"  Uma e outra Vez " 

  •   Os Monges que fazem os Hábitos

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

 

        

" Sempre Assim"

 ( Campo de trevos floridos na Primavera. ( Pormenor ). Jardim Botânico. Porto. 2006 )

 © Levi Malho.

 


 

A desvalorização do hábito não o retira da realidade e do nosso quotidiano. Acontece que o seu significado evoluiu muito ao longo dos tempos. Aristóteles, um dos únicos seres humanos a quem se pode justamente classificar como “o homem que podia explicar tudo” (Revel)[1] coloca o hábito num sentido ético de extrema elegância e altivez. Tratar-se-ia nem mais nem menos do que a virtude que se realiza tão simplesmente que quem a pratica nem chega a notar que realiza o bem. O hábito seria próprio do homem virtuoso, uma segunda natureza[2], uma espécie de segunda pele que se adquire até nem se dar por isso, nem realizar já qualquer esforço. Por isso, a frase que se usa tão distorcida, “Uma andorinha não faz a primavera” e o resto que se acrescenta explica: “assim como uma boa ação não torna o homem”.

O hábito leva o homem a ser tão virtuoso, de modo tão natural já quase espontâneo, como o ar que respira.

Muito mais tarde, David Hume[3], que tinha de ser inglês e logo empirista, deu um sentido revolucionário ao hábito, abalou as ciências, ao mesmo tempo de acordava Kant estremunhado, do que se diz ser “o seu sono dogmático” e põe logo a razão no tribunal da crítica[4]! Para Hume nenhuma explicação, além do hábito, justificava que se tivesse a crença de que o sol vai nascer amanhã, retirando a certeza da rotação do planeta Terra posto que, se um facto se realiza "n" vezes, não se pode induzir daí que se realizará sempre.

Há quem se assuste com isso do sol amanhã não aparecer mas pode preocupar-se até com a justificação do caso da água posta ao lume não ferver, como convenientemente qualquer cozinheiro espera.

 

Se o hábito é uma doutrina ética aristotélica e um risco para qualquer princípio científico que deu tanto que pensar a Kant, até o levar a escrever “A Crítica da Razão Pura” com todo o seu rigor do pensamento para nos convencer da  universalidade da causalidade e do valor da indução, do outro lado do Atlântico, o psicólogo e filósofo William James, pragmático e pronto para valorizar a vontade humana, usou o hábito para fortalecer a vontade. O seu método é pragmático, curioso e prático como é o modo comum do americano.

Assim, de estatística em punho, veio demonstrar que durante um dia, mais de 90% dos nossos atos são hábitos[5]. A mudança de um só hábito levava a que a estrutura global da personalidade tivesse de se alterar.

Não se pode mudar um hábito, concluiu com satisfação. O seu regozijo não carecia de causa pois, ao mudar um hábito, trata-se de alterar toda a complexidade das vias nervosas e a sua complexa interação, pois as vias nervosas formam um todo com o hábito entranhado. A dificuldade em mudar o hábito é conseguir alterar as vias nervosas condicionadas e relacionadas com toda a reação global. Ao mudar um hábito há uma série de formas que têm de ser alteradas pela vontade ou a reação inconsciente continua a mesma. A vontade é problema da psicologia que não se aborda muito por falta de vontade. No fundo, muito indiretamente, William James faz um retorno a Aristóteles. A força de vontade exige uma pessoa saudável e que queira mesmo a mudança. Quase nem se fala da abulia, parabulia ou, ainda menos, da hiperbulia. Esta é qualquer coisas como a hiperatividade dos meninos mal educados que nunca ouviram bem a palavra Não! Os conselhos de William James são simples mas rigorosos. Basta saber um para ver como tem um programa duro: “Uma derrota anula cem vitórias” e é preciso ir acumulando repetidas ações por força de vontade sem que sejam necessárias. Isto dizia, serve como quando se põe dinheiro no banco. Quando é preciso, vai-se lá buscar. Quem se esforçou sem necessitar esforçar-se-á facilmente levado pelo hábito já adquirido.

Nesta ordem dos hábitos chegamos ao francês, Jean Paul Sartre, com ventos de guerra, longas manhãs, num ano terrível, 1938, descobre, ao calçar-se, supondo-o ainda com sono e sem vontade alguma de fugir à doce preguiça, a meditar acerca de qual o sapato que costuma calçar primeiro. Nesse momento, descobre que não sabe, --- também nem precisava de saber--- então medita na rotina até descobrir que o hábito é que nos calça, nos veste, nos dirige os passos. Somos o Nada sem o hábito, nem sabemos andar, nem comer, nem falar. O homem é isso mesmo um animal de hábitos. Então Sartre teve um vómito que inunda o livro inteiro de perplexidades.  A tal náusea de existir faz com que se fique sem saber, se calço ou não um sapato qualquer e tenho toda a liberdade do mundo na obra longa e na vida breve que o Nada absorve.

A fase de estar a mais, de se sentir ausente e não gostar de ter culpa por tudo leva Sartre à mesinha de cabeceira num protesto pelos estudos não irem a vapor.

 

Agora mais um francês veio desenterrar o “habitus[6] ` e o êxito de Pierre Bourdieu estende-se por quilómetros de livros, teses e contra teses, mestrados e formações em que o latino “habitus” é uma estrutura estruturante que se reestrutura à nossa volta. Veio do passado como as tradições, vai ao futuro, adapta-se e readapta, se reorganiza e organiza. Bourdieu agarra no hábito para entender as preferências, os gostos, as discrepâncias sociais e estilos de vida. O que esconde o hábito de Bourdieu senão uma dominação ideológica e a velha política que nos remete para o antigo conformismo social?

 É a inércia que é força e todo o poder.  O hábito de Bourdieu tem Sartre[7] a escolher o sapato, James a dar cursos de força de vontade, Kant a encher prateleiras de livros e comentários, Hume desconfiando de que desta vez que não consegue comer um bom ovo estrelado e Aristóteles discutindo com o seu endiabrado aluno, Alexandre da Macedónia que ainda não era o grande. nem se imaginava um deus. 

O hábito tem uma vertente política em W. James que parece ser ignorada por muitos que se catalogam, como ativistas políticos. As cenas que nos descreve da Rússia e por outros países espantam extraordinariamente. Pode ser da maior simplicidade mas não penso assim. Aceito a náusea e até o vómito de Sartre mas os exemplos de William James deixam-me completamente estarrecida.

 

        O hábito é a estrutura inconsciente que segura a sociedade que se conforma, presa das imensas malhas de um gigantesco e metafórico sistema nervoso que segura qualquer gesto por mínimo que seja.

 Tiremos o hábito e o que vemos?
Por mim não quero que ninguém tire hábito algum. Tenho medo. Pode vir a pele junto. Nada melhor para morrer depressa que tirar todos os hábitos com as suas vias nervosas condicionadas há mais de 60 anos. Dou generosamente seis meses de vida e uma parte do tempo já vegetativo de acordo com a classificação aristotélica da vida. Ora, desde que se reinstale a reforma aos 70 anos com a adaptabilidade constante que se exige sem parar, mais novos medicamentos e elixir da eterna juventude, regressar-se-á ao passado, com aulas ao sábado, estabelecimentos abertos e instituições a funcionar. Vale a pena pensar na cerimónia de despedida com o discurso da praxe e a oferta do relógio que era hábito dar, após o dedicado serviço na função pública. Havia orgulho em servir o bem comum. Algures ainda há anónimos trabalhadores zelosos que não vivem para a sexta-feira à noite, nem acordam para a vida só nos fins de semana como nos querem incutir as vozes do vazio do consumo louco. Há tanta solução para problemas tão simples. A eternamente jovem Penélope educa sempre.

A magnanimidade[8] era o centro da vida ética aristotélica. À beira do caos da Grécia e das guerras imperiais, a magnanimidade ficou como a mais bela lição ética que se pode ensinar. 

 

 


 

 

 Bibliografia e Notas:


 

[1] Revel, François, Jean – História da Filosofia Ocidental, I, Editores Moraes, Manuais Universitários, nº 3

[2] Aristote, Éthique de Nicomaque Edição Garnier-Flamarion, Paris, 1965, p.45.sgts,

[3] Russel, Bertrand, História da Filosofia Ocidental, livro III, Edição Obras Filosóficas, Companhia Editora Nacional, Biblioteca do Espírito

     Moderno, vol. 23, São Paulo cit. Livro I Parte III, sec.TV, cit..pp212 e segts.

[4] Kant, E. , Critique de la Raison Pure, Bibliothèque de la Philosophe Contemporaine, Presse Universitaire de France, 1950, Paris,pp7-8.

[5] James, William, Précis de Phycohlogie,volume VIII Capitre X,  L´Habitude,  Marcel Rivière Editeur, Bibliothèque Interuniversitaire, Paris, 1909,

      p 143 e sgts.

[6] Bourdieu, Pierre, Sociologia da Educação, Reprodução Social, Reprodução Cultural, pp.242 e sgts,

[7] Sartre, Jean Paul, La Nausée, cit. As Doutrinas Existencialistas De Kierkegaard a Sarte , Régis Jolivet Livrarias Tavares Martins, Filosofia e

     Religião, Nova Série,  8º Volume, Porto

[8] Aristote, Idem, pp. 104-110.