"  Rosa dos Ventos " 

  •   Sobre o "rumo" de três Jovens.

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

 

 

 

" Simetria das divergências"

 ( Folha seca de palmeira. Jardim Botânico.  Zona do "campo Alegre". Porto. 2014 )

 © Levi Malho.

 


 

 

 

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Legenda 1 - Cada amanhecer traz no bolso milhões de surpresas

Quadro  (“ Fog in the Morning" )

 

 

 

No seu quotidiano, cada ano é mais um que gira numa roda de acontecimentos repetitivos. Apesar das mudanças e de novas celebridades, personagens, tiranos, mortos e nascimentos, o palco pouco se altera. As máscaras são outras e ironicamente as mesmas.  Durante séculos, milhões de seres só vagamente aspiravam a uma vida melhor, com menos miséria e impostos tão ruinosos, só se impunha pensar na sobrevivência do dia seguinte. A indignidade da desigualdade e desumanidade de um sistema social tão longo tornara-se natural e se impunha com férrea lei por longas eras da noite dos tempos

Durante séculos, Tubinga, foi uma cidade de grande prestígio e, curiosamente, Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, foi professor universitário desse velho centro cultural.

 

 

 

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Legenda 2 - Gravura antiga da cidade de Tubinga

 

 

Nos fins do século XVIII, o Seminário teológico luterano pela sua fama, foi o local onde Schelling, Hegel e Hölderlin viveram uma etapa da sua juventude. Ligados por laços de amizade no despertar de novas ideias que os tornaram rebeldes, críticos da política e da religião. A cultura e desenvolvimento intelectual da infância e da adolescência foram invulgares e permitiram que conciliassem os seus conhecimentos já vastos. Assim seguirem caminhos que os tornou, cada qual a seu modo, uma referência do movimento romântico e do idealismo filosófico, não só alemão mas atingindo uma escala universal.

 

 

 

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Legenda 3 -  A praça central da cidade no inverno.

Gravura do século XIX Ao abandonar Tubinga, os três amigos não imaginavam que as suas vidas se iriam transformar tanto e até a sua amizade não venceria o tempo. Apesar da correspondência epistolar, até este meio de comunicação cessará.

 

 

 

 

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Figura  2 -  Hölderlin consegue a unidade do Verbo  que falta nos dois seus amigos Hegel e Schelling

 

 

 

Na Europa, e depois pelo globo inteiro, reflete-se e sucedem-se transformações tão graves e complexas que jamais a história foi tão célere e o seu ritmo cada vez mais veloz. As mudanças que abalavam os alicerces da sociedade não se sentiam tanto à superfície. O regicídio anuncia a morte de um deus que ainda pairava acima das cabeças de todos. Com a desaparição do conceito «Le mort saisit le vif», que Bourdieu[i] também desenvolveu nos seus conceitos, os grandes e carcomidos portões da velha mentalidade fecharam-se estrondosamente e, até agora, os seus ecos ainda se escutam. A figura do rei na terra apenas representava judicialmente o poder divino. O interregno seria um tempo sem deus. Os juristas medievais encontraram na forma menos chocante ao dizer. “O rei morreu! Viva o Rei!”, para a continuidade do poder sagrado.

Um regicídio, como o que condenou em tribunal o rei Luís XVI, não condena apenas um homem à morte, baixa a lei do céu à terra e transforma e revoluciona toda a mentalidade. A transcendência da lei e do direito desaparece. Sem esta base, sem a separação do direito da cidade e do direito natural, a lei perde a sua universalidade divina e é apenas um resíduo de uma certa noção da natureza humana, num relativismo cultural. Ao abrirem-se, as portas de um novo mundo atemorizaram porque ninguém pagara o preço da sua liberdade e, até então, aprendera que tudo tinha um custo a pagar neste ou no outro mundo.

No ano de 1807 acontecimentos de extrema gravidade, tanto sociais como pessoais, dispersam inevitavelmente e para sempre estes amigos e companheiros, por razões que tocam mesmo a loucura e a tragédia. Se Napoleão já entra em Iena, o patriotismo não é o forte dos seus habitantes e muito menos para Hegel. A  passagem das tropas pela cidade só o fascina pois teve a oportunidade de “Ver a alma do mundo a cavalo”, na figura do imperador dos franceses, representava uma nova etapa do espírito e exalta os seus sentimentos com um entusiasmo e coragem, que lhe faltaram até então, para expor as suas ideias.

Nessa altura, publica a sua obra-prima “A fenomenologia do Espírito”. É para o final que se reserva redigir o célebre “Prefácio” que o seu mais diligente e dedicado tradutor. Jean Hippolyte[ii] anotou com cuidado extremo.  Durante o tempo de Tubinga e do companheirismo dos três colegas o idealismo de Schelling  repercutira-se em Hegel. Apesar de mais ser 3 anos mais novo do que os outros dois estudantes, Schelling trazia já um saber profundo, de Platão, a Espinosa, da antiguidade e cientistas que ajudaram na formação intelectual de Hegel.

 

 

Legenda  4 - Só o árduo trabalho e o estudo intenso ajudam a justificar que estes três jovens tão diferentes tivessem vidas tão espantosas

 

 

O período de Tubinga foi o de uma unidade de grande riqueza intelectual e amizade que infelizmente não resistiu à separação. Anos antes, as três famílias, escolheram a via eclesiástica para a estabilidade dos seus filhos. Gravíssimos acontecimentos revolucionavam a Europa e repercutiram-se no espírito dos jovens. Mergulhados num turbilhão de sentimentos e de mudanças sociais surgem alterações psicológicas e pessoais e, o certo é nenhum quis seguir a vida religiosa.

Schelling foi um autor bem precoce e escreve uma obra de cariz bem sério ainda adolescente. Se teve a boa sina de poder estudar com os melhores mestres, também deve a esses e à amizade e apoio de Goethe para poder, tão jovem ainda, ascender a professor em Iena. Aí, o seu sucesso é enorme, tem admiradores, discípulos, uma obra que ficou ligada a Kant e depois a Fichte a quem substituiu na cátedra em 1799. Porém “o esplendor da sua atividade durou dos 23 aos 28 anos.” Carolina Schlegel ao abandonar o marido para se casar com ele causa uma perturbação no meio cultural e em Weimar. Mas o transe mais doloroso sucede quando Hegel reduz a escombros a sua obra. Hegel ironiza causticamente o idealismo transcendental do amigo. Schelling, face a tal afronta, sofreu um tal abalo do qual não recuperou. Nunca mais a escrita jorrou fácil e profunda, fresca de vigor.

 

 O desenvolvimento e quebra da sua prodigiosa capacidade mental mostra um distúrbio psicológico possivelmente devido aos estudos precoces e sucesso tão rápido que o derrubou.Por sua vez, Hölderlin tinha um temperamento reservado e melancólico, as suas crises depressivas surgiram bem cedo.
     Até Hegel se queixa por temer e por si. A irmã, Cristiane Louise, depois de muitas crises, suicidou-se. Há autores como Urdanoz que referem uma  hipocondria acompanhada de depressão. Hegel teve estudos bem intensos na infância aprendeu muito cedo latim, com apenas 5 anos e depois grego, hebreu, até leu a obra completa de Shakespeare ainda criança.
[iii]
    O medo que demonstra em contrair uma depressão, ou
loucura, está patente em diversas cartas e queixa-se mesmo de um ambiente em Frankfurt que temia pela sua morbidez. Ora precisamente viera da Suíça para evitar um ambiente que não lhe agradava nada e não gosta também da nova cidade
 

 Hölderlin sofreu mais que todos porque tinha um temperamento muito mais sensível e ser tutor de crianças mimadas por pais ricos era espinhosa tarefa. Entre o posto de mestre e a categoria dos criados, a sensibilidade do filósofo estava constantemente posta à prova. O estatuto era ambíguo e logo isso refletia-se na possibilidade de ter autoridade.

 

 

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O seu romance com a bela Susette, esposa do banqueiro e mãe dos seus quatro alunos, acaba em tragédia. Transfigurou-a em Diotima, pela alusão à figura da grega inspiradora de Sócrates no que respeita ao amor.

     Após o último encontro com a amada, em 1800, o infeliz poeta ainda procurou conforto junto de Hegel que se apercebeu do desespero do caso.   Só muito tarde soube da morte de Susette, o seu estado agravou-se e mergulhou na loucura. Por isso existe um período da obra com uma beleza e harmonia na unidade da palavra em que a musicalidade tem profundidade ôntica. A segunda fase alcança um estranho modo construtivista, precursor de uma poesia solta e carregada de silêncios.
[iv]
 

Nietzsche foi o único que admirou a intuição poética e tragicidade da sua obra. “As palavras nascem como flores” disse Hölderlin. É a fusão entre o céu e a terra, a harmonia das esferas, a musicalidade pitagórica que une Atena e Zeus e que a poesia encontra na sua fonte. A sua atormentada existência tem uma segunda fase. Passou 36 anos num estado de demência que os médicos nunca decifraram.  A perturbação de Nietzsche, no final da sua vida, surge como uma repetição do génio e da loucura, irmãos da tragédia e do destino.


 

 

NOTAS:


[i] P. Bourdieu, «Le mort saisit le vif», in Actes de la Recherche en Sciences Sociales,

n.s 32-33, 1980.

[ii] Hegel, G W..F. La Phénoménologie de l ´Esprrit,  traduit par Jean Hipollyte,  Aubier, Editions Montaigne, Paris Collection  Philosophie de l ´Esprit,  Lavelle et Le Senne.Bamberg et

 
Wurzburg, Chez Josph Anton Goetbhardt 1807

[iii] Urdanoz, Teófilo, Historia de la filosofia, siecle XIX, Vol. IV.Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1985

[iv] Kundera, Leandro, Uma razão quase enlouquecida, Editora Campos. Brazil 1991.