"  Mulheres dos Abismos " 

  •   Em torno de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

 

        

" Nunca saberemos"

 ( Rua das Flores. ( Pormenor de fachadas de prédios ). Porto. 2013 )

 © Levi Malho.

 


 

 

 

 

Mulheres "fatais"

 

 

 

       Temida pelo “anjo do lar”, que vagamente sempre se apercebeu da sua existência, amaldiçoada pelas instituições religiosas, admirada com curiosidade pelos homens em geral, a mulher fatal atrai o trágico. No mundo masculino, a mulher fatal é um mito ou abismo referida com um misto de ironias e de fascínio que arrasta consigo a queda de muitos homens e, na maior parte dos casos, acabando quase ela própria sempre na miséria na miséria ou de forma trágica. Nesse capítulo tanto se pode encontrar Mata Hari, La Pavia, Isadora Duncan, Wallis Simpson.

 

 

 

Fig. 1 -  Wallis, a americana que sonhou ser rainha e foi toda a vida duquesa de Windsor

 

 

     No caso de Sarah Bernhardt, que além ser uma grande atriz, era uma mulher inteligente e prática, escapou de um fim trágico, pois conservava os apaixonados como amigos. Ao morrer ainda tinha uma boa fortuna e o respeito do povo francês pela sua extraordinária maleabilidade de representação que foi da Comédia à Tragédia, passando pelo cinema, o que se pode dizer uma prova de fogo. Sofreu a amputação de uma perna e todavia a merecer sempre a admiração de quem a via em cena por essa Europa fora com um cortejo de cães, malas, apaixonados, criados e mil objetos imprescindíveis que a tornavam exótica só ao sair de uma carruagem numa grande cidade.

      Neste caso, a que nos reportamos não se descobre nada semelhantes nem há qualquer comparação com Ana Plácido, a quem se pode chamar uma fatalidade para Camilo e a perdição para si mesma. Camilo dizia que “há uma mulher fatal para cem homens e um homem fatal para mil mulheres.”

Só o nome de Camilo tornou o caso de Ana Plácido conhecido e o seu nome abandonou o anonimato da respeitável burguesia portuense.Depois de se tornar esposa de Manuel Pinheiro Alves, do seu rapto e consequente prisão, ficou presa na Cadeia da Relação do Porto. Foi só então que o caso passou a apaixonar a opinião pública portuguesa pois o raptor era Camilo Castelo Branco, e o escritor já era famoso.

      A obra “Amor de perdição" – com o subtítulo “Memórias duma família”, entre Teresa de Albuquerque e Simão Botelho, dois jovens de famílias inimigas, pretende reviver essa paixão e tornou-se, com ou sem razão, a mais popular das suas obras.

 

 

 

 

Fig. 2 - Uma capa sugestiva da novela de Camilo

 

 

      Sendo a mais referida das obras deste autor, dentro do estilo romântico da época, não se pode considerar como o que de melhor consta da sua obra pois esta, além de vastíssima, é multifacetada e Camilo teve de escrever, muitas vezes, forçado por problemas de sobrevivência. Ao entrarem juízos críticos da obra, estes estão sempre muito relacionados com a subjetividade dos leitores e, ainda mais, quando quem os lê é um investigador ou estudioso de literatura que tem mil facetas que até o tempo altera.

       Discute-se se foi Camilo, ou foi Eça, o maior romancista português. Nunca se chegará a consenso, nem tal discussão tem sentido pois são, por temperamentos e contextos sociais, poetas e romancistas bem distintos. Estarão sempre presos à sua sensibilidade, ideologia e à dos seus críticos, a que não podem escapar. Eça esboça-se nalgum personagem, mas é um espetador curioso, por vezes sarcástico, ou então incarna um personagem a que refere com a sua ironia incomparável.

       Na extensa obra de Camilo, através da sua galeria de quadros femininos, profusamente tratados, alguns em ligeiros esboços, combina-se a paixão, o ridículo, a abnegação, a vileza, a loucura e a sedução a descrever o percurso vital feminino através das possibilidades que são imanentes ao íntimo da mulher que assim se manifesta nas formas que apresenta. A prosa de Camilo, ao referir-se à mulher, usa as razões do coração, relativas ao cruzamento de uma dialética de sentimentos, e não a razão abstrata de uma lógica que determina, como que, à custa da régua e compasso, a mediação de qualquer partida para já determinar onde vai chegar.

 

 

 

 

Fig. 3 - Uma das raras imagens de Ana Augusta Plácido, depois Pinheiro Alves, quando era ainda muito jovem.

( O fatalismo e enigma na vida de um escritor )

 

 

 Os lances do imaginário camiliano, com toda a força do seu engenho, têm pontos comuns com muito do que se passava à sua volta. Ana Plácito apresentará muitas facetas das diferentes heroínas das suas obras que se situam quase sempre no norte do nosso país ou na cidade do Porto que se diz ser a cidade do escritor pelo afeto que lhe tinha as longas descrições que lhe dedicou.

  O vocabulário camiliano encontra na nossa língua uma mina semântica sem igual que explorou com o maior zelo burilando frases com uma veia vernácula surpreendentemente carregada de conceitos revividos, tal qual um escultor a burilar a pedra com o seu cinzel. Desdobra-se em retratos femininas de perfis bem díspares, mas sem nunca deixar de estar ligado ao âmago da onticidade primordial feminina. A mulher realiza tarefas que são imanentes à sua feminilidade mas também se move no exterior, no que se diz ser a sociedade e a história. Camilo, ao invés de Eça, emociona-se, surpreende-se, ridiculariza, mas também enobrece, admira, cobre do manto da compaixão os desvarios e as misérias, a mesquinhes e a maldade e assim a ação da mulher não tem a crítica realista da sociedade portuguesa que dá um outro mote à escrita queirosiana.

As manifestações coletivas repousam fundamentalmente na transcendência que a ação subjetiva no íntimo da condição humana realiza com a determinação tanto feminina como masculina e torna possível a evolução das mentalidades. Só muito lentamente se realiza a compreensão da figura da mulher, não só porque a alienação vem do homem mas também porque a própria feminilidade tem oportunidade de refletir sobre si mesma, porque se hostiliza e divide de um modo que nunca acontece entre os homens e que leva a mulher a não se realizar e a temer a liberdade que não aprendeu ainda a usar.

 

 

 

 

 

Fig. 4 - A literatura romântica tem uma trajetória fatal para as burguesinhas desocupadas.

( Quadro de Fernand Tousaint  )

 

 

 

Camilo foi narrador e personagem. Muitos são os seus livros em que os personagens são o pretexto para descrever acontecimentos históricos ou desvarios de um fanatismo religioso que denuncia com violência ou sarcasmo.

 

 

 

 

Fig. 5 -  Com o enorme mosteiro ao fundo, esta é a praça principal onde se realizava a feira semanal.

 

 

As terras de Cabeceiras de Basto foram um cenário paradigmático da ruralidade, espantosamente real para o romance de fundo histórico “A bruxa do monte Córdova”.

Ainda há alguns tempos atrás, olhar para aquele local e aquelas gentes lembrava logo a prosa de Camilo. O tempo levou a frescura e a emoção da escrita e o local perdeu também o cunho rústico que parecia brotar, por entre desabridos carreirinhos de pedra, riachos, valados, campos e silvados. A atenção não entende tão pesado mosteiro sombrio e altaneiro até se perder a noção das proporções do imaginário e da realidade, pelas alturas a que se encontra o Arcanjo dos cimos do vetusto templo.   

    A subjetividade da cultura é a vida real, no seu passar subterrâneo e oculto, mas não menos verdadeiro do que o objetivo, entre estes dois seres que se manifesta exteriormente na qualidade do masculino. Através dos seculos a ação e a obra no feminino repousa no que não se registou mas aconteceu ou mesmo na sombra permitiu que acontecesse. Infelizmente quase toda a escrita dá apenas vida ou recorda o que o mundo masculino ditava.  Na obra de Camilo há uma experiência torrencial de vivências que o tornam um poderoso observador do feminino em Portugal na sua época.

 

 

 

 

Fig. 6 - A ironia das ironias.

( Quando uma nota de cem escudos tinha um alto valor a figura de Camilo aparece quando na realidade as dívidas foram um dos seus grandes problemas )

 

 

   Nada predizia que viesse a conhecer Ana Augusta Plácido (1831-1895) uma burguesinha portuense e esta se tornasse numa companhia para o resto da sua vida. As discrepâncias de nascimento, educação e vivências eram perfeitamente opostas entre estes dois seres.    Tratava-se de uma, entre muitas das jovenzinhas, futuros descuidados e pretensiosamente “anjos do lar, com alguma cultura e educação próprias do estatuto a que pertenciam no meio das famílias portuenses. Ana, bem cedo foi prometida a um rico pretendente, um negociante de bons cabedais que voltou do Brasil depois de fazer fortuna. Os Plácidos eram abastados e tinham 12 filhos. Uma das jovens casou mesmo com o filho da famosa Ferreirinha, a mulher que se tornou a mais rica de Portugal.

Ana Plácido, depois de se tornar esposa do riquíssimo negociante Manuel Pinheiro Alves, do seu rapto e consequente prisão, ficou presa na Cadeia da Relação do Porto. Foi só então que o caso passou a apaixonar a opinião pública portuguesa pois o raptor era Camilo Castelo Branco.

Queira-se rotular o escritor do que quer que seja, e ser-se-á parcial. Se foi romântico, essa é a sua época, de vernáculo e de príncipe da prosa recorde-se a sua boa memória e os seus estudos e ao acusá-lo do estereótipo nas suas obras a tal não se pode escusar pois repare-se na necessidade imperiosa que teve de viver quase só da escrita. No fundo o escritor está com o sentir português de uma época na qual o seu nome ficou indelével. Se cultivou tanta forma literária, é porque assim era: polémico, dramático, lírico, convencional, revoltado, leviano ou impulsivo e ainda com o riso solto em forma de fugas ao convencional e de crítica que zurzia fanatismos religiosos, hipocrisias e corrupção social.

Ana Augusta Plácido conhecera Camilo ainda solteira, possivelmente nos seus passeios sem destino pela cidade, ou nos bailes que ambos frequentavam. A suposição de ter conhecido ao escritor num dos bailes da Assembleia portuense, aos 17 anos, embora muito divulgada, carece de fontes credíveis[1].

 

 

 

 

Fig. 7 -  Imagem de a Assembleia Portuense local de diversão e de bailes no século XIX e reunião da burguesia portuense.

 

 

Espanta muito que, todo o bom senso que teria por educação e condicionalismo social, não alertasse Ana Augusta para quem era realmente aquele escritor, um homem com um passado que mostrava claramente um temperamento aventureiro, boémio, irascível e com um tão grande número de casos amorosos que só abriria um abismo aos seus pés um relação tão desastrosa que só originaria tragédias.  

     Camilo ficou órfão muito cedo, tinha apenas um ano de idade e, tal como aconteceu com José Maria Eça de Queirós, as circunstâncias iniciais das suas vidas foram logo marcadas por um anonimato materno e dolorosa infância sem pais, nem um lar de afetos.

Se foi a Póvoa de Varzim que Eça viu primeiro, Camilo teve por terra natal a capital lisboeta. Parece que a tragédia era a estrela funesta que o seguia. As origens aristocratas da família dos Botelhos levaram a que aos 4 anos fosse perfilhado por seu pai mas este morreu 6 anos mais tarde. Criado por uma tia e depois por uma irmã, e andou sempre por terras sem paradeiro seguro, nem educação metódica. Se casou com apenas 16 anos em Ribeira de Pena com uma filha de lavradores, muito jovem também, Joaquina Pereira de França com quem se instalou em Friúme logo partiu para os preparatórios para dar entrada na Universidade. Em Vila Real enamora-se por Patrícia Emília do Carmo de Barros, mas entretanto parece que combate ao lado dos miguelistas, na famosa Revolta da Maria da Fonte, sendo por isso perseguido e bem maltratado e espancado por duas vezes. Passou pelo posto de amanuense e teve amores com uma freira Isabel Cândida. Pouco tempo depois, em 1848 abandona definitivamente Patrícia Emília e vai refugiar-se dos inimigos em casa da sua irmã em Covas do Douro. Resolve ainda partir pra o Porto e aí segui o curso de Medicina, mas abandona tal curso pelo de Direito que também não conclui.

No ano de 1850, dá-se o casamento de Ana Plácido e, entretanto Camilo vivera já uma série de paixões, devaneios, aventuras e vida de boémia.

 

 

 

 

Fig. 8 -  A atitude estudada. Uma mão na fronte e outra a suster a pena simbolizam a vida entre a realidade e a imaginação do escritor e poeta.

 

 

 

Foi então que parece tocado por uma espiritualidade influenciada por motivos que não são muito claros e inscreve-se 2 anos em Teologia,  no Seminário. Daí sai de novo, agora com 33 anos e uma fama de vida sem rumo, ligado a grupos de boémia, à mistura com o seu inegável talento. Fisicamente era um homem com ar com o seu ar macilento, o rosto marcado pela varíola, o escritor, para além de magríssimo e anémico, possuía o olhar e a voz que iam do sarcasmo à lírica e de quem se já esperava um inevitável destino fatal. A inquietação e a prolixidade das obras vão a par a sua vida toda. Por todos os lugares onde passou ou onde viveu, a insatisfação era sempre a mesma e quer no campo onde foi forçado a viver, ou nas cidades, a escrita parece ser o maior lenitivo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

       Já no ano de 1848, Camilo frequentava locais onde o acaso o levaria a encontrar Ana Augusta, uma sua irmã e outras amigas. As meninas burguesas portuenses frequentavam a Assembleia Portuense ou a Sociedade Filarmónica onde se misturavam senhores da Praça do Porto, brasileiros abastados, assim nomeados pelo seu regresso à pátria, morgados, poetas e intelectuais que não se poupavam às rimas à “mulher anjo”. Tais versos depois apareciam nos jornais, com a discrição precisa para não denunciar excessivamente a visada.

 

 

 

Ilustração  1 - A cidade do Porto no século XIX, a Invicta da qual se diz que é o local onde Portugal trabalha enquanto Lisboa é onde se diverte.

 

 

       Onde se encontravam as jovens das famílias portuenses?

Apareciam no Passeio de São Lázaro, nos camarotes do teatro de São João, nos bailes da Assembleia Portuense, na Sociedade Filarmónica, nas redentoras Misericórdias e Irmandades  onde os  cavalheiros ganhavam honrarias. As mulheres sempre podiam parar ou rezar nas igrejas ou trocar olhares com seus admiradores nas idas e vindas dos colégios da atarefada rua de Cedofeita, onde as manhãs se cruzavam com as lavadeiras de linguagem crua, os vendedores de toda a ordem que se misturavam com gentes apressadas do imprescindível guarda-chuva a mostrar como eram cautelosas.

 O Porto sempre com as suas igrejas e capelas a pontilhar de portas convidativamente abertas, a implorar quem passasse uma dádiva de tempo, com candelabros de prata, na penumbra de  ricos altares obscuros e mal iluminados por velas acesas em preces que alguém sempre inspecionava num conforto gritante com o bulício que vinha de fora.

 

 

 

 

 

 

 

Não é ainda em vão que ainda se diz, com certo orgulho, que o Porto é a cidade do trabalho e Lisboa a cidade para divertir.

Assim se esboça, em traços largos, a cidade portuense, provinciana e burguesa, com as suas contradições, hipocrisias e políticas, solidamente estruturadas no metal circulante. Apesar disso, também os boémios e filhos de famílias abonadas ou estroinas, artistas ou poetas que enchiam de veros as páginas dos jornais, possivelmente se redimiriam se fado lhes fosse afável e se casassem com uma rica herdeira. Aparecia por um estranho acaso um lugar vago num ministério, ou enquanto tomavam um título, ou um cargo no grémio, uma fortuna inesperada que, depressa era distribuída às mãos cheias, ou acauteladamente assegurada.

 

 

 

 

 

 

Fig. 9 -  Igreja de Santo Ildefonso, no centro da cidade do Porto.

( Ainda hoje se reconhece o local se bem que não hajam "elétricos", a não ser turísticos, mas muito ainda recorda a cidade oitocentista.)

 

 

     

     Ana Augusta Plácido apesar de mostrar em solteira a sua preferência por Camilo, não deixou de se casar com Manuel Pinheiro Alves e este demonstrou sempre e notoriamente a grande afeição que nutria pela noiva e depois pela esposa.

Ao que se pode ver pelas poucas imagens e se afirma acerca do  aspeto físico da Ana Plácido não se revela grande beleza, nem mesmo na sua adolescência aparentava aqueles atrativos que normalmente são apanágio das mulheres fatais ou amores infelizes que a história escolhe para recordar.  Há porém que considerar como mudam os cânones da beleza, a força da moda e as descrições das beldades que Camilo nos deixou. A beleza de Florinda, por exemplo, descrita no romance histórico  “A bruxa do monte Córdova” não tem atrativos para o homem de hoje e basta falar no seu buço como uma lanugem acentuada que o romancista elogia, no tom da pele branca que recorda as açucenas e hoje se tenta para pensar nos contrastes do tempo.
     É bem ousada qualquer apreciação estética dos homens e mulheres de cada época pois muito se mudam os padrões e os gostos.
O certo é que, um dos biógrafos Rocha Martins[2] sócio da Academia da ciências de Lisboa[3], que muito investigou e forte lastro de testemunhos e citações apresenta, refere-se a Ana Plácido dentro de um ultrarromantismo que assolava como epidemia à cidade e ainda arrastou a prosa do jornalista biógrafo.  

A sociedade burguesa que se edificara no Porto oferece a perceção de que se tratara de um casamento com um pretendente com todos os requisitos para ser um bom partido e que seria bem acertado para a família. Não era um caso invulgar dentro normas da burguesia laboriosa que via no casamento a aliança e o contrato da conjugalidade, mantendo as normas sociais tão a jeito e benefícios de todos, público e privado. Se a menina aceitasse o brasileiro rico que a adorava, todos se sentiriam satisfeitos e em breve Ana sorriria com alguma ironia dos seus tolos devaneios e do seu interesse por aquele estranho que, por certo, só lisonjeara a vaidade e a curiosidade que tal facto revestia.

E o certo é que, na verdade, Ana mostrou submissão, obedeceu a seu pai e casou com 19 anos com Manuel Pinheiro Alves que, se dava ares de moço, já tinha atingira os 43 de idade. Apesar das diferenças de juventude e maturidade, tratava-se de um caso comum. Nunca isso fora impedimento tano mais que era o marido é que era mais velho com o dobro da idade. Se assim acontecia no Porto, na Alemanha e na França, por toda a Europa considerar-se-ia um bom casamento, sem devaneios de leituras poéticas ou das arias de óperas e operetas tão em voga, agora que os ventos da guerra civil se apagavam e a paz da bonança se espalhava pela cidade que bem merecera o nome de Invicta.

 

 

 

 

Ilustração  2 -  Fotografia de Manuel Pinheiro Alves, pertencente à sua família e cedida para o livro de Rocha Martins

 

 

A figura de Manuel Pinheiro Alves, no melhor do seu perfil, nem se assemelha a um rústico. Na foto que representa o brasileiro pode ver-se um homem alto, magro, que tem um ar firme e só se acerta a idade pelos cabelos brancos pois, no mais, mostra uma postura comum a tantos casos como o seu. Só o hábito não faz o monge, não se lhe pode acusar de aparentar o que não podia ser. O porte tinha distinção que escondia a rústica origem das terras de Souto e provavelmente ter uma esposa galante e fresca como era Ana seria o culminar das suas esperanças da paz de uma vida burguesa sossegada e por certo com numerosos filhos tal como o seu sogro, pois Ana Augusta contava com 11 irmãos.

A presteza com que ajudou a família dos Plácidos mostra a sua solicitude. Tendo os seus escritórios na Rua do Almada, logo para lá conseguiu boa casa onde instalou a sua futura família.

 

 

 

 

 

Ilustração 3 -  A casa onde Ana Plácido residiu durante o tempo do seu noivado, na conhecida rua do Almada, e que muito cuidou de por lá passar Camilo, para ver a menina que não se escusava de aparecer.

 

 

 

 

 

 

 

Era um casamento burguês como tantos outros no comum das instituições sociais. Só que a sua sorte seria marcada pelos desgostos e Ana reservava os seus pensamentos para si. Provavelmente as leituras retiraram-na cedo da serena beatitude da ignorância, ou lhe dessem uma visão de idílicas aventuram, bem longe da realidade. Embora a existência corresse mansamente e tinha um marido orgulhoso de tão jovem esposa e a quem atendia os caprichos e procurava adivinhar os seus desejos, parece que Camilo estava sempre na sombra dos seus passos. 

  Há muito que os Plácidos desejavam uma viagem à capital. Por vontade do pai era suposto que todos juntos fossem a Lisboa no vapor “O Porto”. À última hora, Ana desistiu e ficou com uma irmã. O trágico naufrágio foi uma página negra da navegação nos nossos rios. O medonho desastre ceifou 50 vidas e apenas 9 se salvaram. Estava-se no ano de 1852 e a cidade ficou de luto como nunca antes se vira por uma tragédia que enlutava muitas famílias burguesas pois não se tratava de uma viagem normal mas sim um passeio recreativo que acabou logo na saída da barra quando o vapor bateu por enorme fatalidade num rochedo no sítio da Lage.

  Não era uma das habituais tragédias de marítimos, de pescadores que, arrostando quotidianamente com o perigo, se viam de vez em quando devorados por águas revoltas. Tratava-se agora de passageiros, incluindo velhos e crianças, que, julgando-se a salvo num novo transporte, acabavam por sucumbir ali, junto à margem, aos olhos de toda a gente e perante a incapacidade de socorro de terra.[4]

  Por causa deste lance trágico, ficou a altiva e rica Ferreirinha muito mal aceite por toda a cidade. A frieza do seu olhar gelado ao passar na sua carruagem inglesa chocou o povo sentimental e emotivo. Não teve sequer uma palavra de consolo para o filho a quem morria o sogro. Bem diziam os mais pobres que nunca mostrava estar presa a afetos e era demasiado fria face à família e a tudo o que não lhe merecesse interesse. Os comentários nos jornais causaram uma má impressão que depois passou para o povo em geral.

 

 

 

 

Fig. 10 - A lenda e a realidade não mostram a verdadeira Adelaide, a famosa Ferreirinha.

( Por certo que não atingiu uma tão grande riqueza sem uma inteligência à altura e um jogo de negociante que manifesta um espírito nada romântico ou dado a devaneios nem mesmo muito bondade até para com  a sua  família )

 

 

 

Não se prendia a afetos dos quais não tirasse lucro e o povo reprovava o afastamento do filho e as relações com os ingleses especialmente o Barão Rochester. D. Adelaide Ferreira conseguira o que outros tentarem sem alcançar. O reservado grupo de ingleses recebia muito bem a viúva Ferreira apesar do seu círculo se fechar à sociedade portuense. Mais tarde, a ideia de se casar novamente, o que aconteceria com Francisco José de Sousa Tavares, futuro par do reino que só o foi devido ao casamento novos reparos fez na boca do povo.  

     A reprovação do desapego da viúva e mãe, sem amor ao filho, foram temas de jornal pois, nem para animar os desolados Plácidos, se movera nem sairá da sua carruagem inglesa, passando com uma indiferença arrepiante para os corações mais bondosos[5].

 

    D, Antónia Adelaide, a rainha do Douro como chegou a ser conhecida por toda a riqueza que do vinho do Porto obtinha, ou seja, a Ferreirinha, tinha facetas que não passaram do povo e de jornais da época mas nunca para os livros em que se louva a sua benemerência e apoio aos pobres especialmente os vinhateiros.

     Esta foi a primeira tragédia que caia fulminante na casa dos Plácidos e que Ana Augusta suportou no meio dos conflitos de mulher casada e a presença constante da lembrança dos poemas do enamorado Camilo que não a deixavam indiferente.  Retida em casa com o luto, nem assim, Ana Augusta afastava Camilo do pensamento pois lia os seus escritos e poemas nos jornais, podia ler em folhetim o seu primeiro romance “Anátema” nos jornais, ou sabia que aparecera no São João, a recitar versos que espantaram os burgueses, por tais desacatos. Era de causar escândalo e espanto em toda a roda da burguesia da cidade.

Num rompante de excessos e criando a estupefação do público que assistia a um espetáculo de beneficência dedicado a um pobre poeta, Francisco Bingre, Camilo verseja em voz alta.  Ao prestar a sua  homenagem ao poeta de 80 ano,s reduzido à pobreza, e que ficou para sempre com por cognome de “Cisne do Vouga”, é Camilo que no espetáculo e, do seu camarote, declama com a sua voz tonitruante e a versejar sobre o amor e pasma um público que se lhe rende:

 Não venho curvar-me às potencias da terra,

Portanto meus hinos algum preço tem;

Lisonjas vendidas que a honra desterra

A mim não mas peça no mundo ninguém

Ser rei da indigência?

Que importa? É um rei!

 

 

O público ficou comovido e rendido à sua arte. Camilo pode assim manifestar a sua cultura e citar Milton, Homero, Cervantes e tantos outros universais que conseguiu empolgar o público e que por comover quem pouco se costumava emocionar assim. O pública feminino encantado e choroso, limpava as lágrimas de tão romântico lance.

O Porto rendia-se ao talento do escritor. Este foi um dos mais atos mais falados de Camilo e provavelmente Ana soube logo do acontecimento. Tudo leva a crer isso pois a reação da família foi imediata.Foi noite de glória e de comoção com generosidade dos bolsos dos burgueses para o poeta que tão pobre e desamparado.Camilo mal dormiu até ouvir, alta madrugada, baterem-lhe à porta. Era o cunhado de Ana Plácido, António Bernardo Ferreira que o vinha afrontar de um modo a apagar toda a alegria.

Em troca da pena do escritor, que lha cedeu julgando ser um gesto de paz e que, momentos, sentiu que a sua glória conseguira tocar no coração daquela família, tratava-se de um ultraje que lhe preparara. O Ferreirinha, ao chegar ao portal, apresentou-lhe uma prenda, um cavalo esquelético, quase morto em pé, com que queria menosprezar Camilo. Este devolveu o animal com um dito de espírito que correu a cidade. Trocar a pena, que escrevera tão comoventes versos na véspera, por um pobre animal, após ser tão aplaudido, foi uma desfeita que mostrava bem que o filho da Ferreirinha tinha um carácter insultuoso que nem respeitaria a mãe e irmã.

 

A cidade Invicta foi um local onde teve as mais variadas paixões, com uma vida de vadiação, até que se torna jornalista, escritor e conhece a alta-roda da burguesia portuense, os seus cafés e locais de boémia.

Participa, sem ser muito a gosto, na questão coimbrã. Entre Ramalho e Antero, Camilo torna-se o intermediário para tentar aplacar a fúria com que chegava Antero à cidade. Assim descreve o caso, o destemperado Antero:

 

 “O caso era cómico e não trágico. Ramalho Ortigão escreveu insolências bastante indignas a meu respeito num folheto a propósito da sempiterna questão Castilho. Eu vim ao Porto para lhe dar porrada. Encontrei, porém, o Camilo (…) que antes das vias de facto, ele iria falar com o homem para ele dar satisfação. Aceitei. A explicação, porém, do dito homem pareceu-me insuficiente e dispunha-me a correr as eventualidades da bofetada quando me veio dizer o Camilo que o homem se louvava em C. J. Vieira e Antero Albano com plenos poderes de decidir a coisa e que fizesse eu o mesmo em dois amigos meus; na certeza de que uns e outros seriam considerados padrinhos de um duelo (!) no caso de se não entenderem a bem... Que can-can! 

 

      Por sua parte, Camilo narrava no seu estilo sem se referir ao seu papel de medianeiro da paz que não resultou na pacificação de ânimos:

 

         “Em 1866 na belicosa cidade do Porto, defrontaram-se de espada nua dois escritores portugueses de muitas excelências literárias e grande pundonor. Correu algum sangue. Deu-se por entretida a curiosidade pública e satisfeita a honra convencional dos combatentes. Alguns dias volvidos ia eu de passeio na estrada de Braga e levava comigo a honrosa companhia de um cavalheiro que lustra entre os mais grados das províncias do Norte. No sítio da Mãe-de-Água apontei a direção de um plano encoberto pelos pinhais e disse ao meu companheiro: Foi ali que há dias a «Crítica Portuguesa» esgrimiu com o «Ideal Alemão»!”.

 

   O jogo da sedução nos encontros e bailes, entre Camilo e uma senhora casada, passam a ser menos discretos. A cidade é provinciana. Camilo sempre fora impulsivo e nada cauteloso. A passagem pela casa de Ana, na Rua do Almada, tornou-se diária e a correspondência inicia-se com sinais evidentes de mútuo agrado, traduzindo-se num perigo social que vai acabar em tragédia burguesa.

    Os olhares de Ana e de Camilo, nos bailes da Assembleia do Porto, em breve, se transformam em “amor clandestino” sob a análise de Maria Amélia Campos. Esta biógrafa vê em Ana uma coragem invulgar. Mas dando atenção às influências românticas e ao tipo de vida desocupada, deve-se prestar mais atenção ao contexto da vida de Ana Plácido. Por seu lado, mais circunspecto e profundo, se bem perca muitas vezes o fio da meada densa dos acontecimentos, Rocha Martins tem um apoio forte nos dados que usa e mostra uma multiplicidade de factos que aprofundam toda a questão.

A idealidade de Ana transformou Camilo em herói. De facto, a correspondência podia ser muita entre ambos, podiam mesmo ver-se de longe, mas na realidade mal se conheciam.

É muito importante salientar este facto pois daqui deriva uma série de acontecimentos futuros. Um breve diálogo, uns versos carregados de sonhos, uma imaginação que transforma tudo radiosa paixão, não tem fundamento  lógico e muito menos pode mostrar  solidez para a vida real.

Ana Augusta imagina-se “a mulher fatal” e repete-lhe isso, vezes sem conta. O medo e o orgulho parecem guiar a pena que assim escreve. Na verdade, aquele seria mesmo o seu homem fatal por a conduzir à pobreza, às suas irascíveis cóleras, aos seus novos amores que Ana não conseguiria evitar. O passado desse homem devia ser-lhe bem conhecido, mas há, em algumas mulheres, a atração pelo abismo. A ingenuidade de imaginar que aquele valdevinos e lírico poeta, que também era homem de muitas e breves paixões, não lhe daria grandes desgostos, é uma atração para o abismo.

Há uma inconsciência da realidade e um mergulhar num precipício, sem considerar o passado assustador do enamorado escritor. Intitular-se a si mesma “mulher fatal” tem muito de teatral e de irrealismo. Já muitas tinham sido mulheres fatais que Camilo adorara por capricho, por impulso ou por brevíssima paixão. Ele é que fora o homem fatal para as pobres apaixonadas que, seduzidas e depois abandonadas, podiam servir de exemplo para Ana não dar um passo do qual não teria regresso e a arrastaria para uma vida mais do que incerta e carregada de sofrimento. Camilo era um emotivo, dir-se-ia um temperamental nervoso, ora impulsivo, ora hesitante, incerto na vida, nos afetos, nos locais por onde passava. Vivia e escrevia, transformava e transfigurava tudo na arte que o prendia bem mais do que qualquer mulher o conseguiu.

     Nos romances, novelas e outros escritos, que entretanto, por razões de sobrevivência, Camilo escrevia, dava sempre um toque de anjo às suas heroínas, colocava-as isentas de culpas e metaforicamente vendidas pelos pais a maridos e até a numa malévola alusão direta a brasileiros que regressavam aburguesados à pátria e desejosos de um casamento que os transportasse para planos mais elevados.

    “Vendera-me, grita a heroína Ângela, em “Os Mistérios de Lisboa” mas eu não me vendi”.

 

Face a esta situação, Pinheiro Alves, não deixa de ser vítima inocente, sem saber o melhor modo de proceder e sofria com tudo isso, A dita lucidez de Ana, titulo da obra de M.A. Campos, não surgira ao aceitar o homem que agora era seu marido e manifestava não ter dignidade ao viver numa situação de tamanha duplicidade que desonrava a sua dignidade e o nome que usava e diante dos factos não se decidia pôr um fim.

As várias saídas da cidade e idas para o campo eram tentativas goradas de a afastar de tão funesta influência. Por fim, a ida de Ana para Famalicão com o marido, em vez de serenar os ânimos, só veio precipitar o escândalo. Os encontros eram já murmurados pela vizinhança e corriam à boca pequena. O jogo da sedução chegava agora a ser, quase sem peias, alheio ao recato, ou a cuidados, com a curiosidade sempre muito atenta, a casos destes.

Finalmente, Ana, que já casara há seis anos, declara ao marido com determinação:

 

 ---- “Camilo é o homem de quem eu gosto, o único capaz de fazer a minha felicidade”.

 

 O marido pede ajuda a um médico, trata-se de um amigo da família, Pereira da Silva que a tentava proteger, mostrando lhe os erros e, perante a sua teimosia, confessava com espanto:

 

 --- “ Esta senhora está doida, ou perdida”: [6]

 

     Este médico procedia como amigo de Ana Augusta pois via o abismo que a sua teimosia abria e não só lhe traria desgraça como a muitos inocentes.

      Pinheiro Alves não tem mais solução sensata, face a uma tal teimosia e paixão. É por isso que a colocou no Convento da Conceição, na cidade de Braga. Porém, tudo concorria para maior risco e Camilo, sabendo-a no convento, vai encontrar-se com ela no Bom Jesus do Monte em 1858. Nessa época, passam a viver juntos. É nesse mesmo ano que nasce o primeiro filho de Ana, Manuel Plácido Pinheiro Alves. O nome é do marido abandonado, mas todos consideram ser filho de Camilo. Não deixa de admirar que escolhesse o nome Manuel para o filho.  

Consideraria já que assim seria ainda mais fácil obter depois a fortuna dele? De qualquer modo, a escolha revela uma falta enorme de sentimentos pelos outros e um possível calculismo aterrador. Na altura do nascimento do menino, Pinheiro Alves tinha 53 anos e morreu 10 anos depois.

A herança era avultada e o marido nada fez contra a possibilidade de ter um herdeiro como foi o filho de Ana Plácido. Por sua vez, ela não se escusou a apoderar-se da herança do marido, em nome desse filho que também como se sabe, Camilo nunca declarou ser seu, embora mostrasse grande afeição por ele e lamentasse profundamente a sua morte.

Vivendo com um casal tão desavindo, este filho teve uma vida tão curta como aventureira, viveu nos mais variados lugares, do Convento da Conceição, em Braga foi com a mãe para a Cadeia da Relação do Porto, e aí esteve 2 anos. Foi depois com a mãe para o Recolhimento de São Cristóvão, em Lisboa Passou pela cidade do Porto, Coimbra onde estou dos 9 aos 10 anos e São Miguel de Seide. As interrogações do seu biógrafo debruçam-se sobre as recordações e mágoas que enodavam, a sua infância tão infeliz que nenhum amor de mãe podia colmatar as dificuldades da falha de um lar, especialmente nos anos na cadeia. “Que marcas deixaram no espírito de Manuel Plácido esta constante vagabundagem,?

É a Castilho que Camilo confessa em carta de 1867 ---- "Vou amanhã a Coimbra acompanhar o filho de D. Ana Plácido, garoto de 10 anos [tinha 9] que já dez vezes fugiu do colégio. Vai para o seminário. Tenho pena dele, que vai amargar a liberdade em que a mãe o criou". O erro que o biografo aponta, acerca da idade do menino só manifesta que lhe quer ocultar a idade. É tão simples inventar nas novelas e nos romances que na vida também pode vir a parecer fácil fantasiar.

 Depois de tentar enriquecer em África para onde partiu, depois de um triste regresso veio a morrer aos 19 anos em 1887,

A notícia saiu em “O Primeiro de Janeiro”  -- O filho da Exm.ª Srª D. Ana Plácido faleceu e, acrescentava um pormenor significativo: "O falecido achava-se ali há tempos, e sucumbiu a uma febre, que a medicina não pôde combater, e pouco tempo antes do passamento sobreveio-lhe um ataque de loucura[7] Embora sem o reconhecer como filho, este era o seu preferido. Várias são as razões para não afirmar nunca mais do que “era filho do seu coração”. Mas dava isso a entender várias vezes. Ainda era o ano de 1859, e Camilo procurava modos de tirar Ana ao marido e escreve em carta, com grande ansiedade a José Barbosa e Silva:
        "D. Ana está pobre. Diz-me que tem o meu
[8]amparo unicamente, e eu abro-lhe braços de pai a ela e ao filhinho

 

 

 

 

Fig. 11 - Fotografia do desventurado jovem Manuel Plácido Pinheiro Alves (1858-1877)

 

 

É também um facto curioso que mesmo sendo já viúva desde 1863, o casamento de Ana e Camilo só se deu em 1865, sem grande demonstração de boa vontade da parte do escritor e insistência de Ana. Esta já estava viúva desde o ano de 1863, mas o casamento foi adiado até um ano após a morte do filho, Manuel. 

     O nosso escritor mais português do Norte, no seu modo de viver e sentir, do seu modo de agir e de pensar. Concorda-se que o Porto seja, como Teixeira de Pascoaes afirma:
 

“A cidade de Camilo, a sua sombra, (…) está nas suas novelas como nos Lusíadas o mar, e o Adão na Bíblia. Também ele e Ana Plácido estão no Hotel Cisne, próximo do café Portuense, o atual Suíço. Estão no hotel e na rua, afrontando a pudicícia burguesa, toda rubor nas faces, e de olhos na biqueira dos sapatinhos de tacão alto. Que escândalo! Que escândalo! -murmura, ela tapando o rosto com as mãos.”.

 

 

      A prosa de Pascoaes, apesar do seu encanto, é fantasiosa. É ele    o interprete e escreve estas palavras, que não parecem de modo algum coadunar-se com outras facetas que Ana mostrara. Esta mulher não é Ana nem tem a sua forte e teimosa personalidade que deseja atingir os seus objetivos e não se furta a escândalos e ao risco da cadeia. Trata-se de um homem, com um juízo masculino e bem parcial, que vê, com algum espanto, para não dizer que, é alguém que se escandaliza. Ana, ao contrário do escritor, talvez ainda não assumisse uma consciência de si, nem fosse assim fraca. Se a sua fuga do marido manifesta uma mulher forte, pode também, tal como se vê nos seus raros retratos, é uma mulher obstinada, muito difícil de desistir se a teimosia a dominasse.

No resto da sua vida, nada feliz, a fortaleza de ânimo não lhe faltou, mas não sabemos a que preço sofreu. As suas tentativas literárias, a que  Camilo a instigava não foram felizes nem duráveis. Nem a podemos colocar ao lado das feministas, nem das burguesas, pois a sua rebeldia tem algo de irracional e de emotivo. A escolha que fez foi por afeto. No fundo, se Ana o amava assim tanto, é o amar que torna o resto possível, e quase se poder dizer que o torna no impossível à face da lucidez. 

     Depois disso, vai seguir um destino que a arranca para sempre do meio social em que vivera. Camilo estava em franca ascensão na escrita, mas na altura Herculano não lhe consegue o emprego desejado na Biblioteca do Porto, apesar de antes ter sido nomeado correspondente da Academia das Ciências

    Finalmente, Pinheiro Alves, desesperado com tamanho escândalo público, que tanto o humilhava, instaurou-lhes um processo de adultério em 1860.

Andaram então fugidos com receio da justiça por diferentes lugares nortenhos, Samardã, Vila Real, Guimarães, Taipas, entre outras. Parece que foi assim que a amizade com Vieira de Castro se tornou maior entre eles, pela ajuda que esse lhes prestou.     A situação não podia continuar e Ana Augusta junto com o pequeno filho, foi presa a 6 de Junho na Cadeia da Relação do Porto.

 Entretanto, o mesmo não acontece ao escritor. Este, depois de deambular sem rumo, também se entrega à prisão, mas só cerca de quatro meses mais tarde. O próprio Camilo Castelo Branco recorda alguns dos dias em que viveu nas Taipas na sua obra “Memórias do Cárcere” em casa do seu amigo, o escritor José Cardoso Vieira de Castro.

 

 

 

 

 

Fig. 12 - A casa Ermo em Fafe, que serviu de refúgio a Camilo aquando da sua fuga da Justiça por causa do adultério

 

 

 

A indecisão do seu apaixonado, sem qualquer dúvida, que muito terá magoado e desiludido Ana Plácido, na solidão da sua cela, rodeada de pobres mulheres, quase todas vítimas de casos passionais.

Com a sua sensibilidade de artista, o nosso rei D. Pedro V admirava tanto Camilo que o visitou na prisão da Cadeira da Relação do Porto. Mas nada disto tem a ver com a mulher que causara o seu cativeiro. A moral é tão hipócrita que se o rei visita o escritor, toda a sociedade condena a mulher que tem forçosamente de ser esquecida e nunca mais ser referida. É o artista que é reconhecido, não o indeciso enamorado que tanto tempo levara para se entregar a prisão.

 

 

 

 

 

Fig. 13 - O julgamento em que Camilo e Ana foram absolvidos

 

 

     A absolvição dos réus data de 16 de Outubro de 1861. Entretanto, o filho que Ana teve, já era de Camilo. Legalmente, ficou com o nome do marido e Ana permaneceu na companhia do seu apaixonado. O casal instala-se em Lisboa mas por pouco tempo e separa-se por discussões e razões financeiras. Em 1863, estão juntos de novo, nascendo o segundo filho de ambos, Jorge Camilo Castelo Branco.

 

 

 

 

Fig. 14 - A imagem do casal com o seu filho, a única que se conhece em que estão juntos

  

 

 Nesse mesmo ano, morre Manuel Pinheiro Alves aos 63 anos de idade. Pode-se bem concluir que o desgosto e a amargura causaram o rápido declínio e a morte do desolado e desgraçado marido, ele que se isolara no campo, pois sempre gostara desse meio, na solidão da sua quinta de São Miguel de Seide.  É Ana quem administra a fortuna que o seu filho Manuel herdou do pai legal. Assim, a família muda-se, primeiro, para o Porto, depois, para a quinta de São Miguel de Seide, pertença do falecido, onde nasce o último filho do casal, Nuno Plácido Castelo Branco.

 

 

 

 

Fig.15 - Nuno o último filho de Ana Plácido

 

 

 

   Na conflituosa relação de Camilo e Ana, foi esta quem mais se empenhou.  A sua vida surge com um exemplo de mulher fatal que, de certo modo, sofreu grandes desilusões e alterou a sua feminilidade. A visão da mulher que de inalcançável, se torna a presença quotidiana, leva a que a sua relação caia na rotina e no subjetivismo da casa, em que só pela maternidade é rainha do lar.

    A sua sorte, depois de se tornar em “uma mulher fatal”, passa a ser incerta. Camilo Castelo Branco, apesar de ser um escritor já com alguma fama, arrastava um passado turbulento, que daria fortes razões para temer pelo futuro. Camilo viveu sob o signo da fatalidade e de estrelas funestas.  

       Se vemos em Ana uma única paixão, a multiplicidade de paixões que Camilo viveu, tornam-no um homem que tem uma densidade enorme de vivências de toda a espécie a que se juntam a sua observação e múltiplos cambiantes em que era capaz de examinar a condição humana e surpreendentemente a feminina. Embutida na paisagem do Norte, na velha cidade Braga, ou na capital do Norte, a sua surpreendente escrita vernácula, desenha com a maior pureza, umas das mais belas páginas descritivas da literatura portuguesa.

      Em Camilo há o poeta, o versejador, o crítico, o experimentalista, o historiador e o vernáculo da língua com toda a sua verdadeira profundidade. Há também o sentido do ridículo, do cómico, da tragédia ao lado da comédia, do drama e da alma das cidades, dos espíritos do campo, da vivência rural, uma galeria que nos espanta mas que, em suma, se resume, se tal se pode dizer, a sua vastíssima obra. Sem retirar muito do que de inefável e português há no mundo camiliano, no romancista e novelista ímpar que tivemos, os seus quadros oscilam entre uma fina ironia até ao grotesco para depois tentar o sublime.

 

O Porto é de Camilo, mas deixou de ser de Ana. A sociedade não lhe perdoa, mas parece que Ana também não perdoa a sociedade. Agora conhecerão juntos Lisboa e também a aldeia nortenha e aí se instalam em São Miguel de Seide. Após a saída da cadeia, que lhe restava? A quase indiferença entre os apaixonados, Camilo e Ana, na rotina dos dias, com as dificuldades económicas e uma vida errante, apenas um afeto triste e familiar ao “seu” Camilo até ao trágico suicídio deste.

       A lucidez, que lhe atribui a biógrafa Campos, não se coaduna com a inclinação, tão forte para a desgraça, que a arrasta para a semiclandestinidade e, depois de sair da prisão, para uma vida de reclusa, até ao triste refúgio em São Miguel de Seide.  De um só golpe, perde a reputação e o conforto do lar, as ambições de uma vida serena para se tornar no dizer do próprio Camilo “numa mulher de negócios, rendeira, bastião da casa de família.” Com a rigidez dos códigos éticos, religiosos e o direito civil em vigor, Ana Plácido e Camilo cometiam um crime que, apenas os espíritos, tocados pelo movimento romântico, aceitavam.  Para a realidade social, Ana desapareceu. A sua morte social, na idealidade e no infinito que em si continha, é uma antecipação da sua morte real. A sua vida realizou-se e Camilo mata-a repetida vezes nas páginas trágicas que vai escrever.

 

     Mudando do riso para as lágrimas, a sua escrita obriga a curvarmo-nos sobre o texto para melhor o entender. Descobrimos o filósofo, o naturalista, o romântico e o realista, encontramos a Mulher portuguesa, como nenhum outro artista conseguiu, em tão diversificada abundância   É a velha burguesia do Porto, para além da beleza das palavras, de Teixeira de Pascoaes, que ecoa na hipotética voz da jovem Ana. Tinha ela então 29 anos de idade e Camilo 35, já não sendo uns jovens de romantismo adolescente e lírico.

 

     Através dos quadros que figura se nos revela?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não aparenta grande beleza, nem graciosidade. Há acordo nas descrições que afirmam não ser uma bela mulher, embora Costa Martins ainda a imagina uma “das mais belas mulheres do Porto”.  Nada há no seu aspeto que recorde a famosa fragilidade e delicadeza de feições e do corpo, que as formas românticas exigiam. É mais provável que a fascinação de Ana por um homem que era a antítese do marido, a levasse a imaginá-lo alguém, que precisava de uma verdadeira mulher para o salvar. A imaginação febril tornava-a numa pessoa pouco ligada à dura realidade. O escritor seria remido pelo amor de uma mulher.

       É uma fantasia de muita burguesinha sonhadora, essa de, pelo seu amor e sacrifício, acreditar serem capazes de mover o temperamento de um homem. A presença suave e serena conseguiria mudar o destino de um “homem fatal”.   Nada acontece como a exacerbada imaginação de Ana sonhava, antes do rapto. Pelo contrário, em vez de salvar Camilo, de lhe reter as rebeliões e assomos de boémia, devidos ao seu temperamento instável, é ela, Ana, que se torna a mulher fatal para o escritor. Agora sente-se acorrentado, com esposa e filhos no dia-a-dia.

 

 

 

Ilustração  4 - A noite encerra as trevas em que se escondem agora os culpados.

( Ana agora não tem possibilidade de andar à luz do dia com o rosto erguido )

 

 

A atmosfera romântica perdeu o sentido e a situação tornou-se em mais uma aventura como tantas outras. Desta vez, porém há graves consequências. Agora há uma mulher que o segue por toda a parte depois que saiu da prisão e do escandaloso julgamento o que altera todos os hábitos, depois os três filhos, os problemas financeiros e tudo o mais que o prende, e não consegue desembaraçar-se. De algum modo, Ana Plácido cumpre um destino não apenas triste, mas sem recordações, de saudades e revoltas surdas em que seguirá somente na sombra de Camilo.

 

       “Mas, finalmente, quem era esta mulher? Para uns, petulante, exigente, pretensiosa, excêntrica, amante de bizarrias. Para outros dotada de um carácter firme, nas convicções e ideias, pois trocara a honra e posição social pela estrela funesta da sua paixão[9]

 

 

 

 

Fig. 16 - Aqui Ana parece sem vislumbre de beleza e uma dignidade de matrona burguesa revelada no traje

 

 

Comparando atentamente os dois retratos, encontra-se a mesma firmeza de expressão, embora mais doce com a idade, o mesmo olhar e a boca a afirmar um desdém e determinação sem peias. Se bem que a residência de Camilo fosse em São Miguel de Seide, em 1870, instalara-se na Povoa do Varzim e, nesse mesmo ano aconteceu um episódio trágico a um seu amigo, o  Dr. José Cardoso Vieira de Castro.

 

 

 

 

Fig. 17 - A foto retrata bem os costumes e a desigualdade da mulher.

( Vieira de Castro numa pose  em tudo contrária à esposa Claudina. Sentado, lê um livro, enquanto ela se apoia à cadeira, contraste que marca bem as diferenças de estatuto  )

 

 

Depois de encontrar provas, em cartas escritas pela esposa, que a denunciavam como amante de um sobrinho do também escritor José Maria Almeida Garrett, resolveu com a maior frieza, uma vingança terrível. Comprou clorofórmio na farmácia, sem que o farmacêutico suspeitasse do fim a que o destinava. Ao chegar a casa, a esposa desconfiou de que algo se passava e o Vieira de Castro, desastradamente derramou o clorofórmio na cama. Claudina ainda tentou fugir, mas o marido estrangulou-a. No dia seguinte entregou-se às autoridades para ser julgado. Tudo isto refere Rocha Martins, sem deixar de manifestar a sua estranheza por Camilo e Ana estarem ao lado deste assassino pois eles encontravam-se juntos e Ana que já então estava viúva, trairá o marido. A sua presença e apoio, neste caso trágico, tem algo de insólito pois a jovem e bela Claudina Guimarães, assassinada tinha ousado comportar-se tal como ela fizera. Mas agora aparecem ambos em defesa e apoio do marido traído. Este caso abalou o Norte e o desgraçado Vieira de Castro acabou condenado ao degredo em Angola, na cidade de Luanda, onde morreu por doença, pouco tempo depois, aos 35 anos.

A moral e os sentimentos que ligam as pessoas mostram uma tal incoerência que muito choca qualquer olhar objetivo sobre os factos.  

 

 

 

 

Fig. 18 . Esta fotografia de Ana Plácido  é a que mais doce e humana nos parece.

( Sem atavios, o seu porte altivo e a serenidade mostram uma certa beleza que é mais da vida do que da natureza. )

 

 

A tragédia que se abateu sobre o seu destino pode considerar-se um “vulcão de lama” alimentado por uma sociedade que não perdoa ao “anjo do lar” uma traição tão declarada.

       A novela “O Amor de Perdição” transfigura uma realidade muito menos romântica. Simão/Camilo é nobre e sofre por um só amor. A plebeia Mariana que o segue devotamente com um infindável e doce amparo, no seu silêncio, são as pobres vítimas que Camilo arrastou para a desgraça, simbolizada possivelmente no seu suicídio que não é mais do que a sua perda, agarrada ao cadáver do moço apaixonado, o desejo inconsciente de apagar um passado que arrasta na vida e não se afundou no mar.

 

 

 

Ilustração 5 - Morte do Anjo branco é a salvação da mulher que vive, pois o ideal se libertou. A realidade é que permanece.

 

 

 O mar é esse inconsciente coletivo que guarda um amor que assim descrito já não existe e se dilui por completo. Simão é o amor de Camilo que morre por uma idílica Ana, a bela menina fidalga que é Teresa, na janela o avistar o barco onde parte para o degredo o seu apaixonado.

     Também Ana fora para o convento, mas ao fugir e ao ligar-se a Camilo, o amor de perdição devia ser a morte. A magia do imaginário, ao desaparecer, revela que Camilo e Ana não se encontram, o imaginário dá lugar à realidade e ao quotidiano. Tudo era uma ideação que tinha todo o fascínio pela sua impossibilidade. 

 

 

 

Ilustração 6 -  O mar e o céu, eis para onde vão Simão e Teresa.

( Unidos na morte pois Teresa não era deste mundo. Mas ficava-lhe assim Ana ou seja o sonho morto )

 

 

       Simão e Teresa serão uma transposição de Camilo e Ana numa perdição que, atinge muito mais a mulher, do que a figura de Camilo. A transgressão social retira Ana do seu papel e o seu estatuto nunca mais poderá ser recuperado. A dupla moral para homens e para mulheres coloca-a num estatuto marginal sancionado pela lei. Só lhe deixa livre a sua interioridade. Para Ana Plácido só resta a solidão e a amargura de amar sem ser amada.

 

 

 

Ilustração 7 - As grades de Ana não são exteriores agora a sua prisão é ela mesma e as suas recordações e sonhos perdidos.

 

 

      A maternidade é a sua única forma de ser mulher no social. Sendo mãe, a sua traição e rebeldia redimem-na. Vezes sem conta, Camilo exalta a maternidade, porém, outras tantas, nega tal santidade.

No final de “Onde está a felicidade?” a maternidade de Augusta, que se nega na morte do filho recém-nascido, transforma-se na descoberta de um tesouro enterrado causador de um desenlace completamente sarcástico e contrário aos cânones do romantismo. Pode dizer-se que é essa maternidade, o que a reveste de vitalidade, que a protagonista Teresa não atinge por ser o sonho inalcançável. A negatividade de Ana é a morte de Teresa. Já a morte de Simão não passa da consequência da lógica de Camilo.

 

 

 

 

 

 Fig. 19 - Camilo Castelo Branco continuou até ao fim com toda a imaginação e uma faceta realista que a época já  manifestava e ele absorveu sem grande convicção

 

 

 

     É outro o afeto que Camilo tem por Ana, talvez a piedade, ou um certo remorso por essa mulher que ele arrastara para uma vida sem rumo. O escritor tem tantas facetas que ora o carinho, ora a presença dos filhos, ora o esteio sólido que a fortuna de Pinheiro Alves constituía. Não se pode negar que muito aproveitaram, sem remorsos nem escrúpulos, dos bens do falecido. Camilo continuou a gastar sem conta nem medida e depois regressava a São Miguel de Seide.
    Aconteceu que, para além dos gastos do costume, Camilo mantinha uma bailarina espanhola e com ela gastava excessos. Sem ter mais onde recorrer atirou-se ao jogo na esperança de aumentar o pouco que tinha. O resultado foi acabar por ter uma dívida de jogo que sempre se disse ser uma dívida de honra que se tem de pagar sem falhar. Foi então, numa dessas vezes que tentava ganhar no jogo que assistiu à morte do seu filho mais velho, o infeliz moço de 19 anos de idade
[10].

 

 

 

 

 

 

Fig. 20 - A casa da quinta de São Miguel de Seide, no Norte, perto de Braga

 

 

 

No seu caso, a fidelidade é o resultado possível da gratidão, ou uma ponte com a realidade que nunca abandona definitivamente.  O enigma feminino, que Camilo tanto tenta explicar, transparece de variadas formas nas figuras que cria.

 

 

 

Ilustração 8 - O jogo de máscaras.

( Depois de lançar os dados, o jogo das contradições e das perdas constantes é o jogo das estelas funestas, do cárcere, dos mártires, dos delitos da mocidade, de O Anátema, das lágrimas abençoadas e de "O que fazem as mulheres",  até a coisas espantosas e vulcões de lama.)

 

 

 

 

  

      Camilo mata Teresa e Simão e assim liberta-se. Já para Ana, a sua unidade subjetiva e objetiva, torna-a inexiste no social e faz apenas parte de um estádio de fé. A mãe e a arrependida é o único meio de retomar mais força no seu estatuto de mulher.

     A morte de Teresa é a vida de Ana, com toda a sua angústia pela alternativa do desespero, ou da relação pessoal e solitária com o transcendente. Teresa morre, porque se apaga na sua feminilidade. Negada à maternidade, Teresa é uma figura imaterial, inacessível e por isso mesmo a presença de Ana também não pode agradar nem seduzir.  Teresa representa o “eterno feminino”, uma pureza etérea que Ana não teve. Fechadas as portas do convento, a sua morte psíquica, como mulher, antecede a morte real, ao gosto da época, por tísica e por fragilidade que o amor lhe emprestou e mais depressa a fez desaparecer. Não há lugar na terra para Teresa, para que possa haver lugar para Ana, pois esta só se salva, de um maior opróbrio, pela maternidade que lhe confere a piedade da Igreja, da sua sociedade e a compaixão do escritor, guiado pelos remorsos e a certeza do amparo que ela lhe dava.  

O resto da sua vida foi a de uma administradora que esquecida dos seus devaneios românticos, se via a braços com um Camilo sempre irrefletido e inconstante. As grandes dificuldades monetárias que passavam, devido à constante boémia de Camilo mesmo com a celebridade e as homenagens de ser Visconde, não davam senão um prestígio vazio e não evitavam os tormentos na quinta de São Miguel de Seide até ao seu suicídio.    

 

 

 

 

Fig. 21 - A casa de Seide depois de se incendiou inexplicavelmente

 

 

. Curiosamente, também em Shakespeare era mais do que um conflito amoroso o cerne da trama estava o ódio entre famílias rivais, como se diz em bom português “ódio velho não cansa” também as duas casas fidalgas de Verona, Montecchio e Capuleto só na morte se uniram sob a grave advertência do doge, que passa do plano amoroso para o social.

     Mesmo nos nossos dias, Lipovetsky[11] diferencia a sedução nos dois sexos. Para este pensador, a mulher, seja no caso de Ana Plácido, ou nos nossos dias, preferirá sempre que os homens se declarem primeiro.
    A sua forma de pensar encontra contestação nos países mais desenvolvidos, como os E U A ou a Noruega em que o homem além de ser escolhido é deliberadamente quem aceita o assédio sedutor do sexo feminino.
A persistência da desigualdade na sedução parece-lhe que vem de um código, em que os homens e as mulheres são desiguais, e a feminilidade torna-se em passividade. Isto não seria contraditório já que, na aspiração à autonomia feminina, Lipovetsky recorre a um ditado:

 

   ” O homem propõe e a mulher dispõe”.

 

 

 

Ilustração 9 - Um livro é um enigma. Mata ou dá vida, fere ou acarinha, o diálogo é um risco para quem não sabe o código

 

 

 



 

NOTAS:

 


[1] Rocha Martins,  A Paixão de Camilo (Ana Plácido), Edição do Autor, Gráfica ABC, Lisboa s/d. 

[2] Rocha Martins,   Idem 2º edição

[3] António Valdemar, 2012, Escreveu que “ Perante um país sufocado, deprimido e amordaçado pela ditadura de Salazar ouviam-se, em períodos eleitorais, os ardinas de Lisboa, ao fim da tarde, que gritavam ao anunciar a jornal "República". Fala o Rocha! Fala o Rocha! Fala o Rocha...". Eram os libelos, em forma de cartas, da autoria de Francisco José Rocha Martins Jornalista de grande cultura. Só a sua força e ânimo o tornaram imune ao regime e a sua História da Ditadura está por publicar

[4] http://portosdeportugal.pt/sartigo/index.php?x=10502

[5] (Rocha Martins Idem pp. 64-65). 14.03.2014.

[6] Idem, Ibidem p.97.

[7] Jornal, O Primeiro de Janeiro, ( n.º 213, de 18-9-1877).

[8] Camilo Castelo Branco, in Correspondência de C. C. B., de A. C., ed. Livros Horizonte, II, p. 72.

[9] Campos Maria Amélia, Ana, a Lúcida: biografia de Ana Plácido, a mulher fatal de Camilo, Editora Parceria M.P Pereira 2008, p. 218..

[10] CABRAL, Alexandre - Dicionário de Camilo Castelo Branco, Lisboa : Caminho, 2003

[11]  Gourniak Andree,  Entrevista -  La Mujer Pos moderna, Lipovetsky, Entrevista acerca de . Ensayo "La tercer mujer", http://www.educ.ar 1999, 16.03.14.