes mortos em Lisboa, quando foi destruída pelo terramoto, fogo e maremoto de 1755, de que agora se voltou a falar, revisitando as interpretações do acontecimento.

    Ao compararmos os modos de entender as catástrofes, entramos na compreensão das mudanças do pensamento político, económico, nacionalista e cada vez mais se centra tudo isto à volta do enigma religioso que parecia afastado, mas que renasce com os fundamentalismos, as seitas, toda a estrutura flexível do “New Age”, quer no Oriente, quer no Ocidente e actua com extrema força e pertinência.

    As preocupações secularizantes não têm poder de afastar este fenómeno que tanto atinge massas como os próprios intelectuais embora estes, por vezes, se queiram manter ausentes.

 

 

 

 

 V -   Por caminhos impossíveis

 

      Os teólogos e os filósofos trataram sempre o Bem como algo ontologicamente superior a tudo. Porém nunca o investigaram com base em acontecimentos humanos reais, concretos como os que se podem encontrar quanto ao mal. Os romancistas, ensaístas, dramaturgos, tentaram mais do que quaisquer outros, trazer ao proscénio da palavra realidades vividas e depois desvendar aí a felicidade que o bem traz.
    O mal tem um tratamento muito diferente e talvez ainda mais complexo.

   Diante do terramoto de Lisboa, Voltaire, Kant e tantos outros escritores, dedicaram folhetos, poemas, milhares de páginas de explicação e perplexidades que não se renovariam hoje com a mesma mentalidade, face ao «11 de Setembro» ao «tsunami asiático» ou à destruição de Nova Orleans.

   Em busca de respostas, Susan Neiman
[14] procura estabelecer um paralelo entre o olhar dos pensadores do século XVIII e dos nossos dias diante do terramoto de Lisboa e a Shoah, ou extermínio dos judeus, conhecida por holocausto e a sinistra «solução final».
     Entretanto a mentalidade mudou. De tal modo que, para Claude Lanzmann, o realizador do filme com este nome, Shoah, o horror do extermínio cruel desta palavra não tem tradução possível. «Lanzmann inventou a Shoah como Newton inventou a teoria da gravitação», é o que afirmou Arnaud Desplechin jovem realizador francês famoso que é representante de uma nova arte cinematográfica e reveladora de um mundo novo da criação. A denúncia de Lanzmann não é desprovida de amor à vida e incita a uma resistência contra os riscos do esquecimento para que algo tenha sentido humano.

    Realmente o que acontece agora, é uma lenta e perplexa tomada de consciência do desconhecimento do próprio homem, da dicotomia natureza boa ou má do homem se diluir e não haver fronteiras entre os homens porque se põe em causa a sua natureza.

    É um problema escamoteado por diferentes perspectivas, mas nem Rousseau, nem Hobbes, podem ser chamados hoje a dar uma resposta como têm sido. A ciência tem demonstrado que o homem adquire tudo aquilo em que se torna. Não se pode já remeter para o instinto nem para qualquer outro conceito a explicação do que torna o homem humano senão a educação e a sociedade. De certo que a carga hereditária é um factor, mas só reage dentro de um contexto social. Nem o bom selvagem, nem o «lobo do homem» explicam o que é aprendido, adquirido, actuante. Mas este complexo problema insere-se ainda numa ambiguidade que terá de durar muito tempo.
     O esforço de Neiman em esclarecer o problema do mal é excelente e procura ver como, a partir da secularização do século XVIII, os intelectuais equacionaram o tema. Se bem isso remonte a Platão, a Santo Agostinho e outros, nos nossos dias cada vez mais autores e filósofos se debruçam sobre a questão a secularização deu uma perspectiva diferente ao enigma. A autora preferiu colocar a ênfase em Sade, Rousseau ou Voltaire, que estão bem mais presentes no trabalho, do que o rigor de Kant, Hegel, ou o contributo de filósofos como Kierkegaard, Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Lévinas, Martin Buber, Paul Ricoeur e tantos outros que meditaram sobre a questão do Mal e os terríveis acontecimentos que marcaram tragicamente a história.

     Teremos aprender a olhar de outro modo o mundo, abandonar um certo etnocentrismo ocidental cego e começar a alterar o nosso pensamento incluindo nele novos dados sobre o Oriente, e insistir nessa alteração. Afinal estamos na era global mas não temos sempre com a noção de envolver na «aldeia global» todo esse mundo populacional imenso que se concentra nesses países Orientais com todos os seus valores e crenças. O fundamentalismo religioso pode ser perigoso mas não deixa de ser aterradora a superficialidade religiosa e o cepticismo «correctamente literário e político» que se difunde na velha Europa.
   As causas religiosas que estão por trás disto são aterradoras. Temos uma porta aberta para o vazio e outra para o irreal através de todo o fascinante mundo virtual que nos podem arruinar o bom senso, que nunca é muito, e o sentido do relativismo e das distâncias. O fanatismo e a ausência de pensamento aliam-se numa cumplicidade que nos prende, pois vemos o risco da repetição e a inutilidade do grito: «Nunca mais!», lançado pelos judeus, ser ineficaz.

   Os genocídios do século XX aterrorizam e merecem que cada vez mais se aprofunde o sofrimento sob as metamorfoses da dor. O genocídio dos arménios, os gulags na Rússia, (1918-1956) as mortes nos campos de concentração pela fome, escravatura e tortura silenciadas pela frieza do regime soviético, o extermínio crudelíssimo na China de Mao e a Revolução Cultural, estão ao lado do fanatismo dos “Khmer vermelhos” de selvática memória no Camboja e tantos outros, são de uma tal dimensão que tornam a lista na vergonha do Homem e a sua perplexidade.

     Há um certo complexo de culpa pela exaltação dos valores e teorias marxistas que leva a anatematizar o nacional-socialismo e o nazismo em detrimento de outros horrores do comunismo e outras ditaduras.
   Depois de tudo isso, a relação entre justiça e castigo, mal e bem, tem de colocar em relevo o que mais importa, o sofrimento e especialmente o sofrimento dos inocentes, as condenações do homem em nome seja do que for. O mal foi sempre um enorme desafio para os teólogos e filósofos. Qualquer que seja a teoria, a explicação, tudo o que se possa colocar na palavra, não passará de Verbo e nunca justificará o que acontece na vida real, no quotidiano, nas sombras que nos envolvem a todos. A vocação do homem acorda toda em todas as pessoas na descoberta do seu destino.

   A dificuldade da resposta é também a da busca de salvação. Gabriel Marcel (1889-1973) foi um dos filósofos que se expressou no teatro para tentar se afastar dos ensaios teóricos e das teses abstractas. A melhor resposta seria a existencial e emocional diante do Mistério do mal, da solidão e de todo o sofrimento e por isso afirma: «
O meu teatro, é o teatro da alma no exílio, da alma que sofre a falta de comunicação com ele própria e com os outros [15]». O mal, vivido e representado, aponta para o Outro na mesma perspectiva do «Rosto» e da responsabilidade que se agudiza em Lévinas e Buber (1878-1965) na busca de um «Tu absoluto» que se dirige a um diálogo com o transcendente.  
    Em todos os filósofos, particularmente em Gabriel Marcel, na sua obra “Jornal Metafísico” há a noção do perigo de transformar o Mistério em problema e de se degradar e perder em conceitos e abstracções em vez de retomar a intuição primordial da coexistência e do mundo com o outro. Pensar no Outro é bem diferente de pensar com o outro e viver com ele.

 

 

 

VI - No enigma da resposta

 

      No livro sapiental de Job, este, enquanto feliz, tem uma relação sem conflitos com Deus, digna do maior louvor. Parece representar a harmonia de um paraíso na Terra e a aliança entre o homem bom e o seu Senhor que o cumula de bênçãos e só castigará os prevaricadores. Tudo é demasiado simples para a complexidade do mundo real do homem que depressa se revela com uma série de acontecimentos catastróficos para o bom servo.
   De repente, tudo se esvai! O Senhor aceita a aposta com Satanás e, posto à prova, Job reage primeiro com belas palavras:

    «O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou, bendito seja o nome do Senhor». Job 2-3-21.

     Porém ainda vai ser mais fortemente tentado e a última prova é a mais aterradora, a doença na sua degradação, exclusão social e solidão, hoje tão evidentes no afastamento dos doentes do convívio social, da família, para a frieza dos hospitais, clínicas, lares, tal como outrora a legião dos leprosos e outros era levada para fora da comunidade.
  Em páginas admiráveis, Paul Claudel, (1868-1955) na sua peça de 1892 :  «La Jeune Fille Violaine », depois reformulada e traduzida para português já com o título « Anunciação a Maria », o poeta aprofunda o mistério do mal através do sofrimento dos inocentes e a interrogação sem fim do plano de Deus e dos homens.

 «Talvez se deva combater, forçar o diálogo (com Deus) recusar ser levado pelo vento como uma chama. Talvez seja preciso, como Job, forçar esse Deus, ser como ele «um justo ferido e escandalizado até ao mais profundo do seu ser» e que, numa elevação de si «vomita as suas entranhas» com o risco da decepção de receber como resposta um «catecismo da Confiança, um apelo ao «abandono» [16] .

    A lepra misteriosa que atinge a inocente jovem tem muita analogia com a prova que toca Job e tantos de nós. Não se trata de uma injustiça, nem de um castigo, nem sequer se pode ter a certeza de ser uma prova seja do que for para nós mesmos, mas sim é o mal que nos faz sofrer na nossa condição humana que recebemos tão gratuitamente como a perdemos. Aceitação e  naturalidade são que nos faltam. Os animais aceitam o presente como um dom mas nós sabemos que vivemos num outro mundo, um mundo construído por nós, com um passado, um presente e uma morte futura e são os homens os guardiãos desse novo jardim que habitamos de passagem sempre com o perigo de acreditar que vamos permanecer lá eternamente e a morte é assunto dos outros.
    Assim nos avisa a jovem Violaine, ao dizer simbolicamente :

     «O que se pede a uma flor /Senão que seja bela e perfumada um minuto, e depois, pobre flor, tudo acabará. A flor é breve, a alegria que deu por um minuto não pertence ao mundo das coisas que têm princípio e fim»[17].

   Quando a traição do corpo ocorre, isto é, a doença, que nos torna impuros e nos expulsa até do nosso tecto, a revolta é o outro rosto de Job, tanta vez oculto pela tradição que o apresenta como modelo: «Pobre como Job, ter a paciência de Job».
    Não é esse o fio condutor para entender Job. Ele é também o orgulhoso da sua piedade, o rebelde acusador de Deus da sua desgraça, já que, sendo inocente, se lhe afigura que só merecia bênçãos e graças, prosperidades e abundâncias. A perda da sua riqueza e ventura, leva-o a uma lamentação muito própria só de quem tudo teve e tudo perdeu. Mas a doença é uma das formas mais tristes de pobreza e de degradação.

   Em todos os tempos, as úlceras de vergonhoso aspecto, como no caso de Job, os leprosos e agora tantas outras doenças e males, além da tristeza e da dor causadas pela moléstia, causam a dor da humilhação, do desprezo, do afastamento de todos. As palavras «morreu de cancro» tornam-se suavizadas quando se diz que morreu de doença prolongada, os cegos, tão desprotegidos face às tecnologias, são os invisuais, os autistas, os surdos-mudos são alguns dos “diferentes”, e assim se esconde nas máscaras obrigatórias, um sofrimento interiormente vivido, que podia libertar-se pela aceitação do desigual. Com simplicidade os povos primitivos podiam integrar as crianças “diferentes” em tarefas que eram bem capazes de realizar. A padronização e o ensino único vieram discriminar subtilmente o que antes era integrado no seio da comunidade sem burocracias. Agora, exige-se uma normalidade massificante, num ensino que devora todos os que entram nas «gaiolas doiradas». No fundo, devíamos reconhecer que todos somos profundamente diferentes entre nós, com as nossas infâncias, pequenas manias, os nossos hábitos, as recordações que reinventamos até de nós próprios.

    A negação do Outro como alteridade é o primeiro passo para a perda da dignidade do ser humano, o risco da total falta de humanidade até ao ponto de a roubar por completo e o extermínio do outro reduzido com toda a sua lenta degradação, passo a passo, ordem a ordem, a um puro acto burocrático, frio e calculado como foi o Shoah.

   A culpa dilui-se na teia do cumprimento de ordens, no afastamento na acção directa, na estratégia estudada em gabinetes fechados, que depois se mecaniza e se torna tão eficaz quanto menos se procura entender o que sentido das ordens. Um ser humano, quando se lhe nega essa condição, pode ser um número, uma coisa, algo a eliminar. Nisso estamos todos arrepiantemente envolvidos, porque realmente os genocídios não acabaram, as valas comuns estão cheias de irmãos nossos, esquecidos e anónimos.
      Na sua obra, Lévinas tenta criar uma nova forma de responsabilidade imperativa entregue por esse rosto que se nos oferece. É um novo imperativo categórico que vem de fora e se afirma na face que nos diz: «Eis-me!» e somos nós o seu espelho, na dupla realidade do rosto humano presente e na sua transcendência. O imperativo tem algo de kantiano mas Lévinas procura outra dimensão porque,  para ele:

      «A ordem ética não é uma preparação mas a própria ascensão à Divindade. Todo o resto é quimera»[18].

     Por isso a máscara, mesmo invisível para quem a usa, tanto como para quem a olha, é a forma de suportar a dor alheia e esconder a nossa, ambas inaceitáveis.
  Muito tempo atrás, Paul Claudel, com a sua conversão ao catolicismo, numa súbita iluminação no dia de Natal, na bela Catedral de Nôtre-Dame de Paris, tornara-se num escritor incómodo, muito criticado e numa posição difícil até para a sua própria serenidade diante de um século de descrença em que vivia. Porém, durante cerca de trinta anos, tornou-se leitor e comentador da Bíblia e a sua obra poética revela como a mensagem cristã o influenciou.

   Diante das interpretações de Claudel acerca da Bíblia e de Job, Lévinas reage, apesar de toda a sua aproximação do judaísmo e do cristianismo. Na verdade, é excessiva a busca de relação e construção interpretativa do Antigo Testamento tendo em vista polarizar tudo para a figura de Cristo, com a Arca de Noé a pressupor o madeiro da cruz, Job como prefiguração de Cristo e outros. Apesar da sua simpatia pelos cristãos, Lévinas pretende apenas relações de amizade e fraternidade que não se podem tornar paternais. Não se pode reconhecer como filho e herdeiro vivo, quando os judeus não abandonaram o seu Livro, eles protestam contra uma herança que não deram e assumida por herdeiros impacientes diante de uma Bíblia que há milhares de anos é estudada e meditada por um povo vivo. Também o filósofo Martin Buber (1878-1965) não encontra razão para falar em testamento nem a encarar numa perspectiva de velho ou novo. A sua perspectiva é justa dentro do seu contexto. A Bíblia é o livro dos Judeus, nada mais haverá a dizer quanto a isso.

     Seria muito enriquecedor um estudo comum da Sagrada Escritura elaborado por judeus e cristãos, denominação que merece consenso, em vez da dicotomia do velho e novo testamento. Isso poderia conduzir a posições de crescimento mútuo, embora o perigo dos herdeiros se querem apossar da riqueza dos primeiros seja um enorme risco, é bom recordar que Jesus é o homem mais amado dos cristãos e é judeu. Por isso mesmo, o respeito pelo seu povo deve ser grande. O modo de entender a Palavra tem sempre um preço desconhecido. A Bíblia, usada com uma hermenêutica sempre tendente à preparação para a chegada de Cristo, oculta muito do seu contexto histórico e corre o risco de fugir à verdade dos factos pela simbólica empobrecida dos mesmos numa só perspectiva.
   A figura de Satanás e a aposta com o Senhor recorda-nos a teologia de Blaise Pascal e a figura de Job com a sua aceitação de si mesmo como criatura tem o mérito de separar o mal do sofrimento e por isso afasta-se de teodiceias filosóficas para se situar no plano da fé. A causalidade perde o determinismo para aceitar uma articulação da liberdade divina e da liberdade humana em planos diferentes. O mal existe mas, a escolha da responsabilidade que se relaciona com Job ou com qualquer homem, só toma sentido no uso que cada um dá à sua liberdade em todas as circunstâncias.

     Tais respostas não nos libertam do pesadelo da Shoah nem de todas as metamorfoses do mal. A interrogação porém não se coloca nas mãos de Deus ou na sua ausência, mas nas mãos do homem na sua indiferença, no seu alheamento da humanidade do outro. O escravo ou a tortura, a coisificação do ser humano é sempre uma porta aberta para a repetição de um erro que temos de ter coragem de olhar de frente face ao futuro.

 

 

 VII - A invisibilidade da dor

 

     O enigma do sofrimento é sempre muito mais subjectivo, rouba-nos a possibilidade de julgar a dor alheia tão diversamente sentida.
    Quem nunca teve um destino ditoso nem conheceu a felicidade, não pode ter o mesmo desespero pela falta dos elementos de comparação. Todos os idosos ressentem-se disso. Mas quem nascia escravo podia suspirar pela liberdade, mas nunca a experimentara. Assim o mesmo sucede com os males que se suportam em todos os tempos e lugares. Esse hábito de sofrer lenta e calculadamente acumulado é que cala as vítimas que levou ao extermínio de tanto judeu, cigano e outros, numa passividade que hoje nos faz interrogar com emoção sobre a complexidade enorme da natureza do ser humano.

    Muito se tem escrito sobre o sofrimento e a felicidade tomando a figura simbólica de Job como modelo.

    São Tomás de Aquino deixou reflexões sobre o tema, especialmente no que se refere à oposição completa entre razoabilidade entre Deus e o homem, Goethe na sua obra “Fausto”, que tem muito de autobiográfico, também tem essa influência pois é a juventude perdida, o bem que não pode viver, a grande dor e revolta, tudo isso que fragiliza Fausto e fortalece Mefistófeles.

    Por sua vez, Dante Alighieri, (1265-1321) na sua obra que resume toda a cultura medieval e ecoa em todas as épocas pelo seu alcance universal, enquadra-se nas concepções teológicas e cosmológicas da época e coloca o destino do homem depois da morte entre a punição e recompensa.

    A obra “Divina Comédia” é, na sua simbologia mística, a visão do que de mais tenebroso e terrífico inferno se pode conceber como abismos até às entranhas na Terra, através dos famosos círculos onde habitam os pecadores. Deste modo surge a mais pura arte, a cultura e a história universal, vistas na progressiva degradação da alma e do corpo dos prevaricadores através dos círculos cada vez mais pavorosos até ao lago gelado do nono círculo onde Lúcifer domina no centro interior da Terra.

    Os heróis da Antiguidade, todos os pecadores, até ao tempo de Dante, demónios e lagos, lama e vento compartilham do terrível destino num universo alegórico de múltiplas interpretações, contemplado pelo poeta e descrito em versos de desespero e exaltação como talvez «nenhum outro génio humano tenha produzido». (Eliot). Há um conteúdo pedagógico, moralizante e religioso de trágico dramatismo.

   A primeira tradução completa da obrado poeta florentino para português deu-se pela mão do Barão da Vila da Barra, escritor brasileiro, médico e parlamentar, muito conceituado na época e que o deve ter traduzido do francês, segundo as indicações que temos. É belamente ilustrada pela pena de Yan d´Argent na mesma linha do famoso Gustave Doré. (1832-1883) que já ilustrara a mesma obra em França e também o “Paraíso Perdido” de John Milton, o imortal poeta inglês cego (1608 - 1674). Notamos que essa tradução não foi muito feliz na tentativa de conservar a tonalidade dos versos da língua italiana para a portuguesa, pois talvez o fizesse demasiado burilado e o efeito estético perdeu muito com tudo isso.
   Aqui, tal como no Livro de Job, as metamorfoses do mal estão patentes na miséria humana até ao mais degradante de tudo o que se possa imaginar. A grande diferença está em que, enquanto Job será sempre o paradigma da vítima inocente que clama insistentemente a sua pureza, as celebridades históricas serão quase todas culpadas. Ressalve-se o Limbo que alberga os heróis e as almas dos que não foram cristãos em vida mas estão livres do pecado e depois, no que toca ao Purgatório e ao Céu, aparecem figuras angelicais como Beatriz, a dama florentina platonicamente amada por Dante, que se transmuda em símbolo teológico ou então o poeta Virgílio, visto como profeta, de quem ele tanto gostava e que é o seu guia na aterrorizadora viagem.

   Por entre as figuras encontradas, registe-se, no Canto V, segundo círculo, o episódio de Francesca de Rimini, a nobre dama ilustre filha de um Senhor de Ravena do século X, assassinada pelo feio cônjuge pela sua traição devida aos seus amores com Paolo, o próprio irmão do marido, também morto por ele. As sombras de Francesca e de Paolo Malatesta estão envoltas em vento sem jamais se poderem tocar. A cena inspirou tal simpatia ao compositor Tchaikovsky que o levou a escrever um poema sinfónico com o seu nome e ainda a mostrar influencias dela no “Lago dos cisnes”. Mas pintores como Dante Gabriel Rossetti e ainda mais curiosamente Blake que ilustrou “O Livro de Job” foi também ilustrar a obra de Dante e como morreu em 1827, apenas sete gravuras estavam prontas, incluindo aquela em que Virgílio mostra a Dante os amores pecaminosos e proibidos em que estão incluídos Francesca e Paolo, mostrando toda a comoção do poeta que o fez desmaiar diante do quadro dos desventurados.

     Dante ao desfalecer de dor na contemplação os dois infelizes, mostra como se impressionou muito mais com eles do que com outros condenados, com castigos bem piores. Na época, o marido assassino apenas faz justiça com suas próprias mãos e não merece ser castigado e aqui se nota como a mulher era sempre mais culpada e sujeita a uma moral mais severa do que o homem.

    Todavia interessa-nos mais, salientar aqui as palavras que o poeta dirige à infeliz senhora e a sua resposta que, na tradução do Barão de Vila da Barra
[19], ficou assim : «Francisca, os teus martírios, me fazem derramar piedoso pranto mas dize-me: aos suspiros de ternura, como e quando o amor seguiu-se ao amor, entre ambos os arcanos desejos revelando? Respondeu-me. Nenhuma dor conheço igual a recordar-se na desgraça o feliz tempo: o teu mentor (Virgílio) o sabe». Na edição Europa América, de “O Inferno[20], em tradução de Teixeira Aguilar, Francesca contesta de modo um pouco diferente com superior tristeza: «Maior dor não pode haver do que recordar na miséria os felizes tempos». , o que no original é: «Nessum maggior dolore che ricordarsi dei tempo felice nella miseria».  
     É a comparação entre a felicidade perdida e a desgraça presente o que mais maltrata e sofre porque se trata de um paraíso perdido como o foi para Adão e Eva expulsos do paraíso. O castigo de sair do Jardim do Éden causa uma dor sem fim e ai temos o pecado punido reflectido em todos os seres humanos, com o sentimento de culpa ou então, pelo menos, de perda. Admitindo ou não o pecado original, a relação entre o presente e o passado é causa da maior lamentação de todos os que já foram felizes.

    Temos presentes as palavras de Kierkegaard, na sua obra “O Banquete
[21] , acerca da memória como traficante de mercadorias avariadas, porque não há fidelidade nas lembranças, e recordar-se não é o mesmo que lembrar-se, pois nesta última forma há um pouco de eternidade e o exorcismo do presente é a oposição que a recordação traz e daí se conclui que «… como é fácil desejar quando se tem na mão a varinha mágica, e todavia desejar é por vezes mais cruel do que morrer de miséria![22]».
   Ora, por seu lado, Job clama:

«De nada me serve ter um coração puro e conservar inocentes as minhas mãos! Sou posto à prova a toda a hora; todas as manhãs, sou castigado... Eu, porém, Senhor, clamo por ti; de manhã a ti apresento a minha oração. Porque me rejeitas, Senhor, e escondes de mim o teu rosto?» Salmo 73,13-14; 88,14-15.

   É evidente que está aqui a velha explicação que liga a desgraça e o pecado e isso é o que dá justificação à queixa de Job. Por ser inocente, com um coração puro, em que se fundamenta o seu castigo?
    É exactamente por já ter sido feliz que ele se queixa. Não tivesse ele tido tanto e em tão grande abundância e a sua queixa teria menos sentido. O mal é vivido como uma perda imerecida, como se o privilégio de ser feliz num mundo, onde a dor é a regra, pudesse ser reivindicado! Não é somente a sua inocência o que está em causa. É mais uma exigência de relação entre o bem e a recompensa, já que era esta a situação anterior de Job. É ainda a teoria da retribuição que ele invoca, mesmo que seja pelo seu lado positivo. Há todo um passado feliz que ele atribui a Deus, à sua condição de bom servo, e agora que é infeliz também atribui a Deus já que O não afrontou. Só podia revoltar-se este servo e não outro. Foi escolhido para a prova porque tinha fortuna, bens, filhos, todos lhe queriam bem. Quando o Senhor interroga Satanás sobre o seu servo Job está como que esquecido dos bens de que cumulou e a olhar só para a sua piedade. Mas o Príncipe do mundo é implacável. Será ele mesmo fiel? Suportará a dor da perda sem revolta e rebeldia?

    Até que ponto o orgulho de Satanás se identifica com o orgulho do justo? Não foi o conhecimento do mal mas a sua sabedoria egoísta, a sua noção e reconhecimento de ser superior que o levou a dizer: Não servirei!

    Foi o conhecimento do seu próprio poder, a sedução de si mesmo, narcisicamente admirado pela sua condição ser superior tal como era, que o tornou incapaz de aceitar o amor de Deus e escravo desse egoísmo que o tornou incapaz de obedecer.

     A sedução e o esplendor do mal não foram sempre o risco apontado por todos os que tentam avisar do risco de toda a beleza apontada, tanta vez, como uma face do mal?
    O poder atravessa a História com o rosto do mal. Obriga às máscaras e aos muros da indiferença, à fuga da dor, por todos os meios, mesmo a traição e todos os logros para a sobrevivência do mais comum das gentes.

 


 VIII - Ilusões invisíveis  

 

     A solidão de Job é o fim de toda uma metamorfose causada pelo mal, tanto nele como no seu mundo, uma lenta redução à última pobreza que é o golpe final da «traição do corpo» e que agora o impede até de poder permanecer entre os seus. Tornou-se um estorvo a evitar, como tantos nos nossos dias, não tem mais lugar na sociedade que não perdoa essa imperfeição. A doença arrasta muitos males morais para além dos físicos, não é aceite e é indispensável recorrer às máscaras.
    Interrogamo-nos com Claudel diante da sociedade que repele os seus doentes:

   «Qual é a lepra mais odiosa, a da alma ou a do corpo?»[23]

  O visível pode ser menos terrível do que o invisível e a nossa incerteza é a ocultação do mal sob as formas mais atraentes e perigosas.
   Diante do silêncio de Deus, tomado também por muitos como a Sua Ausência, não há disfarces que se mantenham seguros, não há dor que não se multiplique em infortúnios.

   Então temos com clareza a descoberta do mundo dos homens, sem atribuir responsabilidades a Deus. O Inferno não será um lugar a que se desce ou sobe, nem sequer é um lugar mas o mundo dos homens, construído por eles. Não se sai nem se entra. Ultrapassam-se limites e, só deixando a coisificação do eu para ir ao encontro do Outro como espelho de um outro eu, que me reflecte e me dá existência, é que a máscara desaparece.

   A humanidade que se constrói para o futuro tem um cunho de barbárie que é tanto mais invisível quanto mais de desresponsabilizamos pelos nossos actos. A luta contra tal mentalidade arrisca-se a parecer antiquada, puritana, ridícula mesmo. Em nome de uma democracia, sem diálogo possível nem debate sério, o cepticismo alia-se a uma racionalidade em que a própria afectividade é submetida a um hedonismo em nome de uma «arte de viver» que vigora na ilusão da eterna juventude.
     De outro modo, temos de ver o mundo das coisas e dos seres com uma naturalização que devolve a axiologia ao homem e se fica pelo ontológico. O que há são apenas factos, nem sequer há história. A noção de justiça é que rompe com as categorias do ser e entramos no mundo humanizado pela «porta estreita» dos valores. Não nos podemos queixar da ausência de Deus se considerarmos a distância que nos separa e distingue do resto do Universo.
     Satanás, se é o príncipe deste mundo, saberá como a confusão e o desassossego lhe são favoráveis para criar conflitos e sucessivas vítimas. A banalidade com que se consente no mal, com que o toleramos, por ser um pequeno mal-estar da civilização, uma perturbação que se considera sem muito impacto, leva a um aumento cada vez maior de insensibilidade pelo que acontece aos outros. Como se a peste só acontecesse aos outros e estivéssemos imunes enquanto somos corrompidos e colaboramos por toda a omissão.

     Parece que o mal tanto se infiltra pelo hábito, como pela novidade e a cada passo tropeçamos no risco de aumentar o sofrimento alheio. A necessidade de um bode expiatório que nos liberte das culpas, que restitua a paz e a segurança nas comunidades, como muito bem aponta René Girard, torna-nos cruéis em querer punir o mal e todavia estamos a aumentar esse mesmo mal, porque as vítimas clamarão sempre por mais vítimas, a vingança e a violência escondem-se nos nossos actos que repetem os ritos arcaicos da vítima sacrificada para atrair a clemência dos deuses. Os exemplos vão dos Incas a Cartago, da Ilíada à Bíblia.

     O Deus da tempestade, dos exércitos, do trovão e do fogo, cedeu lugar à descoberta do Deus que não está nem no céu nem na terra, nem fora nem dentro, porque tais categorias são abolidas, mas se encontra no coração do próprio homem e revela diante do Outro com a máxima: «Não matarás!», porque o homem só se entende na existência social. Apenas podemos falar de Deus com Deus, tal como acontece no final do livro de Job, o bom servo que admite apenas o amor e se remete para o grande misticismo do silêncio mas que, com todo o seu simbolismo, deu lugar à espiritualidade do Verbo proclamando Deus por todos os meios humanos já que os processos divinos foram sempre os do silêncio.

    O mal criaria o progresso e retiraria o risco da estagnação. O pensamento de Kant e Hegel parecem estar presente na obra de Sebastião Formosinho
[24] ao defender, ou pelo menos aceitar, que há como que uma necessidade de mal no mundo. As páginas em branco na História fariam os povos felizes, povos sem história. Com toda a riqueza da exposição e citações, não encontra solução, mas antes vê como um desafio este mal no mundo.
   Ficámos é terrivelmente angustiados diante da derrota dos últimos tempos contra o mal que dizemos combater. Depois de Auschwitz poder-se-á pensar assim? Poderá ser uma frase já gasta, mas agora é que acordamos para o horror que está ao nosso lado, foi crescendo connosco e acontece insidiosamente. O terrorismo é um ressurgir dos enigmas da religião, de um modo de martírio como testemunho anónimo que pode não ser explicado apenas por fanatismo.

   A fé é uma chama, uma desmesura, se bem que possa tomar formas rudes e sinistras, é em nome do Bem que o ódio se manifesta, a ambiguidade da intencionalidade está no espectador distante, no comentador, nas teorias propostas mas especialmente nas vítimas e dos suicidas, por sua vez carrascos e bodes expiatórios.   

 

 

 

 IX - A aposta da revolta

 

     Porque sofremos o que sofremos? Esta questão é desde o seu início uma questão religiosa. Martin Buber, filósofo judeu, nos sombrios dias do ano de 1942, escrevia em Jerusalém:

 «O profeta não é um mágico ou um adivinho da sina, é como que uma agulha magnética que indica sempre a direcção de Deus  (…) Porquê? Aqui não está uma interrogação filosófica acerca da natureza das coisas, mas uma preocupação religiosa acerca da acção de Deus [25]».

    Pode-se laicizar o mal, falar dele como facto natural ou ético, mas o sofrimento é o que de mais humano nos une ou desune, o que mais degrada ou exalta o valor da vida. Somos os únicos seres vivos que podem dar a vida por valores e não por factos. É pelo valor que se constrói a existência, a liberdade e a sua consequente responsabilidade.
    As qualidades atribuídas aos factos tornam o valor deles o que de mais relevante têm para nós. Diamantes ou laranjas tomam um valor completamente diferente no deserto ou numa sumptuosa festa. Assim também a liberdade pode tomar um sentido heróico, ou não passar de actos repetidos por rotina. Só que o hábito do virtuoso, já nas reflexões aristotélicas, se revestia de uma continuidade que o arrancava do esforço de ser bom e o levava a considerar como natural a sua disposição adquirida, e agora já sem esforços, o levava a praticar o Bem com naturalidade.

No pólo oposto, Kant colocava a acção virtuosa sempre meritória pelo esforço que exige, pois todo o bem praticado sem estar sob o signo do dever, poderia cair na alçada do «amor patológico» designação dada à facilidade que se tem de amar os amigos e ser tão penoso amar os inimigos. Por amor ao dever, toda a actividade humana só podia ser boa, movida pela boa vontade e sem risco de perder a autonomia.

     Quando aborda a obra de Sebastião Formosinho e Oliveira Branco
[26], o escritor franciscano Hubert Lepargneur insiste com toda a razão que: «não se concedeu à tragédia da Shoah, máximo desafio do século XX para todo crente do judaísmo ou do cristianismo, a séria reflexão que parece merecer». De novo, é o apelo à responsabilidade ética em todas as actividades o que se propõe com a maior premência.
    O mal que se esconde e nos atinge vem de muito longe. O processo de secularização do pensamento, na nova atitude racionalista, com base na ciência terminaria um longo ciclo com o extermínio dos judeus nos campos de concentração como um terrível ajuste de contas com as próprias origens do cristianismo. Esta tese encerra uma terrível projecção de violência que condena todo o cristianismo. A morte de Cristo serviria para a condenação de todo um povo numa completa negação da sua mensagem e num fatalismo de bodes expiatórios levado até ao impensável.

     A morte de Deus parece que arrasta consigo toda uma civilização construída com os valores que Nietzsche queria aniquilar. O autor da “Gaia Ciência” porém não é mais do que uma das interpretações de alguns desses valores. Não os abarcou a todos, a sua condenação visava apenas uma determinada concepção cristã e numa dada época.

    O cristianismo não foi nem será uma religião confinada a uma cultura, ou a uma civilização. Quando se nega o contributo religioso cristão que estaria nas bases da construção da Europa, não se apaga de modo algum os valores cristãos, mas pelo contrário, eles são universais e assim devem ser considerados. Libertos do sentido de pertença de uma época ou local, apenas demonstram como em toda a cultura se pode inculcar a vivência de valores cristãos, pois estão na essência do ser humano.

    Tomando a palavra de José Marinho se «O cristianismo é, por um lado, a mais histórica das religiões, por ser aquela em que Deus assume a responsabilidade temerosa de se situar plenamente no homem e no tempo, é, por outro lado, a mais anhistórica porque imediatamente homem e natureza são como que raptadas para cumprirem fins supra temporais e eternos e os mais altos» agora podemos ver que sem ser a religião de um povo eleito como seria o judeu, vai mais longe não pertence a nenhum e pode estar em todos, com as suas diferenças pois afirma ainda o pensador português, «
ele (o cristianismo) é a religião do homem, de todo o homem desde o primeiro Adão até ao último Adão. ( …) «o cristão» assume plena responsabilidade de ser humilde no espírito, fraterno na alma (…) bem certo que, em certos terríveis momentos da sua história, algumas comunidades cristãs renegam a Boa Nova, e retrocedem, já por debilidade da mente e falta de santidade ou heroísmo dos responsáveis. Isso, porém, por mais sério e mais grave, nada pode provar contra a rediviva essência, nada contra a profunda realidade dos símbolos imperecíveis [27]».
    Parece que estão aqui presentes certas acusações que bem podem ser dirigidas ao extermínio e à Shoah, levados a cabo por pessoas dentro da cultura cristã. Somos herdeiros de uma monstruosa tragédia, e os filósofos interrogam-se acerca da possibilidade de filosofar depois de Auschwitz. Vítor Frank, que lá esteve, nesses dias negros, afirmou: «Só o seu nome fazia lembrar tudo o que há de horrível no mundo: câmaras de gás, fornos crematórios, matanças indiscriminadas (…) o edifício, segundo me contou um prisioneiro que lá trabalhava, tinha escrito nas suas portas em vários idiomas europeus a palavra “banho”. Ao entrar, a cada prisioneiro era entregue um sabão e depois… mas graças a Deus não preciso relatar o que sucedia depois. Muitos escreveram já acerca de tão grande horror»
[28].

    Pela contemplação e passividade apenas se contribui para manter uma faceta da teologia que vem do mais remoto passado. Existiu sempre tal como a «banalidade do mal», apesar de ser Hannah Arendt quem mais denuncia o caso como problema do século XX, está patente em todas as épocas e lugares. Quantos senhores deste nosso mundo nunca sujaram as mãos com o sangue dos inocentes e são terrivelmente culpados como causas ocultas ou mesmo como mandatários dos mais medonhos crimes? Quantos burocratas anónimos assinam papéis, sem a devida reflexão e outros cumprem ordens sem a coragem de pensar nos actos e muito menos em dizer não?
     O que mais espanta e horroriza ao mesmo tempo é que a autora de “Eichmann em Jerusalém” nos dá uma imagem arrepiantemente próxima desse nazi e escreve: “É claro que teria sido muito reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro; se assim fosse, a acusação de Israel contra ele teria soçobrado ou, no mínimo, perdido todo o interesse. (...) O problema com Eichmann era exactamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais”.

      Para além de revelar a normalidade deste ser humano, coloca a suspeita de que os cúmplices foram como ele, são como nós. Não se pode atirar a primeira pedra, todo o juízo acusatório regressa a quem o formula.
      Como seres humanos somos sociais e temos de viver sempre em grupo que pode até nem ser o vizinho geográfico, dados os meios que temos hoje, e não nos podemos isentar dessa reflexão e mais ainda de um contributo activo para que o futuro não se manifeste em metamorfoses do mal face ao qual nos limitamos a interrogações ou interpretações da velha moral retributiva como um sério álibi para uma ausência da nossa responsabilidade.

Se chegámos à conclusão de que a imperfeição não reside no Universo mas depende da nossa racionalidade e compreensão, então temos de concluir que toda a nossa presumível liberdade, se nos atribuímos alguma, também depende do seu uso racionalmente humano que completamos com uma responsabilidade extrema.
A filosofia leviniana é uma utopia, mas a mensagem encerra uma possibilidade de revolução das mentalidades, com uma aposta na Lei do respeito pelo Outro, sentido como um outro eu, sem apostar no amor que infelizmente não podemos sentir por todos sem uma eleição de alguns, quando nos sentimos também eleitos entre os outros.

    A análise de Girard à escalada de violência e das metamorfoses do mal não responde à busca de respostas na nossa viagem pelo mal. Não a resolve. Aponta para a esperança de quebrar a cadeia de vitimação que se realiza através dos tempos. Se acabarmos com a resposta violenta, se abandonarmos o mimetismo desculpabilizante e assumirmos a realidade de uma humanidade nossa, capaz de deixar de lado todas as acusações e culpas, a herança dos valores assumirá um novo sentido. Mas esse sentido dará azo a novas interrogações e a um distanciamento de outra utopia.

    Enquanto vivemos, o mal e o bem conceptuais ou reais, estão misturados. No pior dos sofrimentos, nem Job imaginou Auschwitz, nem os biliões de seres torturados e destituídos da sua dita condição humana pelas catástrofes naturais e morais. 
   Temos horror ou medo da barbárie e do outro como opaco e (in) diferente, no desassossego do espírito fechado à sua dimensão humana de partilha da vida mas não da morte. O outro está sempre aí, sempre esteve, na ameaça e no risco que é o mundo. Nunca estamos em casa. Alugámos apenas um tempo. Vivemos um mistério. Inventamos valores. Depois queríamos uma festa e temos uma realidade que nos manda embora. Tudo o que sonhámos, já outro o viveu ou viverá. É como que na perplexidade que Susan Neiman termina a sua polémica mas labiríntica digressão pelo mal:

«Entre o adulto que sabe que a criança não encontrará sentido no mundo e a criança que se recusa a deixar de o procurar reside a diferença entre a resignação e a humildade [29]».

     Aceite a falta de sentido, como aqui está, o risco do absurdo e a desistência fica patente. Neiman escreve: «não encontrará sentido no mundo» mas pode ser que não seja no mundo mas no homem que se descubra sentido. Pode até haver esperança de um sentido para além do homem, a evolução pode levar a um novo homem. A transcendência do homem é um apelo em todas as épocas.
    Já temos muitos mais vias para mudar o mal. A globalização e a comunicação que ignora distâncias são uma esperança. É certo que grandes esperanças não alimentam bocas de fome, não levantam pessoas da lama. As reflexões sobre o mal são necessárias, mas usar todos esses os novos instrumentos para quebrar os elos da cadeia do mal, não vergar a cabeça resignada por pouco ver das sementes plantadas, usar a pedagogia do bem serão pequenas gotas de água com que se pode encher um oceano.
     Nem a resignação nem a humildade são aceitáveis por si sós. Podemos resignarmo-nos pela nossa condição e ter humildade nos nossos actos. Só que não bastam. A cólera e a paixão, no sentido total de desmesuras, são necessárias ao mundo, transformam o mundo. Se no mal já se viu que não há medida, apostemos na revolta, porque a face do bem, por muito oculta que esteja, é o próprio homem que se transcende e encontra a sua própria transformação. As pequenas vitórias do homem sobre si mesmo, os actos heróicos anónimos e esquecidos nas páginas ao longo da História, a grandeza dos espíritos e a bondade demonstradas pela Humanidade em evolução, são também uma outra história de Job e do bem no mundo que se vai escrevendo muito lentamente.

     Aposte-se! Na era do risco, a aposta é ainda maior se for na História do Bem que já teve o seu início mas ainda não teve o seu fim.

 

 


[1] Tavares, Rui, “O pequeno livro do grande terramoto” Ensaio sobre 1755,  E. Tinta da China, Lisboa, MMV.

[2] Toffler, Alvin “Os novos poderes”, Edição Livros do Brasil, Lisboa, p.411.

[3]  Sontag, Susan, “A Doença como Metáfora e A Sida e as suas Metáforas", Edição  Quetzal.

[4] Lipovetsky, Gilles, A era do vazio, Relógio de Água, Lisboa, p. 39

[5]  Levinas Emanuel, "De l' unicité", em: Archivo de Filosofia LI, 1986, pp. 302-303.

[6]  Hegel, George, Wilhelm, "La raison dans l´ Histoire”, Plon, Paris, 1965, p.110.

[7] Lipovetsky, Gilles, "A Era do Vazio", Relógio de Água, Lisboa, s/d

[8] Fromm, Erich, “ O Medo à Liberdade”, Edições Guanabara, Koogan, Rio de Janeiro, p.195.

[9] Sontag, Susan, Ob. cit. p 134.

[10] Vítor Hugo, "Os Miseráveis”, 1ª. Parte, Cap., VII

[11] Carta de Taizé: 2003/6 (cit. de Dostoievski).

[12] Irmão Roger, de Taizé, 2004 .

[13] Girard, René, “Eu via Satanás cair do céu como um raio” Edição do Instituto Piaget, 2002.

[14] Neiman, Susan,  O Mal no Pensamento Moderno,  - Uma história alternativa da Filosofia” Edição Gradiva, Lisboa, 2005.

[15] 1997 Encyclopædia Universalis France S.A, Gabriel Marcel.

[15] 1997 Encyclopædia Universalis France S.A, Gabriel Marcel.

[16] Claudel, Paul, Obras Completas, XI, p. 130, 141. inClaudel et la Mystique du Verbe”, Cherrmont Pierrick

[17] Claudel, Paul “Anunciação a Maria”, tradução de Sofia de Mello-Breyner Andersen, Edição Aster, pp.112-113.

[18] Lévinas, Emmanuel, “Dificille Liberté”, p. 137.

[19] Dante, Alighieri, “Divina Comédia”, vertido o texto pelo Barão de Villa da Barra, (Obra Póstuma), Garnier, Livreiro Editor, Paris, Rio de Janeiro, 1908.

[20] Dante, Alighieri, “A Divina Comédia – O Inferno", Ediçao Europa América, Col Livros do Bolso, nº. 197, tradução de Teixeira Aguilar, Lisboa,  1980, p. 28.

[21] Kierkegaard,  O Banquete”, Guimarães Editores, Col Filosofia e Ensaio, 1972.

[22] Idem, Idibem, pp. 36-69.

[23]  Claudel, Paul, Obra cit., p. 118.

[24] Formosinho, Sebastião e Oliveira Branco," A pergunta de Job. O homem e o mistério do mal", Editorial Verbo, Universidade Católica, Lisboa, 2003.

[25] Buber, Martin, "La foi des Prophètes", Edição du Cerf, 2003, p. 263.

[26] Formosinho, Sebastião e Oliveira Branco, Ob. Cit..

[27] Oliveira Martins, “O Helenismo e a Civilização Cristã “, Prefácio de José Marinho, Guimarães Editores, Obras Completas, Lisboa, 1951.

[28] Frank Vítor, “El Hombre en Busca de Sentido”, pp.20-22.

[29] Neiman, Susan, ob.cit. p.362.