"  Magia das Palavras - II" 

  •   Desafios do "NADA"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

  

    

"  Sombras que permanecem"

 (  Marco temporal.  Edifício recuperado. Alto Minho. 2013 2013)

 © Levi Malho.

 


 

A gramática é uma arte que parece ser sólida, enquanto se é novato ou ingénuo, nas suas tramas. Depois, descobrimos as suas traições, as suas modas, a desconfiança instala-se e só aumenta. Com ou sem acordos ortográficos, a língua vive na boca dos falantes, modificando-se com as gerações, os neologismos, a expressividade, de acordo com cada época. Um com um pouco de bom senso e um olhar sobre diversas edições de obras dos séculos passados, nota-se como tanto se tem modificado e não há purista que prenda a língua portuguesas em cofre de ouro. Depois, seria uma língua morta.
    Estrangeirismos, neologismos e influências, cada vez maiores do inglês, como antes era do francês,  chocam mas depois entranham-se. O vernáculo altera-se e muda estranhamente  de sentido, a gíria e o calão deixam de o ser e ninguém pode prender a língua pois estará viva enquanto as pessoas a usarem. O linguajar brasileiro, moçambicano ou outros foram, ou ainda são, de algum modo menosprezados, mas as modinhas e canções, as poesias e as estórias locais só enriquecem a generalidade linguística que só ganha quanto mais a sua expressão se difundir.  
    A norma não passa da formalidade indispensável para certos casos, mas, prender uma língua tão rica como é a nossa, é um meio de a tratar como cadáver adiado de que ninguém depois falará. Há palavras pelas quais tenho uma ternura muito pessoal. Talvez por razões de ecos infantis, ou por me soar bem e parecerem vivas e otimistas.
    Gosto imenso de “Muito”, de “interessante” e  de tudo e nada”. Já me arrimei, confesso a falha, a bordões para falar e o meu era um “portanto”, que me servia como bóia de salvação de conversa, enquanto lá ia desenrolando um titubeante discurso. Há amigos preciosos e, não me esqueço deste me avisou desse bordão. Fiquei para sempre grata e com pena de quem cai no mesmo erro… “na medida em que… em última análise”, no meio em que se encontra inserido…”.

 E isso são lapsos de qualquer um, chega a ouvir-se em sapientes doutores e reitores, sermão de padre, candidato político. Mas se há pleonasmo quando a digo é: gosto muito de “muito”. Uso como adjetivo para substantivo ou vice-versa. O conceito Muito é dos mais vulgares e que sinto prazer em usar quase sempre.
    Sei muito bem que é um risco enorme tirar palavras dos dicionários. Depois agarram-se a nós e não nos querem largar. As palavras querem-se muito variadas e pouco repetidas, como as roupas das senhoras que agora a moda obriga a deitar fora mal foram usadas e, apelo menos nunca repetidas vários dias. Muito jeito, fora de moda dava o capote e capelo, muito bem fechado, só se conhecia a dama pelos pés. Bem sei que adjetivo é a palavra que expressa uma qualidade ou característica do ser e se "encaixa" diretamente ao lado de um substantivo. Encaixado, ou não, o pensar dá mesmo muito trabalho, é insano, por isso muitos preferem a tarefa para loucos. Se já estão loucos, mal não lhes fará pensar mais ou demais. Este é o mais importante e libertador de muitos: Pensar muito!
    Mas sem uma gramática forte e uma metalinguagem segura o muito é uma companhia sólida e, por vezes, arranjo graves problemas com este muito que me ultrapassa. É muito que recordei das composições escolares. Muito ficava bem em tudo.
    “Eu gosto muito do meu jardim. Tem muitas flores, muitas rosas, muitos cravos, muitas dálias, muitas violetas. Tem muitas cores, muito bonitas e por isso gosto muito do meu jardim.
“. Saído do dicionário podia ir atrás de gostar muito de pássaros, de cada estação do ano, da família e das férias. Tudo era muito e eu muito contente da vida.
    Gostas da escola? - Muito. Dos teus pais? -Muito. Da tua pátria? -Muito. Que queres ser quando fores grande? Sempre julguei ser já  muito grande e eu era aquilo no presente! Não havia muitos para futuro. Estes muitos eram todos para mim os que me treinaram.  Repare-se que, embora pouco usado, muito é também um substantivo a designar qualquer substância, pois tudo o que existe é ser e assim passa a substantivo. Todas as vidas têm sempre muito, muitíssimo, sem chegar ao infinito, ainda é muito mesmo. Uma substância que é pouco comum para usar em muito. Vulgar será; - O muito que ele rouba e mente. Menos vezes será - O muito que ele ama e o muito que perdoa. Quando penso na Vida, vejo logo que vim de muito, muito longe, quase de um outro planeta, sempre com muito atraso, sem deixar de correr até chegar aqui. Por muito que queira, não posso parar aqui Tenho de continuar a correr muito. Não se sabe muito acerca das razões de correr, nem quanto isto de correr começou, mas o certo é parar, significa logo muito atraso na corrida geral.

 

 

Todos têm de correr e no final todos perdem

 

 

    Sei muito bem que, um dia destes, não poderei correr muito e já isso me aflige muito. Penso muito e também me aflijo por quem corre ao meu lado e todos esses muitos outros, que vão ficando para trás. Também nem se deve olhar muito para trás para não desanimar pelos que ficam pelo caminho pois todos, um dia ficam.
    Escolher é outro problema, por ser muito e constante. Muito se escolhe e muito não se quer escolher. Ao escolher muito se perde. Muito fica para trás, e muita curiosidade dá os possíveis que não se escolhem. De muitos caminhos, só um possível é nosso. Entre os muitos que não se escolhem e se perdem,  muita curiosidade me dão. São muitos os “ses” deitados fora nas escolhas Todos os possíveis são tantos e, só um, de muitos é nosso, por isso a tentação é enorme. Muito se pensa nos possíveis e, o risco é perder todos por muito pensar. Mas onde pôr muitos possíveis sem haver muitos impossíveis? Quando o impossível aparece, os muitos desaparecem e todos são só possíveis a Deus.
    “Ou e Ou e ou e ou?” Aí, a palavra muito torna-se terrífica. Se juntarmos todos os possíveis aparece o impossível de que não posso mais fugir. A rede da gramática lança um desafio e apanha o impossível que esta dentro de todos, mas ninguém pode apanhar. Só pensar. Muito mal faz a gramática na boca que tem de escolher! Muito se pode pensar e nunca se saberá, para onde iriam dar todas as escolhas que ficaram por fazer. O problema de muitos empurra-nos para o tempo que somos e nos rouba muito!
    Entrei nesta corrida há muito já. Andava muito mais devagar. Vinha de muito pouco e esbarrei de pasmo, quando me dei conta do muito. Um muito a rebentar de mudanças, de coisas, de aprender de novo e ter sempre muito pouco. Acima de tudo, muito de espantar, protestar, estranhar, aterrar.

 

 

Admirável mundo já velho!

   

    O mundo do muito é tão estranho que muito me perco e muito me estranho! Muito em mudança, em excessos, em escassez, em invejas, em ódios, em festas, em afetos, em indiferenças. Muito em descobertas, em técnicas, em ciências, em escolas, em trabalhos, em transportes, em viagens, em poluição, em lixo. Muito e muito lixo. Sem poder gritar basta. Infelizmente, todo o lixo nunca cabe em muito!
    Muito poucas gerações e tanto que mudou. Para uma só pessoa foi mesmo que ser gigante e salter muitos séculos. Muito fogareiro, lenha, casas de teto de palha e chão de terra, luz de petróleo, água na fonte. Muita televisão e micro-ondas, frigoríficos a rodos. Muita gente a exigir tudo e muitos a não ter nada . Não foi vento, não foi temporal, é um furacão que levou as tradições, os hábitos, o quotidiano de muitos. Muito mudei com todos! Mudei de riso, de livros, mudei de transporte, mudei de valores, de opiniões, mudei de janelas de ver o mundo, a lua, estrelas mudei de ver lutar vencer e morrer.
    Muito, muito e nunca basta! Ainda há muitíssimo! Para largar, para regressar, para ser simples, ético, mudar, ser humano.
    Muito ou impossível?