" Dicionário de Cassandra "
Sobre o que se "não deve Ler"
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )
" O lado de lá"
( Ferragem setecentista de "portada". Sé do Porto. Zona "histórica" Porto. 2014 )
© Levi Malho.
Já avisei.
Tenho a certeza de que é bem capaz de escrever muito melhor do que eu e de realizar outras atividades mais lucrativas do ler este arrazoado. Limitei-me a tirar um punhado de palavras no dicionário e cá estou a colocá-las a esmo, sem o devido cuidado para alavancar a linguagem nem burilar arestas. Quando ando à procura de mais palavras velhas que não conheço, recordo sem querer Ogier P., o autodidata, amigo de Antoine Roquentin, que Sartre inventou para a sua obra prima “A Náusea” e reconheço que tem muitos sósias à solta por aí. Olhar para uma prateleira carregada de livros é o mesmo que entrar num dormitório sem despertador. Que pacífico sono tem aquelas palavras todas.
Legenda 1- Que entusiasmo dá! Só de ver tanto livro o coração exulta de alegria
Foi deste adormecimento que Camões sacudiu forte Vasco da Gama e mandou-o para a Índia embrulhado em “Os Lusíadas.” O sono de Vasco da Gama era mais forte que o sono dogmático de Kant mas o imperativo categórico camoniano foi mais forte do que tudo.
Tratou-se de uma escolha engenhosa. Podia ter tirado um outro, Gil Eanes, Diogo Cão, mas os nomes nem são poéticos. Não é que não goste muito de “Os Lusíadas”, mas tenho pena de Pedro Álvares Cabral e a obra que ninguém escreveu “Os Brasílidas” daqueles que deram mundos ao mundo dos mapas. Entre o Brasil e a Índia, Camões não hesitou e tirou da lei da morte uma série de gente. Escolheu os amores de D. Pedro e de D. Inês mas, muito mais árduos, apesar de esquecidos, seriam os amores de D. Fernando e as suas três Leonores.
Legenda 2 - D. Leonor a terceira quanta história tem para contar
Talvez menos romântica mas sempre atual, D. Fernando com as Leonores são ainda retratos vivos e bem mereciam lendas. Sem Camões, não tínhamos o Adamastor nem depois aparecia o Mostrengo. Normalmente, os textos não começam nos dicionários, estes são mais os centros hospitalares das letras onde chegam ambulâncias de palavras para tratamento urgente.
Não há texto que não se cimente em outro trecho, mesmo que seja um inimigo, de modo que nunca há texto original!! Escreve-se pelas margens, por textos amnésicos, que nem reconhecemos, ou mal lembramos e pelas ruas já gastas de muitos caminhantes.
Depois de muito perguntar, “de como foi, quem teve a culpa, como se explica, quem ganhou e quem perdeu”, os adjetivos servem de acompanhantes indispensáveis como o sol na praia ou o sal na sopa. Os textos são todos elaborados de palavras que toda a gente usa e conhece. Depois, escritos sobre já velhos e gastos extratos, de tal modo que, perdida pelas margens, fica a história de nós todos e o que não se escreve é o que é verdadeiro.
Nenhum intérprete nem nenhuma testemunha é perfeitamente fidedigna e o “fiel da balança” só servia para pesos e medidas antigas, quando a edilidade tinha um fiador de sua confiança e os impostos pagos para um trabalho que tinha a ganhar e a perder de ambos os lados. Agora a verdade dorme como sempre e os escritos avançam com aqueles que sobreviveram e sabe-se lá as causas. Custa tanto a acreditar que se fosse á Índia só por causa de especiarias, se a canela era capaz de despovoar o reino, na voz de Sá de Miranda, e a noz moscada e outros condimentos fizeram girar o mundo.
Dito assim, parecer que tudo o que se escreve é mentira e logo também estou a mentir. Mas o que acontece é que quem interpreta tem sempre a sua história pessoal e a sua distância. Acredito que ninguém encontrou ainda razão para ler isto que estou a escrever, nem encontra novidade nem coisa que valha. Já o devia ter abandonado. Bem aconselhei. Lealdade não me falta e posso mesmo acrescentar que com todos os preâmbulos, aposto que qualquer leitor desse lado, já estava a pensar, ali vem “coisa” e, de repente eu tirava o coelho da cartola.
Então era para isto!?! Pois não me enganaste e percebi logo que trazia pulga atrás da orelha. Mas evitando coelhos e pulgas, ando para aqui a falar da
canela, dos dicionários e do afeto sem retorno às palavras adormecidas.
Aprendi muito bem o que deve estar a pensar o leitor indeciso. Sei muito bem o que se diz quando temos mestres em casa, isso mesmo, mestres, não disse professores, mestres daqueles que falam com um prego na boca e batem na parede para ver se ainda apara o golpe á traição. Os mestres para obras e consertos chegam sempre apalavrados apenas com o contrato oral de que serão só os indispensáveis e mais urgentes arranjos que a casa precisa. Porém… já agora….
Já agora” … e toca a dar mais uma mão de tinta, mais um saco de cimento para aqui e outro ali e aquela porta que range, agora nota-se mais que esta estante está torta, ou a torneira ainda pinga, depois de todos os esforços dos bravos marinheiros vindo da Índia que se transformaram em mestres…Já agora…
Há quem diga que os portugueses nunca mais fizeram nada depois de descobrirem a Índia, ao menos falassem no Brasil. Daí ser pátria de poetas, de escritores, de mil artes que não vendem como o cimento em tempos de verão. Escrever é uma dependência como outra qualquer. O uso das dependências é eufemismo em tempos eufemísticos. Com um certo jeitinho, tudo se diz.
Faltar à verdade em vez de mentir. Desmotivado em vez de preguiçoso. Bipolar em vez de vira casacas, vítima de doença prolongada em vez de tumor incurável, desaparição repentina em vez por suicídio ou assassinato. Levar uma boa surra não passa de excelente exercício de musculação. Roubo tem limite e, a dado montante, passa a ser desvio de contas, erro de cálculo ou aumento inesperado, ou controlo errado da despesa No fundo, todos damos a alma ao criador.
Também esta frase é politicamente incorreta. Implica o criacionismo, tão combatido, ter alma, o que muitos já perderam e ninguém quer dar nada de tão boa vontade. Gostar de ler também é dependência. Há mesmo muita gente que já leu mais do que um livro, em vez de se contentar com o jornal e os apontamentos das aulas!O verdadeiro gosto pela leitura é raríssimo. Quem gosta de ler, lê tudo e ler tudo é ler o dicionário ou melhor, como o autodidata, ler a enciclopédia sem saltar nenhum volume. Leitura integral, com notas de roda pé e tudo. Quando se usa as palavras com rigor tudo quer mesmo dizer tudo e nada não pode ser pouco. Escrever com originalidade é impossível. Só se consegue escrever alterando a ordem que o dicionário impôs. Mas todas as obras literárias, todas as ciências, todas as artes estão lá. Umas já saíram mas a maior parte espera como todos os doentes pacientes pela sua vez
Curioso é o caso de ser bem raro que algum escritor confesse o uso da enciclopédia ou do dicionário, nem tem a humildade de dizer que foi lá que encontrou as palavras que não são suas mas de todos. Claro que há exceções para tudo. Conheci um jornalista que depois de escrever um artigo simples ia ao dicionário, em vez da palavra que colocara lutar punha pugnar, a antigo ia procurar vetusto, depois de colocar mau, colocava iniquo e soava-lhe bem a obliquidade do transcendente. Barroco de manhã, belezas e cinzas de tarde. O êxito não faltou Joias como “a veracidade mirifica” são exemplos das isagógicas vicissitudes de um curriculum.
Um bom dicionário é uma obra de arte, só por fora já brilha de encadernado a ouro e pele de lontra. Enfeita lindamente uma biblioteca ou até mesmo dá caudas de pavão a uma simples estante. Há lindíssimos livros de culinária escritos por homens, com grande talento e lidos por mulheres sem talento nenhum, ou vice-versa, o resultado é o mesmo. Um jantar estragado. Já as receitas culinárias da Internet nunca acabam sem muitos elogios e abraços de amigas ou enviam para outro sítio e o resultado é um sabor pavoroso, cola-se na travessa, deixa muito a desejar pois os ingredientes são complicados e próprios de pecadores.
Legenda 3 - Tão Fácil É o mesmo do que como diagnosticar sem doente
É mais difícil inventar palavras do que receitas. Com a monomania da religião da saúde colocaram-se as virtudes nesse culto e todos os pecados passaram a ser erros de “estilo de vida”, sedentarismo, em vez de “caminhadas”, imprudência em não beber litros de sumos de couve, cenoura e “limpar” o organismo. Não há pecado mas há culpa de ser hipertenso, de ser gordo, de aparentar velhice, de não ter dentes, ou ser meio careca, coisa quase desesperante em mulher.
No breviário de agora, fazer dieta para o verão, substitui lindamente os jejuns e as penitências de outrora. Cinco dias a caldo com cinzas, para nem ter prazer em comer pela conversão dos pecadores, dos infiéis e gentios, transformou-se em emagrecer sem morrer de fome. O título dos livros de receitas e autoajuda são sugestivos, mas não é preciso lê-los. Qualquer rótulo traduzido é muito simplesmente apenas isto: acredite.
Depois de ler o livro está menos magro. Depois de seguir os conselhos para arranjar amigos está mais pobre. Depois de não se preocupar mais com o trabalho, está despedido. Depois de dizer sempre corajosamente a verdade. está preso. Depois de aprender a ser auto confiante e feliz, ninguém tem mais paciência para o aturar. A grande vantagem dessas obras é que se desiste a meio da leitura se saltam capítulos e não chegam a causar dano. A virtude sempre foi oculta pela perversidade bem sucedida.
Quando se escreve para ser aceite ---- o que não é o meu caso, já avisei e bem --- nada melhor do que aconselhar a ser bom e esconder o mal. Afinal é tão necessário haver ladrões como haver advogados, É preciso haver gordos para se tornarem magros, feios para se tornarem lindos, alcoólicos para vender bebidas, doentes para haver farmácias, médicos e todo o cortejo sem fim. No fundo, o mal é que faz o bem.
Se me atrevo a dizer isto, é porque já em 1714, se disse isto. Não estou a ser original. Apareceu uma obra tão polémica que deixou quem a leu a ver o mundo às avessas e com receio de ficar bem pior. Ao contrário da tese de Leibniz, do melhor dos mundos possíveis, é obra de Bernard Mandeville com a sua “Fábula das Abelhas” quem apresenta o resultado do império da bondade, da virtude e do saber.
Legenda 4 - A grandeza de uma obra como a de Bernard Mandeville mede-se pela incapacidade de a entender e continuar a trabalhar.
( Repare-se no seu ar irónico e bonacheirão com que nos observa. )
As pessoas não mais invejavam os outros, abandonaram o luxo, a roda da moda parou, não são precisos mais vestidos novos nem brocados para cortinados, sapatos consertam-se e os bêbados desapareceram, bem como os preguiçosos e os aldrabões. As prisões esvaziaram-se, os campos de batalha transformaram-se em hortas, as pessoas não eram perversas e o egoísmo desapareceu-
O resultado de tudo isto, não o que se possa pensar ao sonhar um mundo tão virtuoso onde todos estariam em paz. A sociedade estagnava, ninguém procurava as lojas, acabava a venda de milhões de coisas, os empregos não eram precisos pois cada um se contentava com o que tinha e abolia o luxo. Respeitava-se o saber, a virtude, a verdade e a ética. Assim, nem eram precisos professores, nem padres, nem advogados, ou carcereiros.
Legenda 5 - As abelhas são os animais mais estúpidos deste mundo, depois dos homens.
A colmeia das abelhas de Mandeville extinguia-se depois de um tempo de estagnação. Assim seria e o autor do poema a terminar; “Num conjunto musical, os sons dissonantes produzem unidos um acorde” e a sociedade é isto.
Se alguém já não quer ler mais, agradeço a companhia até aqui. Mas bem aconselhei não me atire culpa. Creio bem que não desiludi ao escrever que não devia ler isto. Se já sabia foi inútil, se não sabia, é triste saber que o egoísmo é bom, a ignorância é saudável, a tirania necessária, a corrupção e os malvados mais o nosso querido egoísmo são um bem. O bem não salta à vista e nem deve saltar porque o que faz o mundo bom é por ser tão mau!
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 15. Maio. 2014
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