"  Magia das Palavras - IV" 

  •   Sobre a "Terra do Nunca".

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

   

    

"  Para Sempre e para Nunca"

 ( Promessas de Amor. Gravação num tronco de bambú. Jardim Botânico. Porto  2013)

 © Levi Malho.

 


 

     Quase  me aterra-me escrever esta palavra. Evoca portões que se fecham com estrondo sobre condenados. Nunca é todo um passado – espaço proibido – que se afasta quanto mais se tenta lá chegar. Nunca aparece-me como um punhal traiçoeiro, para ferir alguém que ainda tenha esperanças. Traz uma tonalidade noturna, sem lua, nem estrelas, no céu. Recorda-me  Edgar Allan Poe, quando tentava explicar a sua composição  “The Raven” (1843), ou seja, “O Corvo”, um dos seus trágicos poemas, em que é esta ave negra e fatal, e com lentas e pesadas garras, prende a alma do poeta. Nunca mais o dia brilhará e retira-lhe toda a esperança, com o seu canto profético: “Never more.” 

 

Legenda   1 - Sem regresso NEVER MORE

 

É o sinal mais cruel que o tempo nos obriga a aceitar, sem remissão, nem regresso. Se Poe sente saudade, angústia e agonia é porque nunca mais quer dizer futuro fechado, caminho sem retorno, o que nunca mais pode acontecer. Todos os seres humanos podem usar esse vocábulo mas, na infância ou na juventude, nunca não é nunca. A morte nunca sussurra ao ouvido, tão forte e poderosa, como para quem já arriscou a vida ou a teve por um fio. Para adoçar a verdade de nunca, há milhares de frases-feitas e de provérbios que nos ajudam a fingir que o nunca não chegará senão para outros.
   
    Já poucas vezes ouço a velha frase: “No dia de São Nunca à tarde”.  Há tempos para o sentido e o uso de palavras que mudam com o sentido da vida. Tornou-se vulgar a falta do cumprimento de deveres, gratidão, ou reconhecimento. Nunca é mais  para afirmar do que para negar seja o que for. Eis que o corvo de Poe desaparece. O nunca é a modéstia do  miosótis, em todas as línguas "nunca me esqueças!"  que um dia encontrei no jardim das memórias,  ou a descoberta de um segredo que está no fim de um livro que nunca pensei que acabasse assim!
     Do Antigo Regime para a modernidade, algo estranho aconteceu. Em “Os Mistérios do Castelo Udolfo” de Ann Radcliffe (1794)  fixa-se a novela gótica e um romantismo que
Jane Austen, ainda bem jovem, já conseguiu transmudar numa divertida crítica social em “A Abadia de Northanger”, com a sua heroína Catarina, presa de mistérios que nunca desvenda e quase lhe foram fatais ao seu destino, pela sua falta de bom senso e crença em insondáveis mistérios que nunca se explicam mas incendiaram as mentes das jovens britânicas.
   
“Nunca mais poderá restituir-me a sua estima e a sua afeição? (…) Matou-me duas vezes”. A ingénua Emília não resiste ao herói, mas só na última página desce a harmonia. Nunca, diria o pai, enfurecido e ultrajado, ao pretendente pobre da rica herdeira, sua formosíssima filha. Nunca fatal que desata amontoados desgraças por esta jura irrevogável.
    Esta é uma tirada melodramática, declaração de guerra, desafio ao destino mais tenaz. Quando se abre um livro dos tempos de outrora, desse romantismo que nunca se desfez completamente, o peso do nunca é o de uma palavra solene, aterradora e sombria. Pesava toneladas de certezas e segurança que, ainda hoje, me faz acreditar e que algo de grave se irá passar no desenrolar das páginas do livro. E que se dirá dos poemas? Cantados sem fim, ao piano dos serões românticos, os amores resistem para além do sepulcro, assim o choram os melancólicos versos do nosso Soares dos Passos. “
Oh nunca, nunca!" de saudade infinda, /Responde um eco suspirando além... /
 - "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda / Formosa virgem que em seus braços tem.”

 

 

 

 

Legenda  2 - Nunca a noite atraiu tanto vampiro e menos poetas

 

    Almeida Garrett, quando escrevia os seus devaneios românticos, não deixava de confessar que, tais composições: nunca hão-se ser senão no intervalo de uma paixão”. Não era em vão que Camilo usava esse nunca que depois se desenrolava por amores contrariados até a um final de aparente felicidade, de sarcasmo realista, ou moderadamente duvidoso. Já com pinças, de fina ironia, Eça de Queirós, lança dois ou três nuncas num local estratégico e tira todo o partido da exímia seta da sua linguagem que, de tão pouco,, nos diz mais do que longos discursos.
    Do inesquecível Jacinto, o seu príncipe, diz: - “Ah, nunca um homem deste século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver! Debalde! “ ( in. Civilização) e afina um pouco mais a adunca pena. Antero, abandonadas as juras primaveris, lança um óculo para a via Láctea e, nesse “lá” que tanto ansiava chegar sem saber onde, lançava inapeláveis exclamações metafísicas contra a vida que lhe sorriu sempre e ele nunca viu. “
Sempre o futuro, sempre! E o presente Nunca!“

 

 

 

Legenda   3 -  Ramalho às marteladas,  com pinças, Eça de Queirós, zurziram o país do nunca

 

    Sem punhos de renda, Ramalho Ortigão usava mãos pródigas de nuncas num país de projetos. “O Governo Provisório da Nação continua pois provisoriamente governando mais firme, mais intemerato e mais prazenteiro que nunca.”
   
Sempre e nunca reunidos dão sarilho. Prefiro um talvez, macio de dúvidas, mas por ora, uma dúvida, quem sabe?;  talvez.  A palavra era a força da lealdade e confiança que interligava a sociedade. Nunca mais se ouve dizer que “Palavra dada não volta atrás” e, a cada passo, volta mesmo atrás.

 

 

Legenda  4 - Nunca há demasiado!

 

Nas alianças modernas, as palavras não servem mas sim as assinaturas, os contratos, as contas seladas, por cima e por baixo das mesas. Se a corrupção, a ganância, a inveja, a mesquinhes dos sentimentos, nunca acabam, temos o eterno nunca!
    “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas”.
A frase ficou com o paradoxo de alguém que nunca se engana mas pode ter dúvidas. É que a dúvida é a porta mais certa para entrar na incerteza, na humildade e descobrir que as contas podem estar certas nos livros, mas nunca se acertam contas com a vida. A vida é que nunca deixa de pedir contas, mesmo secretamente, ganha sempre. O otimismo usa o nunca para nunca deixar de sonhar. A “Terra do Nunca Jamais”, na tradução primitiva. é a ilha de Peter Pan, do escocês J. M. Barrie com grande êxito sempre pois é metáfora para quem nunca quer ser adulto, com pavor de crescer.

 

 

Legenda 5 - A fantasia da infância, no adulto é esquecer-se de viver

 

    Para quem sonha demais, vem a desilusão de ver a vida passar ao lado.  Nunca desistas do teu caminho! Tal conselho leva a bater com a cabeça num muro, à obstinação cega, a desilusão de ficar para trás. Só se perde quando o coração diz nunca e o raciocínio diz sim. Este é um bom travão para o nunca como exímio cavaleiro que sabe a arte de bem cavalgar em toda a sela.
   
Nunca mais caio noutra, diz-se e já se tropeça noutra pedra, ou calhau com uma queda ainda mais grave. Nunca renuncies aos sonhos!

 

 

Legenda 6 -  Nunca disse? Hiii! Vou apoquentar-me,

 

     --- Nunca contei isto a ninguém! -Vem aí sarilho. Não se deve dar conselhos a quem não os pede Nunca digas nunca! Entre a realidade do verdadeiro privado e do público, nunca existiu uma distância tão grande e nunca pareceu maior a invasão da vida alheia.
    Nunca mais!

    Para trás ficam a “Ponte dos suspiros”, a Torre del Oro e o Guadalquivir,  o Arco do Triunfo, o Niágara, a Catedral de Lourenço Marques,  o Portão de Brandeburgo, a Pequena Sereia,  a baia de São Francisco, o velho Roterdão de Erasmus, tudo se envolve em brumas que afirmam, fechando as portas de todos os passados: O Corvo grasna:  

     -.. Nunca mais!