"  O lado de dentro " 

  •   Axiomas da Solidão

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

    

"  Ilhas Desertas"

 ( Aparições.  Jardim Botânico. Campo Alegre. Porto. 2012)

 © Levi Malho.

 


 

 

 

 Se Regina Olsen não surgisse na vida de Kierkegaard, o existencialismo teria um rumo diferente  Sempre se estudou a filosofia de Kierkegaard centrada no próprio filósofo e na sua trágica e curta vida. Mas a noiva que ele rejeitou, Regina Olson, é o fundamento para a sua ascensão existencial. Esta jovem leva a entender o dualismo da solidão e a força que ela lhe transmite na persistência absurda do seu afeto.

      Ninguém se debruça sobre a tragédia da jovem, nem a segue na sombra que a colocou no campo do ético. Aceitando por fim a decisão de Soren Kierkegaard, Regina afastou-se, casou e partiu da Dinamarca. Afinal, o sofrimento que Kierkegaard lhe causa, é a verdade desta jovem.       A solidão de Kierkegaard alimenta-se da sua ausência ao escrever “O Diário de um sedutor” com o intuito de a desgostar e de a afastar de si. A sua intenção é sempre dualista. Não a esquece e, escrevendo o que escreve, sabe que ela o lê, que a magoa, que a desgosta e estão unidos num paradoxo da separação. De longe, Regina seguiu os seus passos, ela é como ele afirma “a única”. Para ela abrem-se todos os possíveis na sua existência pessoal. Também ela se podia tornar “o” indivíduo, mas a sua existência foi dentro da esfera da ética, essa que é do geral e resulta no anonimato.

      Porém, ao atingir uma idade avançada, Regina recorda que ninguém como ela entendeu a vida e a obra desse noivo que, ao rejeita-la, segue a vida de “O indivíduo” na mais perfeita solidão que pode existir para além da ética, numa esfera religiosa que coloca o homem absolutamente só face ao mistério Infinito de Deus.   A solidão que o filósofo dinamarquês apregoou era já o anúncio do conceito de individualismo na sociedade que se seguiu. Mas foi a parte mais negativa desse individualismo o que o público e as massas escolheram e seguiram. É esse que vigora nos nossos dias. Toda a ironia está em que o indivíduo escolhe sempre a cada passo, é sempre um “risco” que se repete e diminui as possibilidades de escolha até não poder escolher senão o desespero e a solidão. A figura trágica de D. Giovanni da ópera de Mozart é a petrificação final com a estátua do comendador que o conduz ao inferno da desesperação total.

 

      Só que há duas formas de solidão e, a que o homem de hoje escolhe é a hipótese que o filósofo rejeitou. A religião seria decisiva para despertar o espírito de O individuo” e levá-lo a viver na categoria da solidão “absolutamente só no mundo inteiro, só em face de Deus.[i] A consciência do pecado é do que hoje se foge. Os valores relativizam-se em extremo, a noção de transgressão seja de que lei for não tem condenação total e há sempre justificações com as mais variadas opiniões e debates bizantinos. A interiorização, que o filósofo queria, da situação do homem diante de Deus e a vida pela fé chegou ao não-sentido, ao absurdo.

     Acentuar o pecado sem o colocar face à força e coragem da fé, é ver um filósofo pessimista e não ver a sua “alternativa” de uma alegria que não está no mundo. Ninguém pode fugir toda a vida ao sofrimento. Mas se cada um encontrar um sentido para o seu sofrimento relaciona-o com a alegria que serve a Deus e não o mundo. Não de pode amar o homem apenas na sua condição de humano. Mas para chegar ao estádio que Kierkegaard chama estádio religioso é preciso a solidão que exemplifica na sua vida e na quase autobiografia “O Temor e o Tremor” em que a figura de Abraão é o mais forte símbolo da fé. Acreditar no paradoxo, no absurdo, na mais perfeita solidão da estrada na vida. A perda do sentido e a perda da crença redundam num desespero sem possibilidades de saída de um círculo infernal. Se o pecado desaparece, a culpa é total num paradoxo que se descobre pela globalização na localização. Todos somos culpados. O peso da responsabilidade obriga a uma fuga sem destino para onde não se possam ouvir  ou saber das vozes que gritam dor, miséria e morte.

      A solidão revela o ser humano porque se mede consigo mesmo. A sua força é posta à prova tanto objetiva como subjetivamente.

 

 

 

Ilustração 1- Irene Lisboa, uma contradição do eu século

 

 

     As formas objetivas de solidão são mais fáceis de investigar, de estratificar e organizar por grupos, locais, e situações vivenciais. Os sociólogos podem tratar do assunto mas não o resolvem. As ciências humanas proliferam sem resultados práticos no que respeita ao problema da existência. A literatura é um meio, se bem que bem frágil de entender a subjetividade da solidão. Doença ou cura, a solidão e os seus rostos depende da personalidade que a vive. Não há nenhum juízo definitivo.

    A solidão na obra de Irene Lisboa e a de Robinson Crusoé parecem perfeitamente opostas. Na consciência de ambos a ausência dos outros toma formas distintas por razões psicológicas e físicas. Irene Lisboa é uma pessoa só, no meio de muita gente que fala com ela, uma multidão que a rodeia mas não a “”. Robinson sente saudade dos seus, de todos e de ninguém e rodeia-se de uma herança cultural que põe em prática. Ambos buscam as suas memórias para vencer a situação. Ou na escrita para ela ou no trabalho para ele,

 

 

Ilustração 2 - A amizade entre o cão e o dono é o sentimento mais humano que prevalece no isolamento da ilha

 

 

    A Bíblia, os seus escritos,  o seu cão, o mais fiel dos animais, e o primeiro a ser domesticado, tornam Robinson semelhante a um bom e inteligente agricultor e aplica todas as suas aprendizagens na adaptação à ilha deserta. A construção da sua cidadela é a imagem da sua sociedade do seu século. Inventa com base em tudo o que a imaginação lhe permite através da herança cultural que tinha trazido para a ilha.

Irene Lisboa vive toda a vida a solidão da infância, aquela que determina a personalidade, a torna isolada, tímida, reservada. A sua inteligência é um ferrete na tremenda sensibilidade que carrega, “amarrada a si mesma” como se descreve. Uma espetadora atenta que não se atreve a atuar. A escrita salava-a se si mesma e de um mal infantil com interrogações para a vida inteira. Atordoa-se de perguntas mas sabe as respostas amargas que não quer aceitar. As suas perplexidades são comuns a nós todos, mas ditas com Irene Lisboa por assunto central e que não ama nem se sente amada. A sua solidão pungente, carregada de escuridão, tem algum raio de sol com um animal ou uma flor. No resto, torna-se viúva de si mesma numa dor que a solidão nunca define.

 

    A pretexto do suicídio, Durkheim[ii] dedicou uma comparação entre a solidão masculina e feminina. O contexto do século era outro e o sociólogo, não é um psicólogo. Assim encontra razões muito plausíveis para a diminuta quantidade de suicídios femininos, face aos suicídios masculinos. A sua conclusão é preconceituosa mas todos o somos. Afinal, somos filhos do nosso tempo. O homem suicidar-se-ia muito mais porque a solidão lhe é insuportável e a mulher suporta-a pois tem um sentido prático, o seu espírito acanhado “rudimentar” contenta-se com cuidar de um gato ou de um cão, plantas e arranjos da casa associados a obras de caridade ou religiosas e “a viúva ou a velha celibatária tem a vida cheia.” A solidão num viúvo seria mais pesada porque um homem é um “ser social mais complexo” com uma base moral mais dependente de necessidades sociais e a “individuação exagerada” com tristeza e depressão leva mais ao suicídio. O casamento trazia assim muito mais benefícios para a estabilidade do homem do que para a mulher, Ao ficar privado do lar, o homem perde a dedicação feminina que o levava e suportar a vida.

       A sociedade multiplicou os papéis femininos e o cariz da solidão alterou-se. A individualização excessiva de Irene Lisboa enriquece-lhe a subjetividade, a escrita sublima o suicídio. Nela está inteira, sem disfarces, e projeta os outros. Face à ausência de alguém que se esperava encontrar na multidão, num local combinado torna essa falta exasperante, invisível supera o visível, o solitário não adere à massa, a sua solidão é o peso da liberdade, empurra para a inadaptação social.

     Se Durkheim nos oferece dados interessantíssimos sobre a solidão objetiva, a sua subjetividade, extremamente complexa, não se define. Não há solidão subjetiva mas solidões individuais. Múltiplas formas negativas e positivas condensam-se em objetividade e subjetividade. A obra premiada de Gabriel Garcia Marques pôde transformar em memória “Cem anos de Solidão” que  metamorfoseia em  contador de histórias em esplendores da memória e do imaginário que esta oferece e é pela solidão, que ele próprio diz, que encontra a verdade da sua obra.

       A memória povoa qualquer solidão de modo único. Esta é a porta para todos os mundos possíveis da criação, do pessimismo, da pobreza ou da riqueza da vida interior. Um dado é certo. O isolamento total é fatal, causa a morte ou a loucura. Na autobiografia “Pappilon” acerca da biografia de um prisioneiro na Ilha do Diabo, o castigo da ida para a solitária”, semanas ou meses a fio mostrava-se mortífero. A disciplina mental, aplicada com o máximo rigor, pelo prisioneiro é que o tornou dos poucos que não sucumbiram a uma pena tão horrivelmente impiedosa.

        O ser humano quanto mais complexo mais necessita dos outros, mas não é necessariamente pela forma física. Perturbar a solidão de alguém com o bom pretexto de apoio ou de ajuda requer a maior delicadeza e cuidado. As rotinas e os diversos hábitos do solitário são penosamente contrariados com a presença de alguém, um intruso, que vem por bem, mas se  transforma numa ingerência que rouba as presenças mágicas que a memória traz ou  tarefas que muito agradam ao solitário.

      Ouvir as queixas de uma pessoa só é entrar em domínios inimagináveis para quem não aprendeu a diferenciar cada subjetividade na sua trajetória. A riqueza do mundo interior supera a presença de multidões e proximidades que se revelam falsas.      Não se passa o mesmo nas regiões remotas e isoladas onde a vida sempre decorreu sem ajuntamentos. As pessoas aceitam sem grande dificuldades a pastorícia, ou a vivência em locais que aparentam não terem nem conforto nem convívio razoável.

      Em “O Velho e o Mar” Hemingway fala de um homem pescador que nunca sente o vazio que a solidão no mar lhe pode dar. Uma vida no mar é povoada de lutas, de sonhos, de mil variantes de uma rica subjetividade que não se sente isolado no alto mar, o seu ambiente mais natural.

 

 

Ilustração   3  - O mar está carregado de sonhos, de magia e de desafios que levam o homem a não se sentir só

 

 

   Mas o  individualismo das megametrópoles, nas novas sociedades globais tornou-se num paradoxo que rouba a vida interior e obriga a uma exterioridade em constante mudança. A dissipação do tempo inicia-se cada vez mais cedo. A ausência de valores passa a um estado comum inter geracional. O ruído deu lugar a uma audição constante de música, a televisão sempre acesa nos locais menos previsíveis, o cuidado paranoico com a imagem revela a fuga da continuidade, as emoções superficiais, a procura exasperada do prazer imediato manifesta o medo de se enfrentar sozinho. A música, em especial, é o fundo sonoro de todos os locais como se um anúncio de festa e de alegria artificial que vai do dentista, a uma operação financeira ou uma ida ao supermercado. Nos transportes torna-se numa forma de afastar a presença da massa e tornar o individuo mais ligado, mesmo que virtualmente a um divertimento que deve ser, por imperativo social, constante.

     A fantasia e a fuga da realidade levam a que a solidão seja nos nossos dias vista com desespero. O homem, frente a si mesmo, é o mais infeliz. Busca as redes sociais tao ilusórias, usa-as para libertar-se e torna-se prisioneiro do sonho até este se tornar em pesadelo. O tempo descobre o vazio interior ou dá uma força indómita à solidão. Tudo depende de ter um palácio, uma cabana ou uma prisão por memória. Povoar a memória ao longo da vida recolhendo, a cada passo, milhões de impressões, vozes, conselhos, avisos, criticas, polvilhar de dias felizes, de risos, de ecos de vozes doces, amar a vida sem falar dela como quem ama a felicidade e não o diz com medo de a perder é aprender a gostar de estar só. Não há um desconhecido que mente, nem um contador de fantásticas aventuras, mas a escolha que a memória faz é nossa. A solidão, de que resulta o tempo que passa, nos tornará sua grande amiga, ou então a nossa maior inimiga e, em vez da saudade longa, pintada pelo arco iris, teremos uma noite sem lua, vozes que riem no escuro, medos infantis que regressam…

    É então que o telemóvel, o rádio, o telefone e toda a parafernália louca do exterior que atordoa tenta apagar os murmúrios da memória. A solidão revela-nos a nós mesmos. Face aos outros, temos de representar, de aceitar a sua presença que nos retira do casulo interior, mas a verdadeira metamorfose, que nos transforma em nós mesmos só acontece pela coragem de mergulhar bem fundo no cerne da solidão. Sem isso, a aparência que oferecemos aos outros roubará a verdade do existente. No fundo, a solidão de Kierkegaard é o caminho. A ponte entre o homem e Deus só se pode atravessar só, na mais autêntica ausência de todos os outros, das suas certezas e das suas verdades. A escolha do superficial rouba o tempo e não tem piedade com o passado que condiciona todo o presente.

 

 

Ilustração 4 - Entre a admiração do solitário que se extasia face ao Infinito do mundo das estrelas está o abismo do pavor dos que se aterram ao descobrir como são minúsculos.

 

 

 

    A dialética da escolha acaba por ser cada vez mais solipsista pois os outros estarão cada vez mais distantes na sua proximidade que nos vê com a maior indiferença e nos rouba a liberdade. Daí a frase bem conhecida de alguém que deseja a todo o preço o poder: “Falem bem ou falem mal, o que eu quero é que falem de mim”.  Se a escolha é uma forma de liberdade traz consigo a mutabilidade do tempo e cada vez menos possíveis estarão do nosso lado. O risco é inevitável para quem vive no presente. No contexto ético o mesmo não se dá porque valoramos uma escala de escolhas e há uma continuidade temporal que não tem nada a ver com quem vive no e para o imediato. O amanhã não conta!

  O encontro do eu com o eu é a confirmação de que somos uma unidade e todos os papéis representados uma farsa que a sociedade impõe.

Esta imposição pode ser tão severa e trágica para a condição humana que no interior nos transforma num vazio. É então que temos medo de enfrentar a nossa pobreza interior e nada que o mundo ofereça satisfará esse íntimo fragmentado em tantos outros que se tornam insuportável escolher qualquer um deles que os outros aceitam mas é a nossa mentira. Ao ficar só já não é preciso de máscaras porém a força da imagem e do social é tao forte que sem representar o individuo sente-se perdido. Todo o tempo que resta e que seria de se enfrentar e de tomar consciência do que é, transforma-se numa preparação para a entrada em cena. Esta forma de solidão é inautêntica porque não se assume como tal. É uma forma de estar nos bastidores a viver intensamente a hora de entrar em cena. A situação fica insustentável quando já o centro está ocupado e ninguém mais repara na presença de um marginalizado que se torna invisível, aos olhos dos outros, e no anonimato que lhe é insuportável.

 Tolerar a solidão é não precisar de fingir para ninguém porque a humildade de nos conhecermos e de aceitarmos as nossas imperfeições fará gostar de estar só. Deixa de ser um estado que se suporta para se transformar num estado que se prefere É então que se sabe unir toda a memória e entender que a vida que vivemos é fruto de uma passagem no tempo com existência autêntica.

 


 

[i] Kierkegaard, S. Point de Vue, O.C. editions de  L Orante, Paris, 1971 pp.98

[ii] Durkheim,, Émilie, O suicídio, Estudo sociológico, 1973, Editorial Presença, Livraria Martins Fontes, Biblioteca de Estudos Universitários , nº 5 pp. 240-242.

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