"Sócrates no poder."

  • Elogio do "ócio""

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

   

 

 Das coisas que permanecem

[ © Porto, batente de casa abandonada .Edifício antigo da zona d a " Foz".   . 2004. ]

[ © Foto digital . Levi Malho]

 


 

 

Não! Não! Não me estou a referir ao “nosso” Sócrates, mas àquele outro que era grego, seu homónimo, e morreu só por teimosia por tanto amar a Lei. Se fosse a falar do “nosso” Sócrates, começava pelo nariz que é, na minha modesta opinião, obviamente feio! Tão feio como talvez fosse o do Sócrates grego que, ao que se sabe, não primava pela beleza! E acho que as semelhanças terminam por aí.

A sede do poder do Sócrates grego porém enraizou-se de tal modo nos homens que se esqueceram de que tal poder não era para governar, para ser rico, para ser famoso mas só para Ser. E esse seria o poder maior. Quando se não É, parece que se tem de mentir muito e logo o nariz vai crescendo como o do Pinóquio que, por cada mentira dita, logo o nariz lhe crescia.

Tenho um certo interesse em narizes, desde que ouvi falar acerca do nariz de Cleópatra que mudou o rumo da história e já agora o de Tycho Brahe, o grande astrólogo dinamarquês, que tinha um de metal, se bem creio era de ouro, a substituir o verdadeiro por o ter perdido num estranho duelo às escuras. O nariz de Cirano de Bergerac tornou-o infelizmente mais famoso do que a sua obra, só lhe trazendo desgostos e o actor francês Gerard Depardieu, que o representou não lhe fica atrás quanto ao nariz! Em Vila Franca, alguém, dotado de desesperada pontaria e muito mau gosto, partiu o nariz do Infante D. Henrique, aquela belíssima obra de estatuária que, em 1932, com grande pompa e circunstância, foi colocada no Largo com o seu nome. Mesmo sem nariz, é espantosa como a obra de Simões de Almeida, Sobrinho, deixou, como que marcada pelo sonho, pelo vento e pela brisa marítima a figura idealizada do Infante de Sagres! Entretanto, por todo o lado por onde passo, lá vejo o nariz do João Garcia que perdeu o nariz mas subiu ao Evereste. Não sei se ficará célebre por subir ao Evereste ou ter perdido o nariz, mas o certo é que como publicidade, não é lá muito atraente nem me parece eficaz!

Mas o Sócrates I, como pode também ser chamado, embora em filosofia não hajam reis, nem ainda muito menos dinastias, podia ser tudo, mas estar no poder é que me parece que não parava lá muito tempo.

Por mais que tente não sou capaz de o ver a governar uma vila, uma cidade e menos ainda um país!

 

Sócrates era pouco querido por Oliveira Martins.

Não, não, também não me estou a referir ao Oliveira Martins que aparece na televisão e está vivo, mas ao parente dele já falecido que, embora por breves tempos, também esteve num Governo. O Oliveira Martins, o falecido, chamou nomes feios ao Sócrates, detestou-o e a ele atribuiu a decadência da filosofia na Grécia. Antero, seu amigo, desta feita, indignou-se e insurgiu-se forte e feio, criticando destemperadamente o livro do pensador lisboeta “O Helenismo e a Civilização Cristã”, embora esta obra lhe tivesse sido amavelmente dedicada. Quem tinha razão?

Escrevia assim Oliveira Martins, o falecido:

   «Em vão se procuraria, na sua doutrina (de Sócrates) o alcance metafísico da revolução a que está ligada o seu nome. O carácter do ensino socrático é inteiramente moral e prático. O seu espírito repele as especulações metafísicas; o seu cepticismo nega as certezas da razão. (…) Incapaz de compreender a alta harmonia que resulta das divergências da razão individual, Sócrates alcunhava de loucos os filósofos do seu tempo. (…) A pureza da fisionomia de Sócrates não destrói o carácter involuntariamente perverso da sua inovação. Ninguém foi mais justo, ninguém teve um género de santidade mas perverso do que aquele a quem o destino mandou empregar toda a subtileza do seu engenho, a força do seu carácter, em destruir o já minado edifício da cultura helénica»[1].

   A reacção de Antero foi negativa, as suas críticas, em cartas[2], tomam o tom indignado da defesa de Sócrates, falando em «confusão deplorável» e não aprofundando o problema da ascensão da vertente moral e da decadência da filosofia pré socrática devida a uma humanização que desemboca num pessimismo platónico do mundo das sombras, no dualismo antropológico e na caverna. Mas, lá está o problema do nariz, a dado passo, Antero bem refere Sócrates como «o homem de nariz torto» o que bem vem fundamentar as minhas suspeitas da importância do nariz!

A tradição dá palmas a Antero mas, lá da Alemanha, o desajeitado génio Nietzsche que, ao escrever um livro considerado depois magnífico, só conseguiu vender um único exemplar e hoje é uma referência imprescindível, gritou bem alto contra Sócrates e atribuiu-lhe ainda maiores males do que o nosso Oliveira Martins.

Quebrando tradições, como quem quebra algemas (ou narizes), em Nietzsche há ecos das palavras de Oliveira Martins nas suas admoestações a Sócrates:

 «O moralismo dos filósofos gregos (…) reveste-se de caracteres patológicos; deve-se imitar Sócrates e estabelecer uma luz diurna em guarda contra os apetites obscuros: a luz diurna da razão. Há, a todo o custo, que ser claro, sereno, qualquer concessão aos instintos, ao inconsciente, conduz ao abismo. (…) Sócrates fascinava: parecia um médico, um salvador. É preciso agora demonstrar o erro que existia na sua crença na racionalidade a todo o custo» E mais adiante remata: «Sócrates foi um equívoco»[3].

Freud também aplaudiria esta reacção a esta teimosia de Sócrates pelo racional. Não fosse ele o investigador do inconsciente…

Quando Sócrates chega estamos já no final de uma época, começa uma decadência que levou Nietzsche a afirmar que um dia seremos todos julgados diante de um juiz implacável por esta civilização. A travessia do deserto continua até que chegue o super  homem e pelo poder da vontade o homem dirá SIM à vida. Nada melhor para os portugueses que há séculos esperam o salvador da Pátria. Será que Nietzsche estaria bem no poder?

Pelo menos, no que respeita a perguntar, Sócrates era mesmo irritante. Declarando não saber nada, lá ia chamando ignorante a toda a gente e encarreirando os discípulos todos na mesma direcção. Pode ser que a direcção fosse muito boa mesmo. Mas o poder de argumentar não é o poder de governar ou de ter a verdade na mão e muito menos o saber mandar. Será que Sócrates saberia isso?

«Só sei que nada sei» é mais uma afirmação muito contestável. Porque há muitos Sócrates por aqui. Parafraseando Hegel, há um que sabe pelo menos que não sabe e isso é saber, há outro que não sabe nada, um outro que não sabe que não sabe e ainda o outro que diz que sabe e que não sabe. Saber que sabe que não sabe é o mais importante. Por isso ele foi chamado «o moscado» por ser mesmo irritante como um mosquito sem Dum Dum.

À roda de Sócrates, o filósofo, é claro, as pessoas agitam-se, irritam-se, deslumbram-se. Mas no poder, como é que Sócrates podia governar? Parece que foi à guerra, mostrou valentia com a espada, mas não escreveu coisa que se visse, apenas interrogava tudo e todos e se declarou pedagogo com escândalo dos atenienses mais desconfiados. A filosofia foi sempre algo que despertou suspeitas, infelicidades de entendimento, irritações contra a mania de muito pensar.

Aquele Sócrates tinha a teimosia de pensar. Como se pensar não fosse o que todos os seres humanos vivos estão a fazer a toda a hora! O problema é que Sócrates dava por isso! E acusava toda a gente de pensar sem saber o que fazer com fenómeno tão precioso como frágil! Também se é só para interrogar também de pouca valia será .

Há forças que só são bem fortes no contra poder. Como o poder de Sócrates. Ele dizia-se aconselhado por um Daimon, isto é uma espécie de «anjo» e não de um assessor de impressa, como hoje tanto se usa e abusa. O Daimon inspirava-o e ele, quer seja um xamã ou um sábio,  o mais digno dos homens ou o mais desconcertante, conseguiu a proeza de deixar um discípulo que não tem homónimo que se saiba em parte alguma. Onde é que se viu alguém chamado Platão? É isso. Platão, que quer dizer largo de ombros, é nome que os pais não se lembram de dar os filhos, nem no Brasil, onde abundam os Elnitos, Delétridos, Fabinos e Tolotas e outros ainda bem mais sugestivos. Mas posso muito bem estar enganada e já haver muitos Platões quantos os platonismos!

O perigo de Sócrates está todo na herança. É que o seu discípulo Platão escreveu. Escreveu muito até. Todavia boas razões existem para muita gente sensata torcer o nariz às filosofias nem sempre muito bem entendidas. Têm altos riscos. Um dos maiores é que esses filósofos, escrevendo maravilhosamente, estão nos alicerces de tantas tiranias como acontece frequentemente em especial quando a vontade se torna teimosia e esta se transforma em fanatismo!  

Sócrates há muitos, como Vasco Santana dizia: Chapéus há muitos!!!

Um pobre moribundo que já se via morto, embora estivesse rodeado de doutores, murmurou desanimado e já sem esperança: São muitos os médicos, mas nenhum é verdadeiro!

Sócrates sacrifica-se na ara da Polis, quer tenha ou não iniciado a decadência grega, a sua morte mostra um compromisso total com a sua missão. O risco está todo na sacralidade da lei, na tirania de uma racionalidade teórica que mata sem piedade na prática.

Também são muitos os narizes, mas raros são os famosos e nenhum muda este mundo!

Sócrates bem pode procurar a verdade, bem pode pregar pelo valor da ciência, (hoje pregaria pela tecnologia mais avançada) mas lá no fundo, mesmo amando muito a lei, faltou-lhe a tolerância. Aquela tolerância que não vem da razão mas do respeito pela diversidade, pelos afectos alheios e pela nobreza da Vida encarada como Ser.

Stuart Mill, (1806-1873) o economista e filósofo inglês com todo o seu pragmatismo, dizia ironicamente: «Vale mais um homem insatisfeito do que um porco satisfeito; vale mais ser Sócrates insatisfeito que um imbecil satisfeito». (O Utilitarismo, 1861).

Nós, para bem ou para mal, também temos um Sócrates, que não é nem grego nem filósofo, mas pode governar e oxalá, ao menos, nunca esteja satisfeito!

 Nietzsche, diante de tudo isto, gritaria: Esqueceram-se do eterno retorno!!!

Não é em vão que os seus leitores se assustam quando ele diz:  - Eu não sou um homem, sou dinamite!

Apesar de toda a herança e das constantes flores para o túmulo do Sócrates, o grego já morto, temos nas mãos um presente envenenado. Uma herança que não se recusa. Uma liberdade que todo o povo deseja ardentemente. A utopia da Polis helénica com um Poder oferecido à cidadania e o sonho da Justiça da Lei. A conciliação entre a Lei e a Liberdade no seu sentido mais perfeito. Porém o homem, «entre a besta e o anjo», como dizia Aristóteles, discípulo do discípulo de Sócrates, se conseguir governar só tende para a solidez do poder. Quem se arrisca ao poder, arrisca a cidade, a loucura, a solidão.

Numa democracia que se estende a milhões de seres humanos tão diferentes e tão condicionados, a ilusão do poder arrisca-se a dar a todos uma ilusão de força e cada um, afinal está tão fraco, só e louco no meio da massa anónima da multidão.

O valor atribuído à segurança torna o sistema uma condenação a que o trabalho dá sentido. O louvor ao trabalho tem por trás o medo do tédio em que o ócio no seu mais elevado sentido se transformou. Pensar aterra horrivelmente o indivíduo que prefere a massa, à descoberta do verdadeiro sentido do humano: A suprema glória de ser pensante! Essa pela qual morrem os poucos Sócrates da História!

Então, o perigo da cicuta regressa para alguém que reaja à apatia e insista em pensar. Alguém que faça perguntas, que nunca trabalhe senão pelo gosto do pleno ócio com aquela liberdade que não está escrita em parte alguma. Alguém que sabe possuir uma propriedade única, que torna a gritar bem alto. «Ousa pensar!» e mete o nariz onde não é chamado. Porque ninguém é chamado para pensar apesar disso dever ser a primeira natureza do humano. O Mamífero predador, desenraizado do seu habitat,  há muito que devia estar extinto mas trata as questões tecnológicas e científicas de hoje com a superficialidade da razão que lhe retira a conquista de ser um sapiens, sapiens. Nenhuma pergunta devia satisfazer Sócrates porque a sabedoria é «simplesmente isso».

É esse «isso« que tanto incomoda, está a mais, significa o perigo mais assustador de todos os perigos para os governantes, o ócio na sua plenitude de sentido humano!

Sócrates no poder?

 

Será sempre a última ilusão, a mais funda contradição entre utopias e realidades

 

 


[1] O Helenismo e a Civilização Cristã; Guimarães Editora, Lisboa, 1951, pp. 227-278.

[2] Cartas –Antero de Quental, Organização e notas de Ana Maria Martins, carta nº.33, pp. 112-122

[3] O crepúsculo dos deuses, Obras Completas, 1962.pp. 404-406.