"  Retrato de Família - II " 

  •   Hegel. A fase de Iena ( 1799 - 1807 )

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2014 )

 

 

 

     

 

" O que não sabemos"

 ( Sombras de Heráclito. ( Pormenor ).  Rio Vez. Ponte da Barca. Alto-Minho, 2013 )

 © Levi Malho.

 


 

 

 

 

As transformações de Hegel e algumas mulheres na vida e na obra

A fase de Iena e suas consequências

1799-1807

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Todo o século XIX é uma reflexão vivida pela Europa acerca do fenómeno da Revolução Francesa. O seu resultado são flores, frutos e uma série de buscas de sentido para um novo mundo que se pensa e reflete sobre si mesmo. Ora o otimismo remete para esperanças no futuro, ora uma pesada prudência envolve o pensamento de sombrios receios.

 Entre todos os pensadores, Hegel é o arauto de uma filosofia que se quer afirmar ciência do absoluto e os sonhos de uma Alemanha com um espírito imperialista e sempre busca de expansão, cujas mudanças e gravíssimas transformações parecem nunca mais ter fim. A história das revoluções acaba sempre por ter um resultado no pensamento, pois trata-se de um regresso renovado da vida. Com Hegel a sinfonia do idealismo absoluto remata numa orquestração final em grande estilo de ópera, mas inicia igualmente uma debandada dos músicos como se uma forte tempestade os dispersasse num desafino entre si e um dilacerar das massas, multidões ferozes, sem rosto, que se exasperam com vozes que já não encantam, nem querem entender.

Como se engana quem vê a água de um rio na sua humilde e verde nascente, apenas um pequeno fio de água inicial, ignorante do futuro espantoso caudal que depois será. Todo o orgulhoso rio ao chegar à sua grandeza não se preza em lembrar da humildade da sua nascente, das margens por onde passou e dos vários ribeirinhos que o sustentaram.

De longe vejo Hegel como um rio caudaloso. A sua violência arrasta tudo na sua frente, mas a vida é mais do que um rio e compõe-se de gente. É tanta a atenção ao rio que ficaram ocultas as mulheres, por certo muitas mais do que somos capazes de saber que se cruzaram nas vidas e se refletem nas obras dos filósofos. Há muito que ninguém ama o velho Hegel. Recorda-se a obra mas as mulheres continuam a ser a Vida, o sentimento, as flores que se transformam e voltam sempre a florir.

O interesse que surge por este filósofo é fundamentalmente por procurar ver como a Mulher foi importante na sua vida e obra. Só há pouco tempo é que as mulheres têm o privilégio de ler, de modo pessoal e com a sua subjetividade, uma obra que lhes diziam não serem capazes de compreender. Por outro lado, trata-se de infringir a própria mentalidade de Hegel que nunca escreveu pensando que seria lido e interpretado por mentes femininas pois, para ele, as mulheres, além de pouco mais serem do que crianças, dependiam totalmente dos homens. A estes e só a estes o acesso a textos filosóficos era adequado excluindo-se, por norma, qualquer mulher que tais obras quisesse estudar.
    Além de risível, não teriam capacidades para tais tarefas “naturalmente” masculinas. Todavia, a mãe de Hegel foi uma pessoa muito influente na sua vida e na sua lembrança foi muito mais forte do que a figura do pai para o qual não manifesta a dor da ausência como para com Madeleine Louise, de quem recorda todos os anos o dia da sua morte e a ela se referia em cartas à irmã.

  A senhora Hegel, mãe de ambos, demonstrou ser uma dama culta, muito acima das mulheres do seu tempo. Além de ampla cultura, pertencia à alta burguesia de teólogos e advogados de Estugarda e pudera ensinar latim ao filho. Provavelmente, face ao carinho com que este a recorda, era uma mulher carinhosa, inteligente, que incutiu ideias religiosas no pequeno Wilhelm, que mais tarde se revelaram no pensamento do filósofo. Também Hegel manifestou sempre forte afeição protetora à irmã, dois anos mais nova do que ele, Cristiana Luísa, que sofreu fortes depressões ao longo da vida.

Infelizmente, o irmão mais novo de Hegel já não gozou das possibilidades do carinho e da presença da mãe e viveu constrangido pelo pai até que, após uma série de fortes altercações inconformistas com este, face ao confronto das ideias de ambos quanto à revolução francesa, partiu com as tropas napoleónicas e só se sabe que desapareceu na Rússia.

 

 

 

 

 

 

 

 

     Nos inícios do século XIX, a obra de Hegel, que ele já congeminava anteriormente, culmina com o idealismo absoluto.
    O ponto, através dos quais a obra já foi estudada, comentada e criticada, é aqui a possibilidade de encontrar uma leitura nova que examine a mulher existente na vida e obra de Hegel. Não há qualquer presunção de interpretar melhor o que tantos e profundos pensadores conseguiram estudar e interpretar. Apenas um ângulo novo que contemple a presença feminina e uma leitura complementar que quebre o fatalismo da leitura por entre grades da gaiola em que a mulher canta as canções de embalar.

 

 

 

Fig.1 - Há gaiolas douradas e umas mais visíveis do que outras

 

 

 

 

Fig. 2 - O sistema de Hegel depois de ser aceite como "o todo".

( O resultado não tem qualquer forma de saída e, paradoxalmente não é um círculo vicioso.  )

 

 

    Por certo que já muitas mulheres leram Hegel. Mas foram conduzidas por uma aprendizagem da filosofia através de um pensamento masculino que as levava a pensar numa situação fora da sua própria subjetividade e completamente dominadas pelo modo de pensar masculino, que as obriga à subordinação rígida ao seu discurso. A obediência excessiva corta pela raiz um pensamento pessoal.

    Em Hegel, ao contrário de Kierkegaard, ou outros filósofos em quem a mulher tem um papel bem visível, outros há como Parménides, Aristóteles ou Zenão de Eleia, de quem nem um só traço feminino aparece que conte para melhor escrever o pensamento desses homens que partilharam a nossa humanidade.

    Temos de entender que, pelo contexto cultural e social da sua vida e da obra, o interesse de Hegel nunca se manifestaria por problemas que se referissem ao sexo feminino.  Acrescente-se ainda o paradoxo de que nessa época, reinava o romantismo. A infelicidade de Werther transformara sensatos rapazes em potenciais suicidas pela Europa fora. Ora seria quase impossível pensar num Hegel que não tenha sofrido a doença do tempo. Exaltavam-se a beleza e sedução femininas, o seu poder sobre o coração dos homens que não parava de lhes causar os maiores males, arrebatamentos, loucuras e tragédias.

    A escrita romântica tem muito mais densidade na análise masculina e verifica-se logo isso na obra de Goethe “Os sofrimentos do Jovem Werther” de 1774. O filósofo, amigo do autor desta obra, já lera e por certo apreciara este marco da mudança da literatura, tornada epistolar, emotiva sem as regras do anterior classicismo.

    Também Hegel teve a sua Carlota mas a sua paixão foi bem mais real, como conspiração do destino e surgia em forma de fatalidade vista tal qual como uma doença mortal e com maiores riscos para o sexo masculino. A Carlota de Hegel já fora abandonada por um Alberto que se desconhece e tomavam conta da hospedaria onde Hegel vivia. Este não era dado a paixões platónicas e as consequências tornaram-se alheias ao romantismo, porém o feitiço está lá, nos encontros e nas situações que a vida na hospedaria propiciava. Para esclarecer a forma de ler a filosofia de Hegel, parece que nada melhor do que o conselho irónico de Bertrand Russell, devido à sua lógica e ao rigor do pensamento em que foi mestre.
    Começa por chamar a atenção para o que é uma presença constante e fundamental em tudo do que se lê em Hegel: “Os pensamentos devem ser fluentes, entre mesclados.
[1]”.

 

 

 

Fig. 3 - Russel, o grande filósofo britânico das matemáticas tinha um sentido de humor que em poucas palavras decifrava enigmas

O seu fino humor só se entende depois de estudar tanto o que quer dizer como o que não disser chega a chamar ao sistema hegeliano  “Um Tio”. Depois  da surpresa começamos a entender a lógica, pois nunca  abandona  um “tio” é o resultado ou um conceito do conceito e….

 

Com tal indicação pode-se ir mais longe na forma de encarar estes escritos, recordando todas as influências que captou na sua juventude e durante toda a vida, que obrigam a uma reflexão constante acerca do que está escrito e do que se tem de encontrar nas entrelinhas ou no que não diz mas está contido no que diz.

Na sua fase dos vinte anos, o filósofo passa por um turbilhão de mudanças, quer na ação, quer nos pensamentos que o vão levar a afastar-se do Seminário Teológico de Tubinga e das suas ideias religiosas de adolescente. Nem por isso o cristianismo deixou de o marcar. O cristianismo, o mistério da Trindade a fé de Abraão e muitos outros temas levaram-no, ainda na juventude, a dissertar sobre essas questões. As suas obras da juventude incluem estudos sobre a vida de Jesus e outros escritos que são apenas esboços dos alicerces em que fundamentará a sua obra. A mente do jovem Hegel fervilhava de entusiasmo que não desanimava face a estudos árduos, mesmo diante do que, para outros, seriam dificuldades intransponíveis.

Entre as mudanças da literatura e a filosofia de então, a mente de Hegel recebia uma educação que se misturava com todas as leituras impossíveis de numerar e que desde a sua infância vieram formar um pensamento que reunia muito do saber do seu tempo, pois as suas possibilidades de aprendizagens e de saber foram invejáveis, já na infância, e prolongaram-se toda a vida.

 

 

 

 

 

 

Fig. 4 - Por que razões a  filosofia passa a falar alemão?

 

 

 

 É fácil entender o abalo que sentiu com a morte da mãe quando era ainda um adolescente de 13 anos e fora essa senhora a sua educadora e mestra.

Georg entrou no liceu de Estugarda aos 8 anos e aí permanece até a entrada no seminário aos 18 anos. Por sorte da sua boa estrela, teve uma "bolsa" para poder continuar os estudos e passou por uma rebeldia, tão comum aos jovens adolescentes, enquanto estava no Seminário de Teologia de Tubinga. Este tempo de uma juvenil inquietação, enriqueceu-se com o convívio de dois famosos companheiros de quarto de estudantes.

De novo, uma sorte espantosa reuniu três grandes académicos por uma forte coincidência. Tratava-se do poeta Hölderlin (1770- 1843) e do filósofo Schelling, (1775-1854) que alcançaram ambos grande notoriedade por justo merecimento das suas obras. Pela forte influência de Hölderlin, o jovem Hegel aumentou a sua grande admiração pela Grécia Antiga, que antes já muito estudara. No quarto que albergava três mentes brilhantes, a amizade floresceu com as acesas discussões amigáveis acerca de tudo o que se passava no mundo e os projetos e sonhos dos três futuros famosos alemães. A causa da  familiaridade destes três moços nesse quarto parece ser sorte, porém eram os três jovens bolseiros de fracos recursos e talvez essa fosse a causa material que afinal nem se tratou de qualquer coincidência.

Hegel aceitou a disciplina rígida do seminário apesar de lhe desagradar. Com o passar do  tempo, Estugarda  já se desvanecia, e a cidade de Tubinga desiludia-o muito porque lhe parecia de imobilizada e hipócrita. Esta sua apreciação faz jus a um tempo de desconfianças e de receios que os acontecimentos tão turbulentos na França justificavam. Só a juventude, com a sua ardente fé nos ideais e anseios de liberdade, podia ver de modo diferente o que se passava e o resto da população temia, por imprudência e insensatez, uma franqueza perigosa face à situação política e social que atravessavam. O que tanto agradava a jovens impulsivos e rebeldes como Hegel e seus amigos e colegas, era para os habitantes da cidade motivo de fortes receios.

Vivia-se uma época onde a ordem era a desordem, o bem e o mal juntavam as mãos, novas e velhas revoluções  fervilhavam nas mentes, um sopro de medo e um vento de liberdade sussurravam  ideias novas e contraditórias, por toda a parte soavam vozes de combate e ventos de mudança que naturalmente chegavam aos ouvidos de cada um de formas diferentes.

 

 

 

 

 

 

 

O entusiasmo dos três colegas e amigos, Schelling, Hölderlin e Hegel, pela Revolução francesa era enorme. Porém, nada leva a crer no que respeita ao episódio dos três colegas, terem plantado uma tal “árvore da liberdade” algures, perto do seminário em sinal de apoio para com os revoltosos. A verdade é que a canção “A Marselhesa” foi traduzida para a língua alemã e a simpatia para com os revoltosos franceses também se manifestava, o jovem Hegel colocava a sua simpatia  nos girondinos

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 5 - Quadro de Rouget de Lisle canta a "Marseillaise" na casa do prefeito de Estrasburgo

 

 

 

Dividido pelo estudo, investigações e grande curiosidade pelas ideias revolucionárias, é curioso que o marcassem com a alcunha de “velho”. Mas segundo se depreende, isso devia-se ao seu aspeto taciturno e austero que já mostrava e que os colegas do seminário lhe atribuíram.

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 6 - Hábito que durou quase aos nossos dias: cheirar rapé e espirrar em  lenços bordados 

 

Os seus hábitos de jovem iriam acompanhá-lo toda a vida. Os menos extravagantes e exagerados mostram-se no gosto por jogar às cartas e ao xadrez, com gente que nada tinha a ver com a sua condição de intelectual, o prazer por andar quilómetros a pé, beber largamente uma boa cerveja ou café. Depois das aulas ou dos seus trabalhos, o seu gosto por conversar com gente simples e dados a interesses vulgares, manteve-se sempre. Afastava-se de contatos com académicos e depois de uma certa idade, evitava os salões tão em voga e que, no final da sua vida, podia muito bem frequentar.

 O hábito de cheirar rapé, já muito comum na época, também o contaminou. Hoje considerar-se-ia um pouco extravagante e até repulsivo o uso do rapé. Mas os alemães foram dos primeiros a adotar o hábito vindo das Américas, vulgarizou-se entre a burguesia, nobreza e até na Corte. Tanto Napoleão como o seu inimigo Wellington tinham esta prática bem enraizada.

 

 

 

 

Fig. 7 - Exemplos de velhas e bem adornadas caixinhas de rapé

 

 

Daí surgirem preciosas caixinhas de ouro, prata e pedrarias para guardar o tabaco. As suas propriedades terapêuticas para as enxaquecas ainda vieram tornar o hábito mais divulgado. Após a saída do seminário, os aturados estudos a que se dedicara, não traziam a realização das expectativas do almejado emprego. Se abandonavam os estudos e não queriam seguir a carreira eclesiástica, logo as oportunidades de um futuro promissor escasseavam ainda mais.

  Sem grande leque de escolhas viáveis, Hegel e Hölderlin que não quiseram seguir a carreira eclesiástica, procuraram arranjar outro meio de ganhar a vida. Preferiram ser precetores ou tutores de crianças, ou adolescentes, sempre com a esperança de obter um emprego melhor. Alcançar uma docência, numa universidade era o sonho de muitos, mas tremendamente difícil de atingir. O jogo das influências de figuras ilustres e das indicações de nomes, como no caso de Goethe, que pelo prestígio conseguia empregos para os seus prediletos, pode muito bem ver-se que estava por trás de muitos lugares que cada um lá conseguia conquistar

 

 

 

Fig. 8 - O nacionalismo de Goethe não existia e a sua admiração pelos grandes do mundo levaram-no a aceitar as homenagens de Napoleão

 

 

 

Quando Hegel conseguiu, em 1803, um emprego em Berna como professor particular, teve de dedicar o tempo quase inteiramente a educar os filhos do seu patrão, sendo pouco mais do que um criado e com raras regalias, o que tornava Hegel extremamente desgostoso. Berna foi um tempo que detestou, se bem que praticasse alpinismo, mas a beleza das montanhas só o aborrecia e assim o confessa nas suas cartas particulares

 Para sair de uma situação assim, só pela ajuda do seu amigo poeta Holderlin, que lhe obteve um lugar em Frankfurt. Hegel, que não gostara da Suíça, chega à cidade em 1796, onde também se encontra Holderlin que esperava o amigo com forte satisfação devido à sua própria solidão.

 

 

 

 

Fig. 9 - Centro da velha Cidade de Frankfurt é por um breve tempo local de alguma liberdade mas depois desespera-o…

 

 

 

Em Frankfurt, Hegel encontra um patrão melhor que é menos severo e pode dedicar-se mais aos seus estudos. Sabe-se que deixara um namorada em Estugarda, uma jovem de quem se perdeu o rasto, Nantte Endel, a quem escrevia confessando que não se sentia bem e, tal como iria acontecer com Hölderlin, passou por uma crise de desordens diversas que muito se assemelhavam  mais a hipocondria do que qualquer outra perturbação. De certo modo, o meio agitado e os casos de perturbações que aconteciam à sua roda parece que o afetavam

     Muitos jovens académicos, que se encontravam sem emprego e sem meios de se sustentarem, procuravam um lugar de professores de meninos mas isso não passava de um estatuto semelhante ao de criados. A humilhação que experimentavam era muito forte e, as perturbações físicas, bem podiam ser transtornos psíquicos por estarem num meio em que se sentiam inferiorizados e sujeitos a todas as arbitrariardes, vontades e caprichos dos pais e também dos alunos. 

.A tragédia da vida do seu companheiro de Tubinga, o infeliz poeta Hölderlin, também atingia o filósofo. Há muito que o via sofrer com cargos tão inapropriados para a sua sensibilidade, arrastando pupilos ricos e tendo de tomar conta de adolescentes de mau carácter que o exasperavam. Na sua humilde posição, não podia castigar os desmandos desses pupilos. Por seu lado, Hegel sente alguma apreensão pelos muitos casos de desordem mental a que assiste e preocupa-se com as consequências que traziam à confusa cidade de Frankfurt.  Tinha receio de que esses males também o atingissem e a sua hipocondria assemelhava-se aos problemas que vivia Hölderlin[2]. Hegel preocupava-se cada vez mais com o poeta que sofria excessivamente com alunos rebeldes e via a sua situação angustiante. Para além de uma vida sempre muito pobre desde a sua infância, órfão de pai, a falta de sorte e a tragédia seguem-no na sua sombra.

 

 

 

 

Fig. 10 - O trágico e inspirado poeta filósofo Hölderlin amigo de Hegel com quem partilhou alegrias e desgostos

 

 

Quando passou a ser tutor do filho do rico banqueiro Gontard, na cidade de Frankfurt, enquanto lá ainda vivia Hegel, apaixonou-se pela bela Susette (1769–1802), esposa do seu patrão. É claro que para o banqueiro se tratava de uma questão muito grave que atingia a sua honra. Logo que os rumores chegaram aos seus ouvidos, Holderlin perdeu não só o emprego mas também a residência em que vivia.

   Hegel seguia de perto o desespero do amigo e a sua situação insustentável. Os dois apaixonados só conseguem ter apenas raros encontros. É então que Hegel serve de intermediário entre os dois, o que mostra a dedicada amizade a Hölderlin e a sua forte simpatia pelo par ligado por um afeto impossível.

 

 

 

 

Fig. 11 - Hegel transformou-se na ponte que atravessava  o rio que separava o par através das suas mensagens

 

 

Não há nenhuma relação entre o severo filósofo e o papel de intermediário amoroso que Hegel representa neste caso. É ele quem transmite notícias entre os dois apaixonados. A sua amizade demonstra uma compreensão por uma paixão que a moral repudiaria, a ética acusaria e o rigor da lei castigaria. Hegel está para além e aquém de Hegel, quer na sua própria vida, quer nas suas amizades, quer na sua obra. É alguém que viveu igual e diferente de todos nós.

 

 

 

 

 

Fig. 12 - “ Canções de Luz” .

( A obra do poeta só foi realmente lida no século XX Contra todas as opiniões do seu tempo Nietzsche foi o único que enalteceu a sua obra.  )

 

 

 

   Hölderlin teve uma inspiração espantosa que contribuirá, mais tarde, para o tornar mundialmente famoso. A trágica fatalidade da paixão do poeta por  Susette aumenta o  seu lirismo e passa a tratar a esposa do banqueiro pelo nome de Diotima, que pela sua beleza grega inspirava o poeta que tanto amava a velha Grécia, quer pela alusão à figura da grega Diotima que foi a inspiradora de Sócrates no que respeita ao amor.

 É a este poeta que Hegel deve o seu conhecimento do pensamento heraclitiano, a noção do devir e a dos contrários, pois Hölderlin era também um filósofo, um romancista e idealista dentro do movimento romântico alemão.

 

 

 

 

 

Fig. 13 - A transformação da mulher em símbolo de todos os afetos -  Diotima

 

 

 

Essa formosa Susete será também a célebre heroína de “A Canção de Hiperíon”, (1797 – 1799), e ainda a tornou mais conhecida pelo nome de Diotima. Quando menos se esperava, dá-se a morte de Susette aos 33 anos. Holderlin não o soube de imediato. Mas foi golpe de que Hölderlin não mais recuperou. Com o desespero, conjuntamente com uma série de problemas políticos e o risco de ser preso,  adoece e refugia-se em casa de sua mãe. Hegel seguira de perto e atentamente as desventuras do amigo. As fases intermitentes de lucidez dão lugar à perda da noção da realidade. Escreveu durante esse tempo com intermédios de lucidez,  escritos que continuam a ser admirados.

Ainda hoje mal se sabe interpretar a sua perturbação. Viveu ainda 36 anos, numa torre, à beira de um rio onde algumas vezes passeava de barco.

 

 

 

Fig. 14 -  Nas margens do rio Neckar, perto de TUBINGA, agora é um "Museu do  Poeta"

 

 

Hoje o local ainda é conhecido pela torre de Hölderlin e transformou-se num belo museu nas margens do rio Neckar  Entretanto para Hegel, continuou a sua vida de perceptor até 1799 e, apesar de ter um patrão melhor que o anterior, esse abonado negociante chamado Gogel, se bem que fosse mais benévolo para com ele, pareceram-lhe intermináveis os 4 anos em que foi obrigado a viver em Frankfurt e a situação parecia-lhe cada vez menos suportável.

 

 

 

 

 

Fig.15 - A cidade de Frankfurt no tempo de Hölderlin e Hegel

 

 

 

   Com a morte do pai em 1799 recebeu uma pequena herança. Logo partiu para Iena onde pensava ingenuamente ter suficientes posses para viver sem trabalho apenas para as suas investigações com a ajuda desse legado e talvez encontrar o lugar de professor que sonhava. Contava ainda com apoios de amigos ilustres para obter um posto na Universidade.   Era uma etapa da sua vida que se fechava.

Agora Iena teria um grande desafio escondido para experimentar o homem e o filósofo. Seria em Iena que a oportunidade da vida evelaria, para o bem, ou para o mal, a sua têmpera do seu valor humano e filosófico. A história nunca julga, por se limita a escrever o que a Fortuna encomenda.

 

 

 

 

Fig. 16 - A fortuna ou o destino é mais forte do que os homens

 

 

 

 

 

 

Hegel chegou a Iena quando os melhores tempos da pequena cidade já estavam distantes e o filósofo em breve lutava de novo por uma vida estável e sem preocupações materiais. Viveu em Iena tempos de sentimentos tumultuosos, mudanças e transformações interiores até que Hegel defina os caminhos que quer seguir.

Não durou muito tempo, a facilidade em se dedicar às suas investigações e escritos, com os rendimentos da sua herança lhe proporcionava. quer ignorância ou desorganização dos seus gastos com a alimentação, vestuário, a boa cerveja que não dispensava e outros gastos que colocaram Hegel de novo com o peso das dívidas, sem nada seguro no seu destino. O seu lugar de professor na universidade de Iena alcançado por um apoio de Goethe e devido ao prestígio deste, mesmo assim era extremamente modesto em todos os aspetos.

Já o seu jovem colega e amigo Schelling começava a ter cada vez mais fama na mesma universidade onde Hegel chegara carregado de esperanças que se esfumavam face à realidade do rival inesperado.

 

 

 

 

Fig. 17 -  O grande filósofo idealista Schelling que tanta influência teve em Hegel, que a ataca mordaz e causticamente em “A Fenomenologia do Espírito

 

 

 

As fortes divergências de Hegel devidas às suas ideias irão levar a um afastamento cada vez maior entre estes dois amigos. Não se passou muito tempo e provavelmente começou a sentir que, na realidade, estava a ficar na sombra de Schelling. Este, mais jovem, mais brilhante no discurso, chegara um ano antes de Hegel, em 1798.

 Fora nomeado professor na Universidade, também com o apoio de Goethe e de Niethammer, após a saída de Fichte acusado de ateísmo. A sua fama crescia e os alunos eram cada vez mais exuberantes nos seus louvores. Durante 5 anos, os mais produtivos e entusiasmados da sua vida, alcançava um enorme sucesso nos meios académicos e entre os seus alunos.  Era convidado para os salões intelectuais que também de realizavam em Iena e onde raramente Hegel aparecia pois não o convidavam..

Nesta altura, Hegel amontoava problemas de toda a ordem na sua mente e na realidade. Com a desorganização da sua vida encetou uma relação amorosa com a dona da hospedaria em que vivia. Não era uma vida nada adequada ao filósofo e tinha de tomar as suas refeições numa sala comum, com gente de toda a espécie que ali se reunia por entre criados e assalariados, alguns muito humildes, rudes e pobres. Com os riscos das tropas de Napoleão a invadir Iena, a falta de recursos aumentava cada dia e a vida em Iena mostrava facetas que o filósofo não contava. Não mostrava ter um temperamento tolerante nem em nome de velhas amizades[3]. Quando pode escrever, a amizade e toda a ajuda do seu colega e companheiro dos bons tempos do seminário de teologia, não pesaram nas críticas que dirigiu a Schelling. O despeito ou a inveja tornaram-no irascível.

 Na sua obra “A Fenomenologia do Espírito”, lança ataques que chegam a ser cáusticos, excessivamente cruéis e irónicos. A sensibilidade do seu jovem amigo, que de modo algum contava com tais ataques, tão inesperados, sofreu um duro golpe.  Logo no prefácio Hegel troçava acerca da conceção schellingiana do Absoluto, como “um abismo vazio” em que se perdiam todas as determinações da realidade; comparando com a noite “em que todas as vacas são negras”, o que Schelling tomou como uma injúria pessoal”[4], sentiu-se dolorosamente ferido, com razão pessoal bem compreensível,  cortando todas as relações tinha com Hegel.

Esta rotura trouxe-lhe um desgosto inesperado tanto mais que colaboravam ambos em a Revista Critica de Filosofia (1802-1803). Schelling sentiu-se dolorosamente ferido com tais críticas tão mordazes e sofre uma crise que se refletiu na continuidade da sua obra. Viu então que Hegel cada vez se tornava mais conhecido e famoso em toda a Alemanha e o seu nome crescia com a fama que obtinha. Já Schelling passou a ter um triste ressentimento a esse rival e a sua escrita perdeu aquele brilho e entusiasmo que antes mostrara.

 

 

 

 

Fig. 18 -  A biografia mostra toda a complexidade de uma feminista que não se sabe guiar pela razão e se envolve em dilacerantes dramas de toda a espécie

 

 

A sua vida afetiva sofreu também algumas perturbações, pois Carolina Albertina Michaelis, (1763-1809) a esposa de Schlegel abandonou o marido para seguir Schelling. Nessa mesma época estava Hegel em Iena e seus encontros com Schelling e a bela e inteligente Carolina, por certo, causaram alguns sentimentos e até possivelmente algum ciúme por mais este lado afetivo tão prometedor do seu jovem amigo.

Carolina seria uma aventureira se não pertencesse a uma classe respeitável. Seu pai era um orientalista famoso. ela participara nos acontecimentos da revolução francesa e chegou a estar alguns dias na prisão por causa das suas ideias revolucionárias. O seu regresso à Alemanha também teve a ver com o seu primeiro casamento com um médico com o qual vivera em Paris. Por certo que Hegel se interessaria por trocar ideias políticas com alguém que estivera no centro de tão graves acontecimentos, mas não devia ter muita oportunidade visto o interesse de Carolina se ir centrar no então famoso filósofo que era Schelling.   

 A vida desta brilhante representante do movimento romântico alemão e este seu terceiro casamento com o filósofo também o levaram a afastar-se de Iena. Os salões de Carolina foram famosos e não menos as relações afetivas e amizades entre as quais se contam Goethe, Novalis, Humboldt, Fichte e até Hegel e outras feministas que, como ela, foram as iniciadoras do movimento das mulheres e um papel junto das universidades. A sua beleza e a sua escrita, reunida na maior parte em cartas, mostram que foi o centro do romantismo alemão e teve um papel importante no círculo de Weimar.

 

 

 

 

Fig. 19 - Uma mulher cuja vida foi um romance e cujo romance que revela uma das primeiras feministas com papel académico e que se pode considerar ter vivido uma vida incomum

 

 

 

Depois da morte de Hegel, foi Schelling que assumiu a sua cátedra em Berlim. As razões mais sérias centravam-se na necessidade de trazer para Berlim alguém para o combate ao “panteísmo hegeliano” e aí se escondiam também  interesses políticos do rei Frederico Guilherme IV, conforme escreve Urdanoz,.Infelizmente Schelling chegava atrasado. Se no começo as suas lições como profeta que vinha anunciar uma nova era, obtiveram uma audiência notável em que os nomes mais ilustres do seu tempo apareciam, em breve as aulas passaram a desconcertar o público.

A filosofia de Schelling que fora um anúncio de uma modernidade em Iena, não se adapta já, no final da filosofia idealista aos rumos materialistas que agora estavam no auge e que rejeitam as especulações metafísicas. Mais uma vez, a desdita atinge o filósofo que se retira por fim para Munique e veio a morrer na Suíça.

 

 

 

 

Fig. 20 -.  Paixão implica "pathos" e pode ser imensa.

 ( A grandeza é grande por razões que a contingência e possibilidade, a exterioridade e a essência tornam o  que era aparência, no caso feminino, a essência, e pela efetividade da ação reciproca  a necessidade torna-se guia dos acontecimentos. )

 

 

 

 

  Hegel já ultrapassara os alegres e loucos 20 anos, do tempo das paixões juvenis, dos entusiasmos e dos breves amores. A década dos 30 anos parecia afundá-lo com problemas de toda a ordem que em breve o levariam a uma vida prestes a ser miserável e anónima. Com a idade com que seu pai casara, o filósofo, em vez de reagir, mergulhava em dilemas e angústias de toda a espécie. Se os primeiros anos do novo século lhe pareciam auspiciosos, nada se cumpria e as nuvens carregavam-se nos horizontes. Afastava-se dos amigos, os alunos não se interessavam pelas suas aulas, nos salões não era bem vindo e a política era o assunto que mais dividia as pessoas. Entretanto as preocupações económicas cresciam e não estava a conseguir uma estabilidade de espécie alguma.

Quando chega o ano de 1806, o mundo parece desabar sobre a sua cabeça, tal como a cidade que vai ficar num caos com a invasão das tropas napoleónicas em 1806.

 

 

 

 

Fig. 21 - As tropas de Napoleão preparam-se para a batalha de Iena 1806

 

 No meio destas desordens, este é o ano da maior inspiração e capacidade filosóficas e escreve a sua grande obra-prima que já devia fervilhar na sua mente.  

É quase impossível ler “A Fenomenologia do Espírito” sem notar que, há frases pessoais, muita relação com a situação que vivia, de mistura com passagens do poético para o irónico ou para o sarcástico, ao mesmo tempo que expõe as suas ideias com profundidade espantosa, citações das suas leituras preferidas, convenientemente inseridas e críticas acérrimas a autores, mesmo que fossem amigos ou colegas seus.   O tom expositivo quebra-se com uma inesperada frase poética, ou até com um subtil sentido de humor. O rumo do pensamento continua porém metodicamente exposto para surpresa de quem nota que o subjetivo e o objetivo estão sempre presentes e qualquer especulação tem um lado oculto que se não lê mas existe presente nas entrelinhas. Estranhamente ou não, é também a época em que escreve com mais entusiasmo e profundidade.  

À sua volta a vida social e política impõe-se-lhe tão aterradora e caótica que chega a pedir insistentemente dinheiro emprestado ao seu grande amigo, Friedrich Niethammer, (1766-1848) um afamado teólogo, pedagogo luterano e filósofo que lecionara na Universidade de Iena até 1804 e agora ocupa um lugar excelente na função pública. Sente-se tão envergonhado com tal empréstimo, que roga que não diga nada aos seus secretários pois, como se depreende, as cartas podiam ser lidas por terceiros.   

 

 

 

 

 

Fig. 22 - Uma rara amizade fiel Friedrich Niethammer, curiosamente mais velho que HEGEL e que morreu mais tarde.

 

Niethammer manter-se-á seu amigo, durante toda a sua vida com uma fidelidade lisonjeira para o filósofo. Devido a isso, foi a ele que tantas vezes recorreu, nas alturas mais angustiantes ou com dilemas graves na sua vida pessoal. Ignora-se porém até onde ia a intimidade entre ambos. Quando Niethammer e a sua esposa o aconselham a casar-se, já Hegel estava em Nuremberga e com outras condições. Isso dever-se-á um sensato conformismo já que, pela idade e condição social que atingira, um casamento seria uma resolução excelente. Porém, se o casal conhecia a verdadeira situação de Hegel, quanto ao seu abandono de um filho e de uma mulher pobre em Iena, a sugestão tem muito de hipócrita e de falta de compaixão, pelo menos no que refere à criança.

Os sentimentos mais opostos deviam tumultuar na sua mente, enquanto as condições de vida se tornavam cada vez mais precárias e, para piorar a sua situação perde o modesto vencimento do cargo de professor.

 

 

 

 

Fig. 23 - Quadro de Daumier.

 VÊM AÍ AS TROPAS PERDEMOS A BATALHA!

 

 

 

As tropas entravam em Iena! Os acontecimentos na cidade precipitavam-se. De repente, o tempo corria veloz, tumultuoso e desconcertante face ao estático e lento passado. Tudo ruía na sociedade, nas mentalidades e nas opiniões extremadas que tudo derrubavam como um castelo de cartas com um vento sem mais oposições.

Napoleão trouxe consigo a maior desorientação para a cidade e a impossibilidade de lecionar, se bem que não fechasse a universidade. A impressão que a visão de Napoleão a passar a cavalo com as suas tropas pelas ruas de Iena, causou a Hegel uma tal fascinação que a sua personalidade ficou abalada. Esse breve encontro marcou-o para todo o sempre.

 

 

 

Fig . 24 - Hegel encontra Napoleão nas ruas de Iena.

Fica fascinado e terá pensado, conforme diz: - "EU VI A ALMA DO MUNDO!"

 

 

Chega a escrever, em carta a Niethammer, o seu profundo deslumbramento:

 

 “Vi o Imperador – essa alma do mundo – cavalgar através da cidade em missão de reconhecimento, é deveras um sentimento maravilhoso contemplar um tal indivíduo que, concentrado num determinado ponto, sentado num cavalo, abarca e domina o mundo ”.  

 

 

 

Fig. 25 - Napoleão com as suas tropas em Iena. O devir dos acontecimento não olha para trás!

 

 

O filósofo já não era um moço impressionável para quem as tropas e o porte orgulhoso do Imperador o marcassem somente pelas aparências. Tais palavras remetem para um pensamento já bem ponderado que se explanará por muitas obras. Estas palavras revelam aqui não só o pensador mas também o homem com todas as suas contradições bem visíveis. A filosofia hegeliana nasce ali, numa intuição que a figura de Napoleão lhe indicou e se concentra nela como numa espiral infinita que nada tem de um círculo vicioso mas sim indica a sua espiral no infinito não o prende mas tem sempre o fito de atingir a unidade do resultado.

A intuição que a figura do imperador lhe provocou foi muito forte e originou uma viragem no seu pensamento que se organizou num todo do qual as partes serão depois devidamente estruturadas. A sua fenomenologia tem repetidas vezes e a sua filosofia da Vida corresponde a uma filosofia da intuição de tal modo que é em Schelling que fundamenta essa noção da filosofia da natureza e a preparação para a sua própria filosofia.

 

 

 

 

Fig. 26 - A Ideia na sua realização até ao absoluto que se cumpre pela ação da humanidade.

 ( O resultado é o todo no Uno em que todas as possibilidades se cumpriram. Se todas as possíveis se realizam restará ou não a possibilidade impossível? )

 

 

 

A linha do pensamento de Fichte, Schelling e Hegel começaram por ter um desenvolvimento comum que partia do idealismo e do kantismo no seu dualismo que de certo modo nem o afirma. Mas os três filósofos acabaram por se desentender fortemente entre si pois as suas personalidades se chocavam.

 

 

 

 

Fig. 27 - Para Schelling o conflito entre a liberdade e a necessidade será um dos desaguisados entre este filósofo idealista da natureza e da arte e o racionalismo da Ideia Absoluta e da sua Imanência em Hegel

 

 No entanto, Schelling teve forte influência em muitos dos temas hegelianos quer sejam o devir ou a evolução da natureza para um “eu” que atinge a racionalidade.  Recorde-se que são nesses termos que Hegel afirma “a alma do mundo” quando se refere a Napoleão é a intuição da alma que só encontra a sua verdadeira realidade numa individualidade que se efetiva. Assim só se produz uma alma particular.

Ali, na rua por entre o pó que a cavalgada levantava, Hegel de chapéu na mão cogitava longamente na intuição tão forte que aquele homem lhe causara no seu espírito carregado de ideias que agora pareciam ordenar-se numa fulgurante inspiração. O “eu”, que está entre o espírito universal e a sua singularidade, é Napoleão que se organiza de modo a ser  a alma do mundo num momento particular em que centraliza todo o real. Não se limita a ser um movimento contingente, mas necessário. É a presença da totalidade do espírito que, pela intuição com base na perceção se manifestou em Hegel.

Bonaparte deixou de ser um homem para se transformar num símbolo do grau que a condição humana já atingiu. Novamente Hippolyte repara na ambiguidade fundamental hegeliana no que respeita a Napoleão pela relação da consciência de si com o seu mundo, ora sendo a consciência de si que se nega como singularidade adaptando-se a esse mundo espiritual, ora o modifica.” [5] Este  famoso tradutor e comentador francês acrescenta ainda que o filósofo, no que escreve se reporta às suas aulas de Iena e ao papel que o indivíduo tem na evolução. A universalidade particulariza-se para permitir a liberdade. A manifestação note-se que Hegel esclarece bem que se trata do conteúdo e a determinação concreta. A sua realidade é uma possibilidade imediatamente infinita e absoluta. É uma verdade no desenvolvimento do espírito.   

 

 

 

Fig. 28 - A derrota de Napoleão não altera a concretização do espírito

 

 

 

Por ter tão grande fascínio por esta figura, Hegel sentiu desgosto com a queda do seu herói, mas logo se recompôs. Já estava numa fase de grande estabilidade, casado e com um bom lugar de diretor de um liceu. Não se impressionou com a queda do seu herói. 

Continuando de acordo com o seu sistema filosófico, Napoleão não tinha mais possibilidades de surgir. É com ceticismos que já não acredita que a saída da ilha de Elba e a sua liberdade traga um sentido da grandeza do seu herói que já se fez pó na história porque a realização do Espírito do mundo já acontecera no seu degrau. Bonaparte fora uma figura que, ao desaparecer, já elevara o Espírito a um novo patamar graças à “astúcia da Razão”, essa “deusa ex maquina” que nele atuou. O seu herói é a afirmação porque a ambição de Napoleão estava em sintonia com o todo e ele foi a figura de uma etapa já vencida e o seu destino entrou em contradição como acontece com as individualidades no seu todo que não conhecem o seu destino nem a necessidade. No seu devir tratara-se da forma que anunciava o novo espírito superior, mas agora já não é pois tudo é processo.  

Mais do que todos os outros grandes nomes de heróis que esmaltam a sua obra, o Imperador é como que o desdobrar de uma intuição que dá um fio condutor ao seu pensamento. A revelação foi tão forte que a sua obra ficou delineada na sua mente. A partir de então, desapareceu o jovem Hegel e há um filósofo que sente o forte desejo de dar a público o seu pensamento.  

Se tivéssemos dúvidas acerca da importância fundamental desta obra, no próprio desenvolvimento do pensamento hegeliano, bastaria recordar que, só porque a morte o surpreendeu, não chegou a editar de novo essa obra, quando já tinha já amadurecido o seu pensamento.  Se não pudesse parecer caricatura, Hegel é o nosso Platão, como Marx é o nosso Aristóteles.

 

 

 

 

 

 

 

De novo um enxame de comentadores e seguidores, ao lado de contestatários e críticos, fragmentou essas obras num sincretismo eclético como aparecem nas épocas de fortes mudanças e choques de mentalidades que não chamarei crises, pois estas são permanentes.

 

 

 

Fig 29 -  Um desenho raro de Hegel

 

 

Como entender as contradições e a construção sistemática de um edifício filosófico que é escrito por um homem de carne e osso que se aliena de si para ser apenas um pensamento especulativo? Na nossa busca de sentido e de entendimento do pensamento de Hegel tomamos o lema do escritor policial que inventou o detetive armado de lupa e de gabardina que, face a um caso que a todos parece insolúvel, tem sempre uma intuição:

“Cherchez la femme”!

 

 

 

O ano de 1807 foi o da publicação da sua obra e também o ano em que nascia, em fevereiro, o seu filho Ludwig considerado ilegítimo na época. Ora, o ano anterior será decisivo para a obra que Hegel ultimava. Entretanto tinha que decidir que rumo teria de dar à sua vida. Comprova-se assim que foi no meio de uma tempestade que profundamente o abalava, que ultimou a sua obra e procurava meios de a publicar, ao mesmo tempo que tentava, a todo o transe, desaparecer da cidade. Esta sua saída da cidade e abandono de mãe e filho tem relação forte com o que escreveu, especialmente na parte final da fenomenologia.

Por razões que nunca se tem procurado descobrir, a sua vida pessoal, durante estes anos em que viveu em Iena, é profundamente diferente da forma como antes e depois se comportará. Este facto é impossível não marcar fortemente o seu trabalho. Hegel esteve mesmo à beira do caos, menos seguro mesmo que no tempo em que ganhava a vida como tutor. Tratava-se de ocupações muito pesadas, mas ao menos, socialmente garantia o seu pão de cada dia. Os contrastes de grande parte da  vida que viveu e obra posterior com a forma de vida que levava até à sua chegada a Nuremberga são espantosos para não referir que a escrita se transformava num trabalho de sublimação e de luto, até certo ponto inconsciente, para o próprio Hegel.

A sua visão vai tornar-se cada vez mais racional ao ponto de nos parecer gelar, tal a frieza com que encara a necessidade da guerra e se opõe ao ideal da paz perpétua de Kant. Seria através da guerra que o  progresso era mais rápido, se tinha a noção da vacuidade do que nos rodeia, que a saúde ética das nações se fortalece. Face à guerra Hegel vai defender que a sua crueldade, a sua arbitrariedade, as vítimas que arrasta num longo cortejo  traz a forte manifestação do espírito, trás consigo novas formas e isso é a realização da Ideia.

Estes pensamentos são mais tardios e tão desumanos que nos levam a pensar em que mente se podiam abrigar tais ideias, sem um desespero e desprezo pelos seres humanos? O afastamento de Hegel das realidades vividas pelos militares, pela gente faminta e estropiada, pelos gritos dos feridos e moribundos, ter-lhe-á passado ao largo, ou os seus próprios sofrimentos e desgostos o tornaram frio e gelado como nos aprecem em qualquer dos retratos que chegaram até nós e em nenhum deles a sua figura cativa qualquer simpatia.

 

 

 

 

Fig. 30 - O tempo não foi bondoso com Hegel.

( Acentuou a crueldade dos olhos frios e tornou a usa boca amarga destacando-se num rosto duro Há orgulho frio e sem piedade nos olhos que nos fitam )

 

 

Mas a Ideia é o Espírito que atua em cada um e, também por isso, no infinito, por conseguinte o Espírito é o Absoluto como o resultado do devir. O risco de falar do sistema, fora da sua construção, é esquecer que o espírito está em tudo e é a unidade do idêntico e do diferente, efetiva-se num mundo que lhe pertence e se reconhece nas figuras que se têm todas de se realizar. Tudo isso é o desenvolvimento da condição humana, mais cisões e reconciliações só se efetivarão através do devir que conduz ao Absoluto sempre na total imanência ao Uno.

Toda a sua longa caminhada através de uma fenomenologia parte da Ideia, que jamais se pode referir como vazia, pois a filosofia de Hegel é a filosofia da imanência e assim, potencialmente com todos os seus contrários, é sempre a Ideia que é o Absoluto. Para  justificar os seus atos e inclinações, Hegel tenta separar da sua vida a mulher que está presente na realidade de que fala. É assim que se adivinha uma escrita que não remeta apenas para as considerações e citações lidas como abstrações puramente filosóficas. Essas considerações têm muito de vivências pessoais e dos seus afetos. É importante também ler atentamente nas entrelinhas para seguirmos a marcha de um pensamento para realização do espírito. Isso será possível se, em vez sei ficar por citar e ler os comentários de Jean Hippolyte no rigor na tradução e lúcidas observações, se siga igualmente um outro rumo, mesmo sem abandonar as achegas que os comentários oferecem.

Trata-se de descobrir um pouco que foi esse Hegel vivo e de condição humana e vislumbrar uma Christiane Charlotte Burkhardt que, com certeza, nem soube da intenção de Hegel de sair da cidade ou, se de tal soube, deve ter tentado opor-se o que é manifestamente óbvio. A sua figura tem uma essência que de acordo com a filosofia hegeliana era, antes de mais uma alma, vida e  também ideia do bem na consciência natural sem alcançar o saber absoluto e sendo somente um conhecimento do sensível, sentimentos e ação.

 

 

 

 

 

 

Fig. 31 - Que congeminava Hegel depois de saber que vai ser pai? A sua mente descobriu que a dialetica promordial se realizava assim?

 

 

 

Abre-se um parêntesis aqui para as considerações acerca da lei do coração e da loucura singular ou geral. A mulher que está ligada ao filósofo, Christiane Charlotte, espera um filho e não sabe o que lhe irá acontecer nem qual será o procedimento de Hegel. A sua angustiante situação deve ser vista também pela perplexidade de Hegel que não tinha decidido o que resolver em tais circunstâncias comprometedoras para a sua pessoa e para a sua carreira. Hegel vai argumentar acerca deste problema que o perturbava e que, se serve para fundamentar a validade dos seus raciocínios lhe serve também para negar a revolta do individualismo a que atribui também a designação de “delírio da pressuposição” e uma forma de individualidade que designa por revoltada. (.P. 307).

 Ora, a busca da possibilidade da lei do coração particular existir tem um forte óbice: nega a razão. A lei do coração, ao surgir numa consciência, pertenceria ao mesmo tempo a duas essencialidades diferentes. Poderemos situar aqui a sua dialética vivida exemplificada com a situação vivida por Christiane Charlotte, que se rege pela lei do coração e no seu entender feminino não se apercebe, no seu delírio da pressuposição, a sua alienação diante de uma ordem que exige que a sua subjetividade que se torna “estranha” no seio da ordem social. O que ela sofre não passa da infelicidade da sua humanidade enganada nos seus desígnios contraditórios que no seu íntimo forçosamente se aniquilam.

Estamos no século da Razão após a grande expansão das luzes e depois de um Kant que as proclama como vitória da razão, até Robespierre a transformar na Deusa Razão com o seu templo em cujas aras qualquer um podia ser sacrificado. A grande ironia é a própria morte de Robespierre, discípulo de Rousseau, que aí  tem o seu paradoxo.

 

 

 

 

Fig. 32 -   As luzes chegam a uma dominação da loucura e do paradoxo e a sombra de Rousseau esconde-se no pedestal.

 

 

 Na continuação deste e sua conclusão na condição humana não há mais lugar para a loucura, como bem assinalará Foucault. Este filósofo cumpre uma parte das profecias dos três grandes suspeitos. Trata-se de um discípulo de J. Hippolyte e é o autor de “A História da Loucura”, iniciando as suas considerações através da visão que a sociedade teve da desrazão e as alterações que este assunto sofreu. O que é aqui a argumentação de Hegel esconde a dificuldade de conciliar a liberdade com a necessidade que, nunca terá uma fundamentação sólida. 

 Alienada no interior de si, começa a loucura da mulher que Hegel quer convencer da sua argumentação, pois insiste da desordem existente no íntimo da consciência de si, pois esta não pode ser entendida de modo geral. Para o autor de “A Fenomenologia do Espírito” seria o resultado de um absurdo:

 

 

 

 

 

 

Fig. 33 - O delírio da presunção deriva da subjetividade lógica não se adequar á objetividade lógica.

 ( A partir daqui a loucura tem de ser expulsa para que a lei e a liberdade reinem no real social )

 

 

 

 

 “ se qualquer coisa de não essencial fosse fundamentada no essencial, qualquer coisa de não efetivamente real por real de modo que o que para um seria  o essencial ou real não o seria para o outro e que a consciência da realidade efetiva e aquela da não-realidade, ou  a consciência da essencialidade e aquela da não-essencialidade cairiam lado a lado.”  O geral é assim a forma de ultrapassar a loucura. Há, comenta J. Hippolyte, na loucura necessariamente uma contradição pois a consciência singular é ainda consciência do geral. No furor da sua consciência e para a preservar da sua destruição a lei do coração em geral expulsa fora de si o outro.

 

 

 

 

Fig. 34 - A ordem só existe quando se admite uma desordem.  A nossa noção de ordem cria logo a visão da desordem

 

 

 

A leis subsistem porque são protegidas contra um só individuo. A lei do coração só existiria na ordem e no coração do mundo. Do lado do individuo, que neste caso bem podia ser Christiane Charlotte, toda a sua argumentação de conservar o filósofo junto de si ou do filho não estaria conforme a lei do coração do mundo. Em nome da razão e da necessidade da ordem, Hegel legitima a sua desaparição de cena.  

 No lado da presunção do delírio estaria a realidade efetiva como não realidade efetiva, os seus dois contrários estão nela na sua contradição e assim a sua essência é que está perturbada no seu âmago. A argumentação que toma o particular da loucura e o geral da efetividade da ação e da ordem. Ora a lei é o universal aqui presente, que é uma resistência universal e um conflito de todos contra todos. Na lei está o coração do mundo muito mais do que a “loucura de um bem querer” que mais tarde Vilfredo Pareto irá desconstruir pela presunção das ações lógicas que na verdade são não lógicas, mas com base na subjetividade comum, na crença na fé ou até como no caso que Hegel cita “O bater de um coração” pelo bem estar da humanidade passa por um desencadear de uma presunção demente.

 Em   “Les Brigands”, a primeira peça que Schiller escreveu, coloca a situação em que, face aos seus bandidos sequazes, o herói Karl injustamente acusado, descobre que não pode aceder à justiça através do mal e da anarquia. Os bandidos espantados, neste caso, são a desordem da consciência que não se reconcilia, vendo o seu chefe entregar-se à lei que o julga mesmo que esteja inocente, antes da sua revolta contra o tratamento do seu pai enganado quanto ao seu caráter  pelo seu invejoso e cruel irmão.

 

 

 

 

Fig. 35 -  A expulsão da loucura da sociedade entregue às instituições

 

 

O sociólogo Vilfredo Pareto usará desta mesma lógica para se questionar teoricamente se, no caso de Lenine, este estivesse consciente do mal que o bem querer do seu coração iria trazer ao povo ou se limitaria a ser uma “consciência observante” da evolução do mundo. Eis para Hegel o argumento mais forte para calar a voz feminina que reclama contra a sua racionalidade tão fria. Não há qualquer lógica que se concretize na realidade efetiva em Christiane. Hegel afirmará que é a loucura e a desordem que se apossaram dela, isso é, o que a  aliena e, por isso, Hegel  ao abandoná-la e ao filho tem a justiça do Universal do seu lado.

A lei do coração face à necessidade da efetividade geral só geraria conflitos sem fim pois todos estão contra todos, há que expulsar o “ estrangeiro”, neste caso, o “Outro”, uma lei do coração que só tem por fundamento a contradição existente na essência mais íntima da consciência. Acrescente-se que, isso se alargaria a toda a mulher da sua época que se guiasse pelo coração e suas inclinações desrazoáveis e delirantes face à objetividade da  justiça em vigor.

 

 

 

Fig. 36 - Se a razão é gelada, poder-se-á dizer que Hegel não sente assim qualquer lei do coração em si pois tem tanto argumento para o “ Outro “ que deve ser também para si.

 

 

  

 

A questão que se levanta é se tais argumentos bastariam para o regresso à sensatez do Universal da parte da mulher. Por outro lado, a interrogação grave e mais geral é se o coração do mundo é masculino e se a evolução desse mesmo coração não terá de aceitar, em vez de dissolver, as consciências que mutuamente de digladiam. O processo e progresso do sistema hegeliano, condena-o à loucura que o atinge quando se torna histórico. É em nome do progresso e do seu desenvolvimento que os conflitos são alienações que se dissolvem para dar lugar a outros. Ao colocar o devir, no seu sistema, toda a solidez desaparece e apenas o movimento da Ideia acontece continuamente.

A ordem e a razão dominam o mundo do século XIX ocidental. Mas a lógica não é no sistema ser somente uma estrutura. A sua ontologia não é uma “virtude” estática. A operação da totalidade concreta dá-se no devir e o impossível esconde-se no âmago da razão como a loucura na sua racionalidade máxima.  Assim o idealismo da lógica de Hegel era a totalidade da Ideia sem oposição pois se tratava de manifestar até onde chega a sociedade.

A tese de Hegel condena a feminilidade à loucura, quando se guia pela lei do coração. Mas a mesma tese, num outro contexto condena à loucura e à presunção fúriosa do bem querer singular que ele passou a representar a ser um estranho e um outro que se condena à expulsão da cidade. A loucura espreitava já o filósofo masculino que tanto defende a realização de todos os possíveis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Só o filósofo devia recordar, bem melhor do que todos, a voz e o vulto de Christiane Charlotte que em vão se procura. Entretanto, a personalidade da própria irmã no que toca ao problema da loucura também muito o preocupava. Depois da morte do pai e das interrogações acerca do seu futuro, o rumo da sua vida estava numa situação sem definição. Foi também nesse tumultuosos anos, já em 1807 que Christian Louisa conseguiu um lugar de excecional importância e responsabilidade ao tornar-se governanta da Casa do Conde Josef von Berlichingen, uma das mais cultas e relevantes personalidades de toda a região.

O cargo atribuído à irmã de Hegel, como mulher, revela que a sua cultura e a reputação da família de sua mãe se manifestavam. Tratava-se da Casa que mais perto estava do rei da Prússia e, a viuvez do conde nesse mesmo ano, influenciou a necessidade de uma governanta.

 

 

 

 

Fig. 37 - Cristiane Louise uma mulher desconhecida com uma notáveis facetas na sua vida obra escrita por Alexandra Birktet

( A descoberta da irmã de Hegel, cujo destino tem facetas notáveis para a sua época )

 

 

 A paixão amorosa em que Hegel se envolveu e as consequências que lhe podiam trazer uma tal relação com a sua hospedeira, provavelmente inflamavam-lhe a mente e a escrita torna-se prodigiosa. Quer por desejar ultrapassar, ou querer esquecer, esta mulher está presente nesta obra. Diante de todos os acontecimentos em que a sua situação se tornava equívoca, com diferentes soluções, parece que a determinada altura acordou para outras realidades.    

Então a sua racionalidade atuou friamente, como que se estivesse até então adormecida, e “o velho”, apelido que lhe deram os colegas na juventude, é a faceta que vai mostrar pois, no seu íntimo, nunca  perdeu as ambições que acalentava e se revelarão efetivadas tal como a sua obra. Houve uma altura da vida, em que Hegel e Christiane Burkhardt estiveram apaixonados, isso pode-se afirmar. Para tal, basta ler a obra nas suas entrelinhas e ver como se debruça sobre a questão do amor que escreveu nessa época.

 Bastará colher algumas das imagens de que se serve e frases a que recorre; A consciência de si atira-se então à vida e encaminha-se para a realização da mais pura individualidade em que ela lhe surge. Mais do que construir a sua própria felicidade, ela colhe-a imediatamente e imediatamente goza. As sombras da ciência, das leis e dos princípios (…) desaparecem como um nevoeiro sem vida, incapazes de suster a consciência de si com a certeza da sua realidade. A consciência de si colhe a então a vida como quem colhe um fruto maduro que chega à sua mão que o segura.”[6]

Que se pode encontrar de mais límpido para a descrição de uma inclinação afetiva, a que o próprio Hegel não resiste? 

Se mostra influência de “O Fausto” de Goethe não se negará que a sente interiorizada na sua vida. Mas tal consciência rebela-se contra esse estádio em que não deseja permanecer.
    A revolta contra o destino já se manifestara bem cedo, comenta esse seu extraordinário tradutor francês Jean Hippolyte
[7], recordando que escrevera:

O destino é a consciência de si mesma como um inimigo” e Hegel parece entender que o prazer do gozo leva muito longe até chegar à dialética da dominação e da servidão mas a independência faz com que cada um seja por si. 
[8]

 

 

 

 

Fig. 38 - Jean Hippolyte, o famoso comentador e tradutor de Hegel

 

Na definição lacaniana, que Slavoj Žižek aceita, o amor é uma forma de oferecer o que não se tem, então, no fim da transferência, o oferecer o que não se possui converte-se na prova final de que o que se deixou é algo que nunca se possuiu. Há dois senhores que são outro para o outro, mas a dominação não se dá sem alterar as consciências. Todavia não termina pela aniquilação de nenhuma consciência. Anulada a troca pela troca a luta não termina. A figura feminina envolve uma relação com a vida e a natureza. Christiane Charlotte fica grávida e Hegel tem de enfrentar uma nova realidade.
    Na dialética primordial a luta nunca acaba e Hegel na unidade do homem e da mulher não fala da continuidade da vida através do filho. Só irá referir mais tarde, no contexto burguês do seu tempo, a família na sua moral subjetiva. Em nosso entender a dialética primordial não acaba porque todos, as consciências, os outros optam pela vida. A cena trágica é apenas o palco de Hegel a sós com a sua consciência descoberta e desdobrada na sua dialética que engloba todo o real no racional.
     Por estranho que pareça, numa época em que o individualismo era raro, Christiane e Hegel só podiam contar consigo e eram independentes, pois contavam apenas consigo para sobreviver.
Presume-se que Christiane fosse, nessa altura, uma mulher em plena maturidade e que a sua proximidade o fez conhecer em confronto com outras mulheres e ajudou a encantá-lo. Ambos vivem sós, são individualidades bem diferentes, e esta alusão é possível de ver na obra. Ela perdera o marido que a deixara em circunstâncias materiais bem difíceis. Assim, foi Christiane a mulher que arrebatou Hegel numa etapa em que a vida lhe exigia a sua vassalagem ou submissão.

 

 

 

Fig. 39 - Os olhos azuis e a boca firme de Georg Hegel, o seu porte orgulhoso e a sua postura carregada de segurança causaram uma forte impressão na sua hospedeira em Iena

 

 

  Para ela aquele terá sido o hóspede mais estranho que lhe apareceu na estalagem de que tomava conta para sobreviver. A sua curiosidade deve ter despertado, face a todo o seu aspeto educado, que mostra claramente que se sente superior e não deixa de ser orgulhoso com um olhar frio e um certo desdém que lhe retira a possível beleza ou humanizasse um pouco mais o seu rosto. Mas há mulheres que gostam de desafios e Hegel deve ter, no início aparecido como um mistério, ou melhor, um enigma que no final nenhum segredo lhe revelará.

Com o passar do tempo, a admiração suscitada por alguns comentários, aumento da proximidade e convivência levaram a que ambos vivessem uma relação afetiva. Já antes mesmo de escrever uma outra obra sua “Filosofia do Espírito”, 1805, o amor feminino caracteriza-se nele como o mais belo amor existente entre todas as formas humanas. Eis o reconhecimento de Hegel face à superioridade feminina, mas apenas no que se refere aos sentimentos.

 Porém é só quanto ao amor que a expressão mais alta do caráter feminino se apresenta. A fisionomia de Christine não se pode vislumbrar, mas tinha o encanto dos contrastes, do gracejo ligeiro e de saber colocar na ordem um hóspede mais atrevido ou saber obrigar um zaragateiro a desaparecer, tudo isso.A sua presença tornava-se quotidiana e cortava com o resto do tempo de trabalho exaustivo de académico, com um sentido da vida na sua plenitude bem mais fresca e viva do que nos seus textos e livros que, a certa altura, desapareciam para a imaginação lhe obrigar a ouvir a sua voz, as suas gargalhadas e a gentileza do seu porte feminino.

Fora de toda a realidade que já ultrapassara, há que ver de que modo persistia nele a sua infância, a sua vivência pessoal, a sua forte relação com a própria mãe e a recordação dela com os dos ensinamentos, que o tornaram grato para com Madeleine Louise, uma mulher muito acima da sua época pela sua cultura excecional. Hegel não se refere a nenhuma destas realidades que viva então e remete para a maternidade essa capacidade de amor. O seu espírito conservador e tradicional de uma burguesia para quem a lei tinha uma função de solidez e de representação da sua sociedade coloca por isso toda a beleza e realidade numa só faceta feminina: A maternidade. 

Hegel chegara de Iena, trazendo ainda vagos ideais românticos e rebeldes, mas o ambiente estava em forte alteração É certo que não é já um tutor de meninos, mas escrever uma Gazeta parecia-lhe não corresponder ás suas conveniências. Os seus interesses estão em jogo e a publicação da sua obra preocupa-o muito.

Com o tempo, passou a sentir menos rancor à cidade, mas ganhou gosto pela escrita e parece que o trabalho de jornalista o entusiasmou até demasiado. Começou a ter problemas com a política e com as autoridades pelo carácter crítico e revolucionário dos seus artigos. A amizade entre os dois amigos começara a deteriorar-se pela diferença cada vez mais forte das suas ideias e, por certo que Hegel não gostaria de ser a sombra de alguém tal como era o filósofo Schelling.

 

 

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Fig. 40 -  Um palco com um só personagem

( O Uno  no início e o fim das contradições no seu desenvolvimento . O monólogo de Hegel acerca da consciência de si que se desdobra denota a impossibilidade de dialogar com a mulher que quer aceitar como a outra consciência para si mesma )

 

A consciência de si singulariza-se torna-se objeto para si mesmo. As consequências são que “mais do que unidade de si mesma e de a outra consciência de si, ela torna-se como objeto de si mesma como singular suprimido ou como Universal.”
    O prazer vindo do gozo tem dupla significação. A faceta positiva é a do ser tornado certeza de si mesmo, como consciência de si objetiva e a significação negativa é a de suprimir logicamente a si mesma. A consciência de si na própria atualização positiva toma consciência da sua experiência como contradição e assim a consciência de si assiste à aniquilação da parte da essência negativa já privada de realidade efetiva. Ergue-se assim vazia diante da consciência. Esta essência é apenas de que o conceito de que esta individualidade está em si. É não é ainda “a mais pobre figura do espírito pois ela é para si mesma a abstração da razão ou a imediatidade de ser para si em si.
    É qualquer coisa estranha a que Hegel vai dar o nome de coisificação. O círculo da abstração projeta nela a mediação. A mediação é necessária por que agora a intuição falha. Antes o prazer do gozo chegava à consciência como a pura unidade e da sua relação. Mas agora aqui surge a mediação para o ser para si. O que se entende por mediação é a necessidade de uma conexão sólida. O hegelianista Serreau parece apresentar uma das mais rigorosas formas de explicitar a mediação em Hegel.
   
A unidade, diferença e relação são categorias, abstrações vazias que não são para si um “em si”. O exemplo confirma-se com a necessidade morta. Deixa de ter conexão. Assim, Serreau coloca o raciocínio entre dois extremos. Por um meio - termo estabelece a mediação entre o universal e o individual por meio do particular.[9] Assim se poderá afirmar que tudo é raciocínio se tudo é também conceito. Poder-se-á perceber o que Hegel diz ser a sua consciência concebida como essência particular sendo para si e todavia a atualização de um fim, como o desejo que o gozo alcança, uma atualização que constitui a ultrapassagem desse mesmo fim. Assim aqui podemos supor que se refere à mulher que prefere abandonar. Privada do gozo de si mesma, a lei do coração dá lugar à aparição de necessidade que surge. Contradiz a lei do coração por outra que surge e se levanta sem fundamento, para além da possibilidade.
    A humanidade pertence à necessidade e esta não tem justificação para Hegel. Mas é por causa dela que a humanidade sofre e se dilacera. Entre as duas leis a humanidade inteira padece porque as tem de viver separadas. Quanto à lei do coração o racionalismo hegeliano vai  encontra resposta na singularidade que não tem do seu lado qualquer efetividade possível pois sem a universalidade os conflitos não teriam fim.
    A lei, que se opõe à lei do coração, está separada deste e livre para a necessidade. É a lei do coração depois de privada do gozo de si mesma. Atualiza-se e deixa de ser lei do coração. Assim se dissolve, afirma ainda, para mais reforçar a sua tese, como uma sombra que se dissipa ao sol.
 A passagem desta lei do coração para a necessidade é uma das mais obscuras e contestadas trechos que chega até ao filósofo e rebelde,  Žižek, nos nosso dias e que nos fala de Hegel como “O mais sublime dos histéricos: Hegel”[10]

A condição humana humaniza-se pelos sentimentos mais subjetivos nas mulheres do que nos homens. A realidade da mulher, como mãe de família é a do sacrifício que é a segunda fase da contradição primordial. Pelo bem estar dos seus filhos que dela dependem e não do pai figura que não é mais do que o  senhor, a mãe é a alienação no amor que não se ama a si mesma mas aos filhos. Aqui se manifesta a alienação na sua forma que em Cristina se corporiza e se oculta.  A sociedade não tem qualquer alternativa para o sacrifício da mãe. A sua revolta sobressalta Hegel, o pensamento ocidental inteiro. A ocultação da mulher no seu sacrifício traduz-se na sua exaltação maternal que vai ao extremo de ser aplaudida pela vítima.

 

 

 

 

 

Fig. 41 -  A mãe é a luz doce e feminina que mantem no coração dos filhos, uma recordação porque se sacrificou por eles e aceitou sempre o sacrifício.

 

 

Não aceitar que a mulher se torne numa mãe que se sacrifica pelos filhos é negação da negação na própria mulher que aqui realiza como poder sobre o outro embora objetivamente seja na dialética uma ação não essencial. O reconhecimento da mãe é unilateral pois não é da mulher do senhor que a reconhece. Como afirma Hegel e jogando contra ele, a mãe “é o inverso do que ela quer ser”, na exploração em que a mulher é a consciência reprimida. A sua consistência reside numa negação da sua negação que não lhe permite a inversão do sacrifício pois é nessa dor e doação que ela, a mulher, é reconhecida na figura de mãe. A renúncia ao sacrifício e doação de si pelos outros é o amor numa das facetas que a dialética do senhor e do servo permanece. 
   
Só os grandes homens da história apreendem o universal superior, são heróis porque realizam o universal “ receberam interiormente a revelação do que é necessário e pertence realmente à possibilidade do tempo (…)".  Os grandes homens da historia devem ser compreendidos em função da sua situação. O que neles há de admirável é que se tornaram o s órgãos do espírito substancial; nisto reside a verdadeira relação do individuo à substancia universal. E certo que o universal existia desde toda a eternidade mas os atos que realizam e parecem ser apenas em função dos seus interesses mas não estão apoiados apenas nas suas forças, o que é mais importante é que eles conhecem o Conceito e o universal que está em vias de se produzir.
    A “astúcia da razão” para Hegel é aquela que só dilacera e dá sofrimento ao individual porque esta individual não se coaduna com os seus fins. A impiedosa necessidade oprime a individualidade e a singularidade e opõe-se a ela. A sua comparação entre o destino desses heróis, na figura de Napoleão que o fascinara, confronta com a sua individualidade que sabe não ter um destino tão grandioso. Sabe que o destino é totalmente diferente para os grandes da história. Enquanto isso os indivíduos comuns sofrem as consequências de uma razão que desconhecem e que os leva a realizar fins que desconhecem.

 

 

 

Fig. 42 - Hegel? Qual deles é Hegel?


( Até a sua contradição é o seu impossível e existe porque é um possível impossível. Enganou o destino mas não a História )

 

 

 

Note-se a sequência da revolta de Hegel contra o destino e essa hábil solução racional para a situação que ele vivia. Nesta obra coloca tal engenho literário que nenhum outro escrito seu se iguala a este. A evolução dos sentimentos sucede-se por uma intuição de duas consciências independentes que do desejo e do gozo passam por um processo que descreve e em que se evidencia a intuição como modo de ultrapassar diferentes etapas.

A verdade, ao atingir um fim, tem logo também a consequência de o ultrapassar e leva à separação dessas consciências que voltam a ser independentes. Mas há já um outro grau pois o devir é contínuo. Assim foi através do “fieri” de Schelling que entendera o devir de Heráclito Admite ainda uma outra ordem de ideias, pois essa atualização e efetividade são próprias de todas as consciências e por isso tanto se passa numa “consciência natural ou numa consciência educada num sistema de leis.”

A dialética está patente quando trata da certeza e da verdade da razão. O homem e a mulher representam a primeira de todas as contradições. Cada um deles é uma consciência que, antes de mais, se revela para-si. Hegel coloca o amor a partir da essência que se intuir a si mesma como uma outra essência independente face à que defronta. Os vocábulos que usa para definir o amor são assim a consciência de si que é essência singular e a outra consciência. A “Fenomenologia do Espírito” fala do desejo e do gozo em termos impessoais. Mais se diria que o gozo do prazer punha à prova as duas independências e lançava-as no mundo das individualidades. Depois seguem-se as justificações fenomenológicas que, de modo algum, são escritas para uma mulher da sua época poder ler, muito menos a dona da hospedaria, Christiane. 

   Hegel passou do estado de indivíduo para a “consciência de si”. Depois por uma “operação de desejo, que não procede da abolição de essência objetiva mas da forma de ser-outro, ou da sua independência que é uma aparência privada de essência, atribui ao “ser - outro" o valor do "ser em si" da mesma essência que a essência de si. O regozijo suprime mutuamente a independência e indiferença do valor de ser em si.

Um ser representado tem uma realidade efetiva separada e esse elemento é o que mantém os indivíduos separados isto é para Hegel a consciência da independência.

Ao mesmo tempo que a sua mente estava profundamente perturbada por tantos acontecimentos, é espantoso como descreve toda a sua forma evolucionista da Ideia. Essa mesma perturbação cria um estado de espírito que o faz ver o poder da sua escrita e a intuição a que já referimos agora está a favor da obra e não da mulher.  É sumamente curioso recordar as próprias palavras de Hegel escritas ainda no prefácio mas depois repetidas com muito mais calor e no que toca à atualização da consciência de si racional pela sua própria atividade.

Depois insiste na vida de um povo, considerada como não consciente de si, pois a realidade efetiva lhe escapa embora seja obra coletiva. Nota-se que já tem aqui os dados para outras obras que se seguirão a esta. Mostra que busca afastar-se o mais que pode de problemas que o toquem. A singularidade da consciência está no seio da universalidade. A família surge como um passo necessário para um degrau superior e próximo passo a dar dessa consciência é elevar-se à ética  “a condição feliz” no indivíduo é a verdadeira vida. A elevação para a ética deve seguir-se ao movimento da moral. Um resultado eleva para outro grau que é ético. Para que a consciência de si atinja a “virtude” tem de ultrapassar a “lei do seu coração” Só assim pelo sacrifício, o bem se pode realizar. Para o seu grande comentador Hippolyte trata-se de mais um movimento do devir. (pp.295-298).

 

Esta dialética acontece entre o prazer e a necessidade e passa pelo amor visto que o primeiro fim. É assim que tudo é ultrapassado por uma consciência que é vida nova, depois de se efetivar noutra realidade e assim consiste em tornar-se consciente de si como essência singular, na outra consciência de si ou consiste a reduzir esse outro a si mesmo e por fim, a consciência de si tem a certeza de que em si essa outra já é ela mesma:” Este modo de explicar amor é assim também que o interpreta Jean Hippolyte.

Já no prefácio estas ideias estão conglomeradas de modo que uma segunda leitura para a qual nos remete muita vez a própria obra nos levanta questões muito curiosas quando ao estado do filósofo em relação à sua vida enquanto se albergava na hospedaria de Iena a braços com uma relação afetiva da qual parece querer desembaraçar-se e libertar-se. Isso vai levar a verificar que há uma dialética entre o prazer e a necessidade da mesma forma havia uma dialética entre a moral e a ética pois esta se transforma num plano mais elevado. Se quisermos ver somente uma escrita sem carne e osso, a forma como agora coloca o amor denuncia a sua vida pessoal o que aliás fará Žižek[11] acabar por dizer com a sua costumada ironia que o espírito não passa de um osso.  

O absoluto não deve ser conceitualizado, mas somente sentido e intuído, não é o seu conceito, mas seu sentimento e intuição que devem falar em seu nome e ter expressão. (...) O belo, o sagrado, a religião, o amor é a isca requerida para despertar o prazer de mordiscar. Não é o conceito, mas o êxtase, não é a necessidade fria e metódica do objeto que deve constituir a força que sustém e transmite a riqueza da substância, mas sim o entusiasmo abrasador”[12] .

Eis palavras reveladoras de um ser humano que ama e que aqui coloca em segundo lugar a racionalidade. As frases manifestam um sentir apaixonado pela vida. A figura de Christiane está presente, mesmo sem ela o saber, mas é assim que esta obra tem cambiantes complexos entre a exposição da fenomenologia, que não é a coisa em si, mas uma manifestação do absoluto e este está no devir de si mesmo como resultado e processo de si mesmo.

Esta é também mais uma pista que seguimos e não será somente a linha desse pensamento que usualmente se revela do idealismo absoluto o que nos interessa, mas reconhecer a inspiração intuitiva, uma evidência que o autor atingiu e depois vai desdobrar no seu próprio sistema. Não é de admirar que o prefácio represente, por si só, uma intuição do desdobramento de uma obra que, na mente de Hegel, já se delineava. Por vezes, há frases que nos vêm à lembrança e  que no prefácio já estavam sugeridas.  Encontramos páginas em que o entusiasmo ardente, o gozo, o tal “pensamento mesclado e misturado” que Russel descobrira e que o próprio Hegel manifesta e mais escreve o homem do que o filósofo. Depois segue-se uma explanação que demonstra o desenrolar do processo do sistema que Hegel segue passo a passo.

       Ao referirmos as contradições inerentes e existentes na sua personalidade, também as verificamos nos seus escritos, mas tal não lhe retira o caráter do idealismo absoluto, pois as suas contradições são engenhosamente a própria construção filosófica. O mesmo irá conseguir com toda a prudência e bom senso, ao estruturar, se bem que já tarde, a sua vida. Com toda a racionalidade e a construção da dialética, o que fez foi o que evolução tal qual a queria pensar e por isso tinha de passar adiante.

A consciência tem graus e da sua ontologia passa para a essência. A atividade, com todas as suas ambições e inclinações humanas, supõe uma força, ou seja, a “astúcia da razão” tem de ser esse ser necessário através do qual através do qual o real é gerador. Aí está o conceito sob os seus três aspetos que abarca todos os degraus da atividade do espírito.

Há que levantar a questão da existência de uma necessidade que estará por trás dos fenómenos. Etimologicamente a fenomenologia é o que “aparece à consciência” mas Hegel não vê deste modo pois afirma que o conceito é  a individualidade  que eleva à universalidade e comenta J. Hippolyte que o papel da fenomenologia é conduzir a consciência de si singular ao espírito e este será a substancia real que se vê como uma antevisão de   que todas as  figuras da consciência de si se manifestação.  

 

 

Fig. 43  - Uno tem em si a totalidade do todos os outros.

 

É daí que o risco do vazio, da máscara, ou da morte se oculte no próprio sujeito se não tiver face a face e como oposto uma outra consciência e um outro sujeito que nega a morte e esse vazio. Neste ponto a ocultação de uma outra consciência de si que seja a da mulher só prejudica o sistema pois é na dialética primordial que a presença feminina dá vida ao que seria o nada, o vazio e a morte até do sistema.

O Outro, como outra de consciência de si livre, leva forçosamente à interrogação do motor da dialética com a sua contradição sempre presente se, em algum momento do devir há uma qualquer igualdade entre qualquer consciência e uma outra. Se tal acontecesse o gelo da racionalidade derretia-se ao sol da mesma razão. Pela dialética primordial entenda-se que o conflito entre o senhor e o servo é a luta que nunca pode ter finalidade pois não subsiste sem desigualdade, sem uma dominação e isso consiste em reduzir essa Outra consciência a si mesma. O espelho é o que de melhor simboliza a falsidade do senhor ou do servo, seja homem ou mulher. É por causa da existência e verdade do outro que resulta o devir sem que o conflito acabe. O resultado da luta acaba na inserção da cultura em que a alienação é patente.
    O mundo da cultura não tem verdade, as essências nem se efetivam nem o bem nem o mal pois afinal cada um é o inverso de si. O portão que Hegel abre levaria a uma análise muito curiosa quando se retira ao texto o sentido histórico e se passa para uma neutralidade analítica do social sem mais qualquer juízo de valor.  Em cada época a cultura reprime a consciência feminina e, se bem que crie a dependência do senhor, é ela que dá consistência à luta. O amor à vida é inerente à verdadeira consciência de si que está própria negação da negação que acontece na consciência reprimida que seria a consciência feminina entretecida em toda a cultura.

A luta é uma contradição constante do devir e não se pode ver somente uma etapa pois é um elemento que se inscreve na na união dos opostos em que não se pode referir sem contar com a perícia da linguagem hegeliana pois tal termo é também é ultrapassagem, supressão de que é uma operação constante na cultura. Deste modo o risco e a ironia do filosofar é acabar por dizer que “A filosofia fala alemão” mas num sentido que, de modo algum, tem significado heideggeriano mas ironizar um dos óbices ou obstáculos que se levantam ao leitor que se quer apropriar de uma linguagem que sempre terá de ser universalizante mesmo que com raiz grega e lá plantada. A dialética não é troca sem ser conflito e sem ser luta. Pode ser uma luta subtil, direta ou até trágica pelo dilacerar das consciências, mas nunca se dirá com verdade que é uma luta de morte.

Quanto um dos beligerantes recusar a luta, o outro não o pode matar. Por isso, por trás do escravo está a consciência da mulher e, levada pelo desespero, a mulher preferia a morte, como tantos escrevo preferem então isso seria o vazio, a incompletude do sistema  e a morte na pura negatividade a que Hegel a conduziu. Como num outro sentido que se prende já um pouco com este, Hegel condenou Antígona à morte e à cena final vazia. Mas antes já Hegel metamorfoseara a filha de Édipo numa consciência com a lei do coração que teria de desaparecer e pouco de feminino ainda teria quando se apaga do mundo dos vivos.

 Qualquer negatividade nunca será um puro receio, uma negatividade em si interna mas no exterior. Neste caso o despertar de uma liberdade no interior da servidão revela coragem, positividade que já cansa e quer a negatividade que é o conteúdo da consciência natural.  É este o resultado e a singularidade no movimento do ser, mais do que “teimosia” como insinua apenas Hegel, e ainda mais liberdade que se estende para lá da singularidade e pode ser formação universal, conceito absoluto e uma “habilidade particular” e esta dialética em que se manifesta e ao mesmo tempo é muito important5e que se note que continua oculta e soterrada na determinação do ser. Aqui, afirma J. Hippolyte, há um jogo de palavras de Hegel cujo sentido ainda mais se obscurece na nossa opinião pois se trata de uma consciência que sendo servil, assim o entende ser, por que outra necessidade que a consciência, neste caso, a consciência masculina não entende a insistência que brilha por ser sinal de liberdade.

Quando quer exemplificar o amor feminino, como uma espécie de abandono vai procurar uma explicação que designa por “astúcia no servir”. A astúcia da razão que está para além da atividade e se oculta para dirigir a ação dos povos, as suas inclinações ou ambições a que ninguém escapa, para a mulher é astúcia de servir. O servo é o paralelismo que logo que provenha da mulher. Mas esta astúcia do servir não tem semelhança com a astúcia da razão. A astúcia da mulher não é a racionalidade do real na sua forma pura ou vazia, nem sequer no sentido de Kant, mas a descoberta de que a mulher no servir é superior ao homem. Só as belas almas servem, só a mulher tem astúcia porque não tem dois senhores e o servir domina na cultura, na religião, na formação da ética. A astúcia do servir é dos senhores que se aparentam com a independência da consciência e que têm ao seu lado o direito que eles sabem que irá surgir. A astúcia da mulher não acaba nem nunca finda a lei do coração pois se torna independente pela necessidade contraditória primordial. Ainda se pode encontrar nesta necessidade primordial a astúcia do afeto feminino que na vida de Hegel foi fatal em Iena.

 

 

 

 

Fig. 44 - A sombra de alguém que Hegel quer esquecer mas está presente na figura do filho

 

De novo a astúcia remete para um outro lado da fenomenologia, a necessidade para a qual Hegel aceitou mas não encontrou qualquer justificação senão na evolução ou devir do Progresso da Ideia. Encontramos muita vez em forma de justiçarão a intuição. Se bem que esta tenha um parentesco forte com a evidência, há a notar que tem outro lado sombrio que vem do senso comum. 

Qualquer intuição só se manifesta tal qual uma evidência que não se refute se aceita sem pestanejar. Hegel não fala da evidência mas de qualquer modo é comparando-a com ela que se fundamenta a intuição. Em defesa de causa alheia, a intuição diante seculos foi um dom que a natureza concedeu à mulher e muito menos a distribuiu com tamanha abundância entre os homens. Por certo tal forma de evidência não seria a que procurava Hegel mas com ela arrisca-se a confundir. Habitualmente, só se vê nessa tese  um resultado se bem que indique algo mais para o futuro. O que realmente acontece é que há um limite em que não se fala mais da luta e esse limite fica preso à linguagem e não à realidade.

 Parece que Žižek entendeu, mas temos de ir um pouco mais longe e separar o real e a realidade A linguagem é o real mas não é a realidade, pois há todo o interdito, o proibido, até ao tabu da feminilidade que é a mais simbólica de todas as formas da vida, para depois Hegel encaminha para o todo da escrita. Daí todos os apelos que faz e as observações diligentes dos seus discípulos e até simples professores ou comentadores de que sem usar a linguagem de Hegel não se o pode entender. Hegel é o sistema na sua representação de o todo não e mais que o “um”.

Lacan encaminha um seu seguidor, apesar de rebelde, a entender que “o real é o impossível” e, se colocar-nos a celebre frase de Hegel “Todo o real é racional e todo o racional é real” alguém positivamente deve estar louco e não é para ai que me quero encaminhar se bem que não faltem causas para isso. Vladimir Safatle no seu curso sobre a fenomenologia está atento ao facto de Hegel querer colocar todo o seu sistma em termos linguísticos e notou que a fenomenologia tem esse mesmo intento. O impossível de Kierkegaard vem para este jogo bem sério da linguagem sem necessidade de recorrer a estudos científicos bem mais recentes. 

Se o real é um mito fantástico, então tenho o paradoxo da anedota contada por Freud:

Este é o lugar onde Wellington pronunciou as suas famosas palavras?

 

Assim se diverte o irrequieto e escarninho Žižek, que por ironia se designa a estrela do rock da filosofia, mas que tem sonoridades e harmonias que chegam às nuvens onde Pitágoras insistia que havia a música celeste.

 

 

Fig. 45 - A Filosofia num Académico polémico que se diverte com um Humor novo e rebelde acerca de todos os Filósofos.

 

 

 

Pela máxima sensatez se atinge uma boa dose de loucura que só nos esclarece melhor. E por isso se lembra aqui o famoso dito que se desenlaça simples e sem custo tal qual uma fita de pacote de oferta: 

- Sim, é esse o local, as palavras nunca as pronunciou.”

 

Se a loucura não está presente, ao menos se encontra um belo paradoxo.

A negação da negação não altera nada, mas o paradoxo da negatividade está na positividade que se ergue ainda para outra consciência que guarda a sua essência O necessário tem de partir do que não o é embora seja a sua aparência que o homem veja na sua exterioridade. Ora a cada atividade da consciência há uma nova essência que não tem senão sentido porque no outro extremo há outra consciência singular que se afirma  no universal. A dialética tem por inerência do seu significado uma inversão em que a negatividade não tem o sentido comum pois a positividade consiste na descoberta do que o devir nos manifesta e assim é porque teria de ser de modo que tal qual o local e as palavras são figuras de Napoleão e Wellington isso tanto faz. Por isso a verdade estava já ali. A dialética é uma noção que obriga a negar o devir e a aceitá-lo pois se diz do que se já realizou o que ainda não chegou a sua síntese mas qualquer separação é já por seu lado o que se procura, no paradoxo do que já se encontrou. 

Pode dizer-se que há dois extremos e um deles é a faceta passiva, ou seja a mulher, no dizer de Hegel que não escolhemos. Mas a sua escolha é a vitalidade de todo o sistema e isso não acontece por medo ou receio da morte, nem do vazio mas sim por amor à vida pois sabe que é ela que a realiza. A morte neste momento não é mais do que o a aniquilação de um ser singular que pela sua própria negatividade tem já em si o conceito mediatizado que liga o meio termo, essa mediação entre o universal e o individual. As duas figuras irreconciliáveis são o conceito na sua teleologia, não só subjetivo como objetivo   que tudo é conceito para a realização da ideia que está no início tão racional como estará no fim. . Temos de ter presente que sem o conceito seria o nada em que o discurso hegeliano se despenharia. O horror ao vazio de Hegel é colmatado pelo devir ou abria-se um abismo entre as figuras e a consciências sem mais Verbo nem mais sistema do absoluto. Seria o Nada, sem partida para o fim pois não podia falar-se de evolução da Ideia. Retiramos o fio da historicidade que é uma ingenuidade pois Žižek insiste no facto de que o conhecimento modifica o seu objeto e a realidade da história não é o real simbólico. A ilusão existe no presente que não é  realidade e num passado que se modifica e o que nos mostra um problema insolúvel da transferência A astúcia da síntese está contra a astúcia da razão. A necessidade aparece depois da lei do coração mas reverte a favor deste e, se não acontece assim nem por isso a fundamentação da necessidade é mais sólida pois sempre apela para ela quando não fala da intuição.
   
 A consciência que luta contra a consciência infeliz é o lado pessimista figurado como dilacerado da noção quer do sentir e do pensar do homem. Assim o reconhecimento é que torna a realidade do homem efetivo. Indubitavelmente numa relação amorosa nunca se poderá ver o amor maternal o mais real sem uma supressão da realidade, mesmo que se queria falar do universal.

 

 

 

 

 

 

Fig. 46 - A dialética primordial é entre o homem e a mulher e será até à uno ser o resultado de todos os possíveis.

 

 

Antes se falar amorosa, de dependência e de domínio psicológico ou simbólico entre homem e mulher ou menos ainda como algo que surge sem suporte de uma família. No entanto, Hegel caracteriza o amor da mulher como o mais belo amor existente entre todas as formas humanas. Na sua forma feminina o amor pode assumir, para apresentar o abandono como a expressão mais alta do caráter feminino.

Ressalte-se que o filósofo coloca o amor materno para além do humano por apresentar uma participação do divino. Assim esta definição do amor para Hegel é defendida por Rafael Haddock-Lobo[13] que aceita sem pestanejar na sua tese acerca da Estética hegeliana e o contexto do romantismo da época. Ora há um problema muito obscuro no que respeita ao amor e a todas as definições hegelianas. Se há a exaltação da mulher, em conformidade com a época, toda a forma como Hegel observa a mulher é sempre para exaltar a maternidade muito mais do que a essência feminina. Provavelmente a figura que a mente do filósofo mais evoca e menos o perturba será o afeto que a sua mãe lhe dedicou e da privação que tão dolorosamente o feriu ao entrar na adolescência.

Hegel comete um lapso e uma contradição lógica e metafisica por não se referir ao amor paterno e ao mesmo tempo elevar tanto o amor maternal na mulher. Este aspeto de que fala tem com toda a certeza, muito mais do que religião, do que degrau no seus sistema e é uma ferida oculta na sua própria vida que não quer revelar. O abandono do seu filho e, muitos anos mais tarde, a exaltação da figura materna é um grave hiato da sua lógica e um problema vital da sua existência. A negação do filho, o desprezo a que foi votado, e ainda bem possivelmente o abandono de uma mulher que o amava é uma das armadilhas pessoais em que o raciocínio do filósofo pode nem ter notado. Se, por outro lado, esta obra foi um trabalho, numa perspetiva de libertação, parece pouco provável que a consciência de Hegel considerasse este ponto crucial que é a presença primordial da família.  

     Repare-se que a paixão amorosa de Hegel resultou numa mulher desprezada e num filho repudiado. A repugnância em aceitar esse filho foi tão forte que até não o tratava pelo nome que tinha do seu batismo, Ludwig mas pelo nome afrancesado de Luís. Ao citar o Fausto de Goethe, Hegel escreve sentindo a verdade das palavras do poeta e deixando-se arrastar pela Vida na sua expressão maior. Entre diversas versões deste caso, esta que estudamos parece ser a mais lógica e com mais peso.

Na altura em que saiu de Iena, se tivesse verdadeiro afeto por essa mulher, Christiane, teria colocado mais seriamente a hipótese de se casar com ela, mas depois não se referiu mais vez alguma a tal possibilidade que colocara vagamente num distante futuro. Enquanto a senhora ficava em Iena com a criança, Hegel desaparecia oportunamente da cidade. A hipótese de um casamento entre Christiane e  Hegel , após a morte do marido desta, nada impedia naquela vida de remetesse para a realidade e que não estava na sua obra nem  entrava nos plano de Hegel. A  sua decisão de partir para outra cidade é a prova da vontade de encetar uma nova etapa da sua vida.  Há como que um pôr em prática com toda a fria racionalidade o que escreve

A mulher que Hegel afasta fica na sombra e quase nada mais se sabe dela. O certo é que, a certa altura da infância da criança, não teve forças de continuar a sustentá-la e o pobre menino foi para um orfanato. Se pediu ajuda a Hegel nada se sabe e, só após a morte desta mulher abandonada, em 1814, é que Hegel mostra interesses em cuidar da vida da criança. Será a primeira decisão importante quanto a este filho que desprezara. Mas novamente o egoísmo do filósofo é patente. Já se casara e vai impor à sua esposa, em sua casa um menino que já tem dois irmãos. As consequências de uma tal decisão ficam novamente entregues a mulheres que, sem pejo, se podem chamar suas vítimas. Mas mais uma vítima inocente surge deste caso tão revelador como dramático. Quem é capaz de esquecer o sofrimento da criança que pouco tempo esteve com a mãe passou para um orfanato e só depois foi aceite em casa de seu pai?

 A dor da criança por ser abandonada deve juntar à surpresa e sofrimento da jovem esposa que se vê traída e com mais um filho do marido que este traz para a sua casa? Também os outros irmãos sentirão na pele um certo despeito e descontentamento face àquele intruso que seu pai de repente lhes parenteava e exigia que vivessem todos na mesma casa.  No centro de tudo, Hegel é o anti-herói, o grande filósofo que talvez sofra remorsos, mas que causa mais dor do que a que poderá sentir. Afinal tudo aconteceu por sua vontade e o seu casamento com a jovem burguesinha foi uma decisão muito calculista e bem planeada para culminar as suas ambições.

  Como se pode ver, as mulheres têm vários papéis na vida de Hegel, mas o seu comportamento esta longe de ser o de um homem de bem, mesmo que abandonasse o pietismo e qualquer religião. As suas aulas de estética e ética teriam de soar a falso no seu coração ou então ainda é mais complexo o seu caráter e nada disso o vai perturbar. Na verdade, a sua obra terá depois razões bem admissíveis e lógicas para justificar todas as inclinações e ações ambiciosas de qualquer homem.

A responsabilidade moral ou o sentido da dignidade ou do dever não pesam muito nas decisões que toma. Facilmente se verifica que a ambição leva a melhor sobre os sentimentos. Todavia, este filho, mesmo que o coloque na sombra, atormentá-lo-á até à morte. A escrita hegeliana dos inícios do século XIX move-se num contexto em que a figura feminina se esconde mas dominava as suas emoções pessoais. A serenidade com que escreve quebra-se por vezes pois a paixão oculta e reprimida existe nele em forma de remorso, de ambição, má consciência ou egoísmo. Quando escreveu o famoso texto da dialética entre o senhor e o servo, a sua mente tentava esquecer os problemas que deixara para trás, na cidade em ruínas.

 

   A sua memória que tanto sabe e se mostrava capaz de recordar, não permite que um caso tão dramático e pessoal ficasse assim esquecido.    Mas Hegel já passado muito tempo e com o coração possivelmente mais sereno, volta-se para Maria, a mulher que aprendeu a resignação e o desapego com a renúncia a si mesma. Este seria o paradigma do amor de mãe. O desejante é um sedutor ou um dominador que logicamente não se contenta com uma presa só. Mesmo que a consciência sofra não deixará de procura e realizar novos desejos. Há algo de mortal no desejo não realizado. A aniquilação ou a dominação é a forma do desejante atuar sobre o desejado. A literatura da época de Hegel já estava cheia de exemplos. Hegel desde criança que possuía a obra completa de Shakespeare e recordava-se certamente dos remorsos  de  Lady Macbeth,  a angústia da mãe de Hamlet, a inveja e o ódio das duas duquesas Goneril e Regan contra a irmã, Cordélia e o próprio pai, o rei Lear e a sua  desmesura por não realizar os seus intentos ambiciosos capazes de levar as mulheres  e até de Medeia, na tragédia grega leva  ao  assassinato dos próprios filhos, por um desejo de morte e aniquilação no cerne do seu pathos.

Ao falar do nascimento de Jesus, no fundo, Maria é exaltação da maternidade e nunca da sociedade com as suas famílias e a sua moral. Tal como em Abraão, que aliás foi um tema da juventude de Hegel, Kierkegaard, na sua obra “Tremor e Temor”  coloca-o como alguém que por amor se afasta da moral do geral, numa relação direta com Deus.    E assim escreve muito mais tarde em “ A Estética”;

(…) no caso de Maria, o amor materno não está reduzido a esses limites puramente naturais. Na criança que trouxe ao mundo no seu ventre, que gerou nas suas dores, encontra-se a si mesma, nela e por ela, uma consciência de si mesma, e essa criança, sangue do seu sangue, tão acima dela estando. Nessa altura não deixa de ser sua, objeto no qual se esquece e se reconhece.”

 

Parece que quase divinizando o amor materno, Hegel quer ocultar a sexualidade e a sua culpa por um filho que não aceita. Pela desaparição de qualquer traço de sexualidade no amor é na criação realizada na sua obra que transfere a sua grande paixão. Claro que ainda terá muito a dizer acerca da Estética, e de quadros dedicados a Nossa Senhora, sendo ainda curioso que a arte se explane tanto na pintura sem dar o mesmo relevo  a outras formas de revelação artística.  O homem em geral na moralidade da família não pode deixar de ser uma tríade unida por uma aliança. Hegel só para a sociedade civil fala de contrato, mas antes foi uma aliança entre duas pessoas. Mais tarde, descreverá como analisa a família. Na Estética só o favorece pois ainda se vivia uma época em que a sexualidade era oculta e reprimida .
    Sem referências ao papel do homem no amor ou no domínio do outro, a sua falta podia transformar-se e desaparecer para mais realçar a ligação falsamente simples do amor de Maria ao filho mas esquecendo o papel de José, o esposo e pai do Messias, ou o seu próprio, como pai negligente, que abandona o filho Ludwig.
    Há a notar que a comparação com Maria dentro do espírito cristão dá-lhe uma dimensão que serve de paradigma para a maternidade: A figura masculina encerra possibilidades que Hegel não quis ver. Além de representar o reconhecimento natural de que fala, poderia referir à tríade humana, espelho da tríade divina e ainda mostrar bem dentro do idealismo que defende a evolução do homem para a realização da Ideia, de Deus e do Absoluto. O esquecimento de Maria para centrar toda a atenção na criança que tem no colo é uma antecipação da condição humana do conhecimento absoluto do Absoluto.

Ao afastar-se de Iena, liberta-se do turbilhão em que se encontrava e fixa-se noutra cidade. Por recomendação de Vendo as crescentes complicações da sua vida em que cada vez mais se envolvia, é o amigo, Niethammer[14], quem, mais uma vez, aparece para o ajudar. O lugar que este amigo ocupava era o de inspetor-geral do Ensino na Baviera por isso pode colocá-lo na cidade de Bamberga.

As crescentes complicações da sua vida em que cada vez mais se envolvia, levam de novo  o amigo, Niethammer , quem, mais uma vez, aparece para o ajudar. O lugar que este amigo ocupava era o de inspetor-geral do Ensino na Baviera por isso pode colocá-lo na cidade de Bamberga, onde permanece por pouco tempo.

 

 

 

 

Fig. 47 - Bamberga é a cidade que serve de ponte para a nova vida que Hegel quer encetar.

 

Com uma racionalidade implacável, num contexto em que as ações individuais coletivas se mesclam, Hegel abandona Bamberga- Niethammer, esse amigo com quem podia sempre contar, consegue-lhe a direção de um Liceu em Nuremberga, onde de tornará num respeitável professor que não se mostra desagradado nem se importa de ensinar jovens adolescentes, ao nível do ensino médio.  

 Nuremberga surge como nova meta mais auspiciosa do que todas as anteriores. É uma forma de poder lecionar noutro local, graças ao amigo fiel que também foi suficientemente generosa para lhe proporcionar mais um apoio financeiro.

 

 

 

 

 

Fig. 48 - A voz de Hegel tinha aquele tom estranho da Suábia.

( Os alunos escutavam com a maior atenção as aulas muito monótonas que se assemelhavam um longo monólogo diligentemente proferido  acerca de teologia, metafísica e assombrando por vezes alguns alunos mais temeroso com afirmações da presença do “olho de Deus" que a todos via e estava sempre com eles. )

 

 

 

A ida para Nuremberga será uma decisão que se revelará bem acertada para a sua carreira e sucesso social. Será nesta cidade que a sua vida se estabiliza. No início não se adaptou bem, nem o local lhe inspirava grande simpatia, pois o considerava um meio pequeno e nas ideias conservadoras diante da sua rebeldia política teve de as esconder sob uma capa de um conveniente conformismo. Agora tomara aquele aspeto que não se sabe bem o que é mas se espera que tenha um grande professor de filosofia, distraído, reservado e pouco ligado a aspetos práticos. Hegel não era assim. Bem poupado e económico, sarcástico, quando queria mostrar discordância, severo apesar de ser capaz de gracejos, estava sempre atento aos acontecimentos e, só alguma distração ocasional o liga ao estereótipo do sábio que anda nas nuvens. 

Hegel, e Marx mais tarde, têm uma moral que além de ter uma realidade fora da individualidade não negam as inclinações pessoais multifacetadas no ser humano e assim ambos tirariam frutos da maleabilidade da consciência que coloca os meios dependentes do resultado. O homem não é obrigado a ditames sociais ou morais. Pode bem seguir as suas inclinações, tem mesmo direito até ter caprichos e não usa de modo algum o imperativo categórico por bússola orientadora.

 A sua moral é muito complexa pois coloca o ser humano, entenda-se o homem, a seguir o rumo que as suas inclinações lhes dão, como que movidos por um sentido superior que é, nada mais, nada menos, o curso que a razão lhes dá e infunde. Marx também verá que a consciência moral não passaria de um fruto das classes sociais e das estruturas económicas. Portanto, o argumento assenta perfeitamente se dissermos que, numa outra classe, teria outro sentido moral e esta deve é ser o que de melhor for para a classe.

        As aulas, à luz de velas, eram ditadas pelo mestre e copiadas pelos seus alunos que daí se tornaram manuscritos. Hegel parece que se adaptou bem à situação. Todavia o seu sonho haveria de cumprir-se e ainda haveria de ocupar uma cátedra em Berlim. Porém, só depois da morte de Fichte que se deu em 1814, as suas esperanças subjetivas poderiam aumentar da possibilidade de ir para Berlim. Mas, ainda viverá algum tempo na cidade de Heidelberg para onde quis ir dar aulas já depois de se ter casado. Parece que os conselhos do seu amigo Niethammer urdiam um efeito muito forte em Hegel pois será este que insiste com ele para que se case.

Hegel não escolhe mudar de estado apenas por sentimento face à racionalidade. Incluído no seu sistema, o casamento é uma unidade de aliança. Mas na vida real tem de ser um contrato. A primeira instituição ética é a dualidade de homem e mulher antitética do casamento que é o primeiro momento da eticidade social. Numa ultrapassagem da sua própria antítese ou contradição precisa agora de aceitar a família. Trata-se de um contrato em termos sociais e mas face à sua filosofia é apenas uma aliança e o seu casamento é um assunto muito ponderado. O matrimónio acontece por uma racionalidade que via a ética pois este “é mesmo o primeiro momento da ética concreta”, para a família burguesa, se quer pôr o seu sistema em prática. A ética será já um outro degrau mas a família é o seu primeiro principal elemento numa unidade substancial, operação para o encontro da realidade efetiva.  

O seu bom amigo colocara-o no meio de uma burguesia prestigiada. A vida de Hegel sofre assim uma notável mudança aquando da sua nova instalação. Passou a receber uma excelente remuneração como diretor, do que hoje se poderia chamar um liceu. Dava também aulas aos jovens adolescentes, ao mesmo tempo que obtinha uma residência condigna de uma família de burguesia rica Bastava agora abrir as portas certas, uma conformidade social com um casamento vantajoso e vogar na tranquilidade das suas aulas e da escrita das suas obras.

  Esta sua resolução de casar-se partiu também dos conselhos do seu amigo de sempre, Niethammer, que insiste para que tome essa decisão. É provável que o amigo visse que estava na hora de aceder a uma respeitabilidade e integração social. Nem todos os filósofos famosos tiveram este bom senso e sentido de comprometimento social que Hegel teve. Apesar do grande sucesso que o seu Liceu estava a ganhar, o esforço que Hegel fez para chegar até às classes mais prestigiadas e ricas da cidade, não lhe parecia muito visível. Mas, ao conseguir criar, quase nos finais do ano de 1809, um clube privado, com um nome um pouco estranho “O Museu” deu mais um passo nos meios da cidade. Apesar do nome, o clube nada tinha de bolorento ou velho. Claro que era só de homens, quase inutilmente, acrescenta o seu biógrafo Pinkard.

 Por sorte, um dos membros fundadores era o Senador Von Tucher, um patrício com um forte prestígio em Nuremberga e que demonstra simpatia por Hegel. Isso valeu para se tornar mais conhecido e entrar em contato com a vida social da cidade.

 

 

 

Fig. 49 -  Na cidade de Nuremberga, Hegel encontrou a tranquilidade e a segurança que tanto ansiava

 

Niethammer e também a esposa, já tinham sugerido que para uma verdadeira estabilidade de Hegel faltava uma esposa. Mas aquela que lhe sugeriram não foi de modo algum aceite. Pode ver-se que não era sem todos os cuidados que o filósofo se preparava para dar um passo decisivo, para ele um pouco perigoso e também uma jogada de extremo cuidado. A experiencia de desastrosas paixões já ele as conhecia, bastando a recordação do pobre amigo Hölderlin que se fechou para o resto da vida numa torre, e de tantos outros casos. Por todo o seu passado, Hegel pesava bem na escolha que queria ser com o maior discernimento.

 

 

 

 

Fig. 50 - A aliança que se torna contrato e se dissolve com os filhos crescidos.

Ou os sonhos de Hegel na evocação de imagens perdidas.

 

A procura de uma esposa adequada demonstra que a razão domina as suas ações. Tratava-se de escolher uma jovem que servisse as ambições do filósofo e para que o auspicioso enlace se realizasse. A mudança do professor de filosofia, tão severo e reservado, que já da juventude os amigos chamavam “o velho” tem forçosamente de se transformar num Georg Hegel num galanteador e sedutor. Modifica-se tanto para o papel de futuro noivo que até se torna poeta! Escreve poesias de tons românticos, sentimentalista, influenciado por uns versos que escrevera a unas anos antes. 

Pelo que refere o biógrafo, Terry Pinkard[15], na sua juventude, Hegel, por grande amizade pelo poeta Holderlin, que o influenciou imensamente. redigira escritos em que tentava ser também tornar-se um “romântico”. Um dos poemas intitulado “Elêusis” em uma referência aos mistérios da antiga Grécia queria ser um tributo à sua amizade e aos seus ideais comuns. A influência que manifesta do espinosismo também era partilhada por Holderlin na sua juventude. Numa atitude rousseauniana acerca da natureza, os obstáculos que Hegel encontrara mostravam já que não seguiria tal rumo. Depois até se tornou um crítico do movimento romântico. Depois de se decidir, o casamento revela-se indispensável para realizar aquela ação reciproca que o faria subir um degrau social pois tal como exigia o seu sistema, por entre as possibilidades e contingências, tratava-se de uma ação necessária de “ser necessário” indissolúvel.

 Hegel lera atentamente “O Emílio” só não sabemos se leu “A educação de Sofia” mas o seu pensamento não devia estar longe desse modelo feminina. Em nossa opinião, não precisaria de muitas leituras para criar essa sua mentalidade bem conservadora e reacionária acerca das mulheres. A conduta de Goethe ou as suas obras ofereciam um reflexo bem forte de uma superioridade do homem sobre as mulheres. O livro “Os sofrimentos do jovem Werther” contém evidentes traços de impregnação de uma perfeita sedutora, bem dócil e comparável ao carácter da submissa doméstica e domesticada da Sofia de Rousseau. Porém, devia ser esse o modelo a que Hegel aspirava e encontra na jovem  burguesinha Helena. Agora tratava-se de vestir um papel que não era já muito fácil e podia muito bem conduzi-lo ao ridículo.

A mudança do professor de filosofia, tão severo e reservado, que já da juventude os amigos alcunharam de “o velho” tem forçosamente de o transformar num Hegel galanteador e sedutor. Pelos retratos que temos dessa época, o esforço para se mostrar amável ou cativante não seriam muito fáceis. Transformar aquele olhar gelado em fogo e adaptar as frases galantes à boca severa de um mestre, retirar qualquer traço de ironia ou sarcasmo da face já pesada onde sobressaia um nariz taciturno, eram tarefas a que diligentemente se consagrou. Por certo a fascinação que exercera sobre a mulher que abandonara não era agora tão fácil de repetir. Mas, mesmo assim, modifica-se tanto para desempenhar o papel de futuro noivo que até se torna outra vez poeta!

Escreve poesias de tons românticos, sentimentalista, influenciado por uns versos que escrevera a unas anos antes.  Pelo que refere o seu biógrafo, Terry Pinkard  na sua juventude, Hegel por grande amizade pelo poeta Holderlin, que o influenciou imensamente redigira escritos em que tentava ser também tornar-se um “romântico”. Um dos poemas intitulado “Elêusis” em uma referência aos mistérios da antiga Grécia queria ser um tributo à sua amizade e aos seus ideais comuns.

 

 

 

 

Fig. 51-  Hegel vai reler Rousseau para a sua ética e o seu estado

 

 

A sua atitude rousseauniana acerca da natureza e o romantismo da época mostravam já que não seguiria tal rumo. Depois até se tornou um crítico do movimento romântico. Porém, durante a fase de pretendente à mão da donzela e depois de se tornar seu noivo, ocupou-se de uma tarefa de manifestações românticas em que manifestou bons recursos pela simpatia que conquistou parece que com relativa facilidade.

 

 

 

 

Fig. 52 -  Um romântico à força. Da cinza da lei do coração sairá o fogo da fénix… a consciência fora de si encontra em Outra consciência bela também fora de si, (agora preciso de rima)

( Quadro de Carl  Sptzweg. )

 

 

Este romantismo, que rompia com a profundidade dos seus textos filosóficos, transformava-se num bom subterfúgio do seu discernimento para cativar a jovem Helena. Os poemas, dedicados à futura noiva devem ter causado algum efeito positivo, pois foram aceites e pouco mais tarde, o seu ilustre pai anuía às visitas a sua casa para ver a filha. O preconceito acerca das mulheres mais velhas que os seus apaixonados mostrava-se muito forte e, ironicamente a grande diferença de idades entre uma jovem de 19 anos e um filósofo muito mais velho que podia ser seu pai, não parece admirar ninguém

A jovem eleita tinha todos os requisitos que Hegel pesquisava nessa cidade. Além de ser bonita e graciosa, devia ter uma educação cuidada sendo, como era o caso, filha de um senador, uma figura com uma genealogia de patrícios alemães notáveis. Se bem que a esposa não lhe trouxesse um rico dote, o nome da família Tucher incluía uma série de antepassados de grande prestígio o que o colocava a salvo de qualquer reparo para a sua conduta anterior.

Tratava-se de usar o bom senso, de mostrar uma faceta adequada à situação que, dado o ambiente da época, era romântica. A jovem burguesinha diante de um desconhecido, que se tornara tão notável na sua cidade devia tornar-se curiosa e depois lisonjeada, por ver que os seus encantos quebravam a vontade do celibatário rendido que lhe dedicava longas poesias que certamente a impressionavam.

 

 

 

 

Fig. 53 - A filosofia que se tenta transformar em poesia deve ser um tormento para o filósofo que estava a braços com a sua dialética entre  a necessidade e a liberdade da sua consciência de si e fora de si com os seus versos desconfiadamente aceites.

 

 

 

Sim, porque o filósofo se tornava à força, num poeta que tentava atrair a bela Helena ainda adolescente.

Há autores que encontraram em Hegel preconceitos caricatos a respeito das mulheres. Os exemplos são mesmo chocantes quando, diante de um grupo comparou os representantes do sexo masculino a animais e as representantes do sexo feminino a plantas, acrescentando que as mulheres podiam ser cultas, espertas, argutas, porém não tinham acesso às formas superiores do ideal, do espírito. Face às mulheres que estão à frente de um governo a sua reação é de temor e desprezo pois "Quando as mulheres se acham à frente do governo" —"o Estado está em perigo". Não se deixou ficar apenas assim- Ao referir-se às mulheres afirmou que ainda que "Elas não agem de acordo com as exigências do universal, mas segundo as inclinações casuais e meras opiniões"[16]

Por certo que a futura esposa ignoraria sempre estas facetas do marido. Marie Helena Susana van Tucher (1791-1855) vai passar, com apenas 20 anos, do lar paterna para a casa do marido. Hegel já ultrapassara os 40 e a sua experiência de vida tinha sido ate então bastante tumultuosa, mas os tempos de grandes turbilhões de mudanças já tinham acabado para ele. O passado apagava-se e não levantava entraves sociais. Nas aulas, os alunos mostravam-se atentos e pareciam gostar dele. Hegel não manifestou qualquer menosprezo ou desinteresse por causa dos discípulos serem apenas adolescentes. Mas era óbvio que um casamento lhe daria uma outra forma de vida.

Em lugar da paixão aparece um amor sereno para uma conjugalidade como a necessidade de passar para a ética. Tal como acontecia nas famílias burguesas, a sua liberdade foi-lhe concedida apenas enquanto se manteve solteira e recebia os galanteios do respeitável professor e diretor do liceu. Por certo que o facto de ser cortejada por tão respeitável figura lisonjearia a sua garridice. Qualquer jovem se mostraria sob uma certa coquetterie que entre um sim e um não podia dominar como se fosse um jogo o presumível enamorado Hegel. Esse jogo de salão, muito estudado, mais tarde por Simmel e antes por Kierkegaard, mostrava que antes de qualquer cedência, a mulher tem todo o poder e a liberdade sobre o homem que aceita o jogo. Este só acaba se a mulher assim o quiser ou se um dos jogadores se desinteressa de jogar. No caso de Helena teve alguma turbulência. Essa jovem, por entre a indecisão e a recusa, mostrava um domínio e liberdade que nunca mais obteria.  Também Hegel se teve de mostrar galanteador com a jovem.

Apesar de todos os esforços de Hegel, houve alguma hesitação e desconfiança da jovem Helena, já noiva que iam deitando por terra todos seus projetos.

 

 

 

Fig. 54 - Por momentos, Helena teve a perceção luminosa o significado que era para Hegel aquele casamento

 

Pelo que se sabe, Helena encontrou numa carta de Hegel, uma forte dúvida nas palavras afetuosas do futuro marido. Hegel mostrava que ela teria um lugar que de modo algum teria o mais importante lugar na sua vida. Isso levantou alguns ciúmes e desconfianças. Sem querer, Hegel retirara a máscara e a futura esposa vira o homem e não o jovem apaixonado que idealizara, através dos poemas e das gentiliza de modos e de palavras.

Hegel recorreu novamente aos poemas. A imagem da Fenix renascida das chamas não foi suficiente para expressar aquela paixão que a sentimental jovem desejava. Depois, ainda seguindo Pinkard, as dúvidas do futuro marido em considerar que ele não seria inteiramente feliz causaram um sismo nos seus sentimentos juvenis. O matrimónio estritamente racional na moral que elevava à eticidade civil causou dúvidas a Helena, que suspeitou dos reais sentimentos que Hegel tinha para com ela. No fundo, descobriu que ele não a considerava capaz de lhe dar uma felicidade completa. As dúvidas devem ter-se desvanecido por habilidade e retórica do mediocremente apaixonado filósofo. 

Esquecia por completo a idade e o temperamento daquele desconhecido, que ora lhe implorava, tal como devia ser, o seu afeto, ora mostrava que não estava assim tão ligado a ela. A imagem poética do rouxinol que chora toda a noite e umas palavras escritas à irmã por Hegel iam pondo tudo a perder e o noivado esteve por um fio. Naquela altura crucial tratava-se do filósofo se mostrar um bom sofista e usar a filosofia em causa própria. Ora assim conseguiu tranquilizar a noiva e o casamento realizou-se.

Mais tarde, a irmã de Hegel, que não conseguira manter o seu emprego como governanta numa casa da nobreza passou algum tempo em casa da nova família Mas as duas mulheres não se dariam nada bem e a estadia foi logo dificultada por ciúmes que já antes do casamento a esposa mostrara. A pobre e deprimida Cristina nunca mais regressou a casa de seu irmão. Depois de algumas tentativas de conciliação de personalidades, o afastamento de Cristina Louise foi definitivo. Apesar disso os dois irmãos continuaram unidos. Esta incapacidade de convivência deve-se por certo a duas culturas e a inferioridade de conhecimentos que diminuía a esposa. Por certo que Helena se sentia posta de lado nas conversas que os dois irmãos tinham, as suas recordações comuns e comentários políticos ou sociais da atualidade, em que não podia dar qualquer opinião.

Antes de casar, já Helena tivera algum contratempo pois através das cartas entre os dois irmãos, se percebera que não iria ter aquele lugar no coração do marido que imaginava. A suspeita da forte amizade entre os irmãos desagradara-lhe muito e passou a ver com desagrado mais uma presença que a aborrecia na sua própria casa.

Se algo turvou ainda mais a paz daquele lago de felicidade, seria a presença do filho ilegítimo que, depois de 5 anos do casamento aparece e perturba totalmente a paz de Helena. Não se pode deixar de espantar com a imposição de Hegel e criar os três filhos na mesma casa. Por um acaso ou um pouco de discernimento, quando Hegel foi para Heidelberg, pois as condições em que iria para outra cidade ou par Berlim não lhe eram nada favoráveis levou o menino consigo. A esposa ficou na sua cidade. A causa foi sempre atribuída a uma gravidez que terminou mal. Tudo parece plausível, mas depois a verdade é que nunca houve paz entre o menino, a madrasta e os seus próprios filhos. Todos foram obrigados a aprender música e também se pode notar que o filósofo além de severo, era colérico e de grande rigor, dominando toda a família. No entanto não soube dar paz aos seus e a esposa por certo que sofria e causava sofrimento à pobre criança com um pai que não mostrava carinho algum. É notório que se falasse da inabilidade de Hegel em tratar o filho.

Também Helena se mostra parcial, como seria óbvio para com aquela criança, filha de antigos amores de seu marido e que assim lhe surgia para cuidar além dos seus dois filhos, já que perdera uma filha de tenra idade.

 

 

 

 

Fig. 55 - A sombra da esposa que Hegel manteve como um belo pássaro capturado, que nunca viu a Liberdade.

 

As tentativas de conciliar o seu filho ilegítimo com a sua família só demonstram uma insensibilidade e um desinteresse egoísta pelos sentimentos de todos. Além de perturbar a serenidade da esposa, o pobre menino vivera num orfanato até aos 10 anos. Só há pouco tempo se fala da dominação simbólica e psicológica que se pode exercer sobre um ser mais fraco, como devia ser este caso da dona da hospedaria, mas é fenómeno tão banal durante séculos que até se considerava “natural”. O sociólogo Bourdieu[17] descreve situações “naturais” mas que escondem a divisão desigual entre duas partes da condição humana. Por tudo isso, Bourdieu diz de forma nova o que é tão velho que o sociólogo incomoda as consciências já sem capacidade de pensar de modo diferente:

 

 

Fig. 56 -  A vida é tão pouco natural que se chama sorte ao que é dominação de uma falsa realidade.

( A astúcia está no hábito que prende e impede qualquer vislumbre de liberdade. Repare-se  na serenidade do passar do fio que mente parece tão simples às três parcas )

 

 

 “A dominação masculina é tão segura que nem exige justificação. O ponto de vista dominante da divisão sexual expressa-se nos discursos e ditos, provérbios, enfeites (…) Mas também se expressa em objetos, técnica ou prática: por exemplo, na estruturação do espaço, particularmente as divisões internas da casa ou na oposição entre a casa e o campo, ou na organização de tempo , (…)  em todas as práticas,  muitas vezes nas mesmas técnicas de tempo e rituais , especialmente nas técnicas de postura corporal, gestos e atitudes curvadas e hirtas. Se esta divisão parece "natural ",(…) este é o acordo entre estruturas objetivas e cognitivas esta experiência é a forma mais absoluta de reconhecimento da legitimidade apreender o mundo social e suas divisões arbitrárias como natural, óbvia e inevitável , a começar pela divisão socialmente construída entre os sexos.

  Parece natural que a mãe, a pobre Christiane Burkhardt seja abandonada e que o menino, por não poder ser criado muito tempo pela mãe fosse parar a um orfanato. Depois da morte de Christiane, e possivelmente com forte dominação sobre a jovem esposa, Hegel consegue que esta aceite a criança.

Já casara há 5 anos e as ilusões da esposa, se é que as ousou ter,  estavam já por terra. Mas é óbvio que, com as viagens e todas as ausências que Hegel era obrigado a realizar, a tranquilidade da casa era muito incerta. A esposa Helena, por maior que fosse a sua benevolência e caridade  não tratava com a mesma bondade e carinho os seus filhos e esse rapazinho que lhe aparecera em casa e nada de agradável lhe recordava.  Fala-se na rebeldia do jovem Ludwig mas temos de ter presente que a sua situação era das mais tristes. Depois de perder a mãe, ser entregue a um orfanato, conviver com uma madrasta que certamente não o amava e só o suportava, ao lado dos dois novos irmãos que nunca vira, o temperamento mostrar-se-ia no mínimo agreste e rebelde. Não se podia esperar uma reação conformada.

A vida deve ter sido muito dura para a infeliz criança por isso não nos espanta que causasse problemas na sua nova família e a má vontade da jovem madrasta. Para grande estranheza acerca da insensibilidade de Hegel e da sua imposição quanto à sua vontade, encontrava-se a lecionar em Heidelberg em 1817, quando o filho veio do orfanato e ficou nessa cidade com esse pai desconhecido.

 

 

 

 

Fig. 57 - Quadro de Georg Tooker, "O Baile de  Máscaras".

( AS FACETAS DE HEGEL QUE SE MULTIPLICAM DIANTE DOS SEUS FAMILIARES E CONHECIDOS )

 

 

 

Falar dos desgostos do filósofo por causa de Ludwig é esquecer a responsabilidade que atirou para os ombros alheios sem se importar com o destino do filho, logo que este nasceu e o tornou afilhado do seu irmão e todos os problemas que causava aos demais. As dificuldades financeiras não o desculpam pois neste caso nem são justificação

Aos 19 anos, depois de algumas tentativas inábeis do pai em o integrar socialmente, o jovem que se sentia sempre muito mal integrado nessa família, parte como mercenário militar para a guerra. A sua morte num combate em Batávia, antecederá um pouco apenas a morte do pai. Porém não se pode medir o seu desgosto por tal facto, Hegel morreu de uma epidemia de cólera que assolava Berlim onde então vivia.  

No conjunto do seu tempo, este foi um enlace que trouxe serenidade, afastou Hegel dos problemas que detestava e colocou nas mãos da esposa  o leque de salão e a concha de servir a sopa.  É-lhe conferido, como mulher os sentimentos, que não parecem ser partilhados pelo marido já que este é o lado racional objetivo do conceito da família. À mulher cabe o papel da relação direta com a realidade, o cuidar da casa e dos filhos. Porém, logo que estão criados, a razão exigirá que esses jovens sejam logo afastados da influência feminina, para que a sua educação seja aperfeiçoada e para se tornarem masculinos, cultos e bons cidadãos. De facto os dois filhos de Hegel tiveram êxito social, o que com certeza mais interessava seu pai.

Na mente de Hegel delineava-se um lugar para a família que desempenharia uma dupla missão. Para a vida do filósofo era o “discernimento” ou um bom senso para a sua estabilidade social. Por outro lado, realizava uma efetividade que daria à sua consciência e portanto à sua pessoa aquela disciplina de uma quotidianidade estável e repetitiva que a vida doméstica oferece. O seu pensamento, por certo é reservado para si, enquanto a jovem Helena pode ter à vontade sentimentos bem diversos, desde que obedeça e cumpra bem o seu papel.

 Todavia, para além de alguns atritos com a irmã de Hegel e a incompatibilidade com o filho da primeira relação de Hegel que este trouxe para a sua casa, os biógrafos concordam em que foi um casamento sereno e o afeto entre ambos permaneceu ao longo dos anos. Além dos cuidados caseiros, Helena teria de cumprir com os conformismos do quotidiano, na vida privada, subjetiva, que lhe retira qualquer papel social ativo que se manifesta na figura do chefe de família, o agora respeitável e genial professor Hegel. Futuramente, nas teses de Hegel, os filhos virão a criar a dissolução do casamento já que a missão social da mulher se cumprira.

 

 

 

 

Fig. 58 -  A esposa que em casa espera por  um marido que se atrase, por certo que pensa no espetáculo que não vai poder assistir.

 

 Depois de casado, quando Hegel viajava, pelos Países Baixos, Viena, Paris ou outras cidades, escrevia à esposa, com provas de afeto, mostrando o seu carinho ao evocar a sua presença e cenas familiares das quais sentiria a falta. Tememos que, tal como tantas cartas que ficaram para a sua biografia, as palavras não fossem boas testemunhas para a verdadeira vivência do casal. Hegel ainda passou alguns anos em Heidelberg, para onde foi em 1816, pois não aceitou logo a sua cadeira em Berlim dadas as pouco aliciantes condições que lhe propuseram. Apesar de ter a grande ambição de lecionar em Berlim só aceitou o convite depois de ponderar nas melhores e mais auspiciosas perspetivas se desenharem para o resto da sua vida.

 

 

 

Fig. 59 - O Filósofo gostava deste traje e a esposa troçava por tal "boina" que usava em casa, sentimento que era compartilhado pela Irmã!

 

 

 

Pelo que se sabe, a sua afeição, que manteve sempre à sua irmã mais nova, Cristiana Luísa, foi fortemente afetada pela preocupação pela sua saúde mental. Mesmo com toda a sua tendência dominadora das mulheres a preocupação com a irmã era uma realidade. O medo que sente as depressões dela se manifestassem em si, nunca se afasta. Da  sua fase de perturbações quase hipocondríacas mantivera um forte receio de também haver em si alguma possibilidade de depressão ou loucura.

 A sua vida em Berlim tomava um rumo muito auspicioso. O casal frequentava o teatro, a ópera e ia aos concertos. Quem teria a iniciativa ou maior prazer por essas aparições não se pode saber. Mas sendo jovem e bonita, por certo a esposa devia gostar de comparecer, ser admirada e invejada, mas também devia causar bastante orgulho para o filósofo, já a entrar no outono da vida, surgir na sociedade com uma beldade tão jovem e atrativa ao seu lado. Sem ter ainda 30 anos, ao lado do marido de mais de 50, o contraste causaria mais curiosidade e atração a que ambos não desgostava de modo algum.

 

 

 

 

 

 

 

 A respeitabilidade e a admiração tornavam Hegel cada vez mais num venerável mestre e no “velho” que antes fora apenas vaticinado e se agora se realizava com plenos direitos. O seu gosto por métodos rigorosos, a insistência na rotina de uma vida bem regrada e fiscalização de gastos, manifestavam claramente as consequências das dificuldades já passadas.

A sua extrema economia continuou toda a vida a mostrar que nunca se esqueceu os anos de mil dificuldades materiais que já vivera, na sua juventude bem agitada. Apesar disso, a proverbial distração atribuída aos mestres pensadores mostrava-se em pormenores que os alunos observavam, sem se atrever a rir do professor em quem confiavam.  O episódio de chegar à aula sem um sapato que perdera na lama e nem notara, ou a sua confusão em tomar outro caminho quando ia para a aula, veio tornar ainda mais proverbial as distrações dos sábios.

Não conseguiu ir para Berlim antes de 1818 onde, em 22 de outubro, profere a sua lição inaugural que é também o anúncio da sua obra a “Enciclopédia”. A capital assistirá à consagração do respeitável professor burguês em toda a linha e com alunos jovens ou até homens feitos a assistirem com veneração e evidente pasmo às palavras que ia oferecendo ao comum dos mortais. A descrição comum é pouco aliciante mas é o testemunho de muitos que o admiravam, como foi o caso do discípulo Hotho revelam a sofreguidão com que ouviam os seus ensinamentos: 

A cabeça baixa como se estivesse dobrada sobre si mesma, o ar cansado; ele estava lá de pé e, enquanto falava, procurava continuamente nos seus grandes cadernos percorrendo-os sem parar em todos os sentidos, uma tosse incessante interrompia o desenvolvimento do discurso; a frase estava lá, isolada, ela vinha com dificuldade, como se fosse arrancada. Cada palavra, cada sílaba só de soltava a contragolpes, pronunciada por uma voz metálica, para em seguida receber no amplo dialético suábio[18] uma ressonância surpreendentemente presente, como se, a cada vez, o essencial estivesse lá”.

 

Na vida real criava amigos, admirava e amava as mulheres. Até à sua estabilidade social, a vida afetiva de Hegel é pouco conhecida. Apenas se revela ser muito humano pelo modo entusiasmado que aceita a vida e goza dos seus prazeres. Parte-se assim de um pensamento do próprio Hegel que explica “Nada de grande se realizou no mundo sem paixão”.

Ancorada no casamento e transformada em metade do homem, a sua consorte é aquela que compartilha da sorte, direitos, títulos e o poder do outro que a representa. Apenas se exige à mulher, a essa Helena que aceitou o casamento com esse estranho que chegava à sua cidade, uma moralidade na sua subjetividade. Ironicamente se usou a palavra “apenas”, pois o casamento burguês, mesmo que se pense nele com o maior romantismo que a época oferece, é uma prisão da qual a mulher só sai quando morre. A mulher tem na família o seu princípio moral pois esta é o primeiro movimento para consciência social. Do ponto de vista que interessa a Hegel a relação dos sexos é uma unidade que se fundamenta no amor, portanto a família é “uma pessoa” toma um sentido moral. A feminilidade desaparece do social. Mas temos de a tentar descobrir nesse invisível do discurso.

O primeiro momento do espírito na sua interioridade surge na família na sua totalidade sentimental e de interesses comuns onde a figura da mulher se oculta. O conservadorismo e a dominação simbólica do hegeliano é exemplar nos seus escritos se bem que tivesse fortes conflitos pessoais. Mas esta esposa, jovem e inteligente, não se intromete nas obras do marido que pode continuar com a tranquilidade possível a expor as suas teorias nas aulas.  Provavelmente, a contradição entre a vivência quotidiana e as ideias do marido nunca se manifestaram. Como qualquer esposa burguesa da sua época, Helena devia ter admirado o marido através da consideração social, do seu pai e passara facilmente de uma dominação para outra sem questionamentos metafísicos.

Já o ciúme para com a irmã, uma intrusa na sua casa, que mal suportava e que também Cristina Luísa que  não a apreciava essa esposa que lhe roubava a atenção do irmão acrescentou-se ainda mais com esse  filho que lhe surgia e que desorganizava toda a sua vida. Se a indiscrição da esposa a levasse à leitura dos textos éticos do marido não se sentiria nada satisfeita. Afinal, as contradições eram muito estranhas para a sua mente e os seus sentimentos.

 

 

 

 

Fig. 60 - Último quadro de  Hegel, de Jakpb Schlessinge ( 1831 )

 

 

 A tradição da cultura clássica que Hegel sempre admirou dos Gregos e Romanos, dava-lhe a mesma visão da família viva que não seria mais do que a depositária de uma herança para passar para os filhos e estes para nova família. Por sua vez, esta continuará a ser a forma viva dos mortos no “aqui e agora” histórico da dialética teleológica que leva ao “aqui e agora” Absoluto, origem fim e resultado de toda a evolução que Hegel apenas admite mas não atinge por astúcia do seu génio.

A tríade reside na família, na propriedade, educação dos filhos. Felizmente não vai dizer que é um contrato. Há sim uma aliança e um vínculo ético de uma dualidade em que não pode existir senão a monogamia. Na “Filosofia do Direito afirma “O etos do matrimónio consiste na consciência desta unidade enquanto fim substancial e, portanto, no amor, na fé e na comunhão de toda a existência individual”. Para manter a coerência do seu sistema, teria de negar o casamento como pertencente ao “direito natural” pois lhe faltaria a racionalidade. Se o amor está presente na família de forma subjetiva, a fundamentação desta passa a ser uma eticidade e o amor é uma figura já invisível. A historicidade que o hegelianismo contém e é uma das suas mais acarinhadas perspetivas, no que nos interessa não é mais do que um cenário que Hegel toma como real, mas para que continue vivo e não seja um registo de uma etapa da história da Reforma, dentro da Alemanha numa Europa que não é o centro do mundo, não tem valor senão circunstancial dentro de um contexto do pensamento do século XIX.

Alheia a tudo isso, Marie Helene von Tucher vivia centrada em si em contato com a natureza, o cuidado dos filhos, o desgosto pela morte da filha de tenra idade e alguma gravidez que acabou em aborto, tal como consta de ter ficado doente quando Hegel foi lecionar para Heidelberg e não o pode acompanhar. Mas com o tempo aprendeu a tarefa de dirigir a casa, receber os convidados no seu salão e frequentar a sociedade. Com a devida cautela, suponhamos que o filósofo era ciumento e vigiava a esposa pois, por certo, a diferença de idade, podia dar-lhe certas desconfianças. A analogia entre a bela Helena a grega e a esposa não o faria meditar e sair do seu pensamento especulativo? 

Supúnhamos pois que, dentro das possibilidades e contingências, sucedia a jovem apaixonar-se perdidamente por um belo e sedutor aluno de seu marido. Este aproveita a amizade do velho mestre, para conhecer melhor a esposa. A filosofia dá lugar a uma atração mutua e transforma-se rapidamente em paixão. A traição acontece e Marie Helene von Tucher fica grávida do seu apaixonado. Seria algo natural pois as paixões são o “elemento ativo” na ordem do mundo.

 

 

 

Fig. 61 - Gravura que tem por título “O código da Galanteria

 

 

Este é um exemplo é algo que o próprio Hegel, noutras circunstâncias, já conhecia. Deve castigar a bela Helena, que lhe recorda a sua amada Grécia e o heróico rei Menelau, traído e que perdoou aquela que imortalizou uma guerra?

Assim, no seu absolutismo interior independente, Helena terá cedido ao marido toda a sua relação com o mundo objetivo, supra-sexual. Se assim é o mestre de filosofia poderia confiar. A feminilidade guarda em si um enigma que a vida nunca decifra.

 

 

 

 

 

Fig. 62 - A tentação? A repetição e a fuga?

 

 

 

Porém, reparemos também se trata de uma “repetição” agora vivida com o “mundo às avessas”, como acontecia nessas representações populares ue punham em causa a ordem hierarquicamente estabelecida. Hegel recorda-se certamente do que fizera numa situação que já vivera com outra mulher. Será que o filósofo vai transformar a sua vida numa tragédia, face ao social, ou dará mais uma lição de direito aos seus atentos alunos?

Se bem que defendesse a monogamia, não podemos saber se isso satisfaria a sua lógica que sempre usou a tríade ou, transformava o seu próprio caso numa das exceções colocadas na sua obra. Não se pode esquecer que deixara aberta a possibilidade da dissolução do matrimónio por outra “autoridade ética” que o determinasse.  Levanta-se agora a questão de saber como pode o direito exercer-se sobre uma alma, a mulher, se é um indivíduo subjetivo distinto de um homem, ou se será sempre “uma criança crescida” para quem a lei e o direito não se pode aplicar?

 Retirando a noção de semelhança com uma criança grande, uma mulher fica sujeita à lei masculina, que lhe é alheia, se bem que pareça, dada as suas características não ser de todo acertado que assim suceda. Ela é realmente o Outro que o homem não tem possibilidades de julgar. As leis não foram feitas para a mulher. A sua natureza é suficientemente diferente para que a aplicação de qualquer lei seja profundamente alheia à sua essência. O dilema de Hegel é pois o de uma dissolução que ele mesmo indicou ou considerar a esposa que o atraiçoou e o aluno que é como “um outro eu” que lhe recorda desagradavelmente uma outra situação bem embaraçosa do seu passado.

Não podendo ser juiz em causa própria não deixaria porém de legislar. O delito roubou a liberdade a ambos e os traidores não são já membros da coletividade ética. O direito positivo exige que sejam castigados, tal qual Antígona o foi pelas mesmas razões. Para que voltem a ser livres devem forçosamente ser castigados. O castigo é uma necessidade racional pois “não podem ser tratados como animais”, escreveu Hegel, por isso o agravo exige castigo para que possam ser novamente livres. Isto não significa o perdão para os faltosos nem o regresso de Helena ao lar. A “entidade ética” com a autoridade que Hegel lhe atribuiu é quem deveria determinar o resultado desta paixão. Porém é possível para Hegel condenar tal paixão pois está de acordo com o seu sistema e o aluno está a salvo da sua cólera pois “nada de grande se faz sem paixão” e raptar a esposa do seu mestre é uma alteração da serenidade de toda uma cidade e um escândalo que mudaria a vida de muitos. O seu filho Ludwig, face a tal acontecimento, sentiria a mão do destino a determinar esta repetição e a sua consciência sentir-se-ia reparada. O pai insistira em que tivesse aulas de música, mas não lhe deu as possibilidades de ser seu aluno nem de prosseguir estudos.

Enquanto toda a cidade comentava e Hegel refletia acerca da realização do processo dialético  que se realiza no universal e nos deveres do homem e, provavelmente iria rever a sua opinião acerca do imperativo categórico do mestre que não aceitara e era Kant. Entretanto, o mais comum num caso destes, era a solução que já antes Hegel tomara face ao nascimento do seu primeiro filho. A fuga.

É óbvio os dois apaixonados deviam estar bem longe de Hegel, de Berlim e do seu Estado como modelo que se apresenta e representa aqui as terríveis consequências dos jogos da dialética e do princípio da contradição que o prudente Kant nunca aboliu.

 

 

 

 

 

 

Fig. 63 -  Hoje a grandeza destes  filósofos continua a ser o alicerce da filosofia que temos.

 

 

Veja-se como na teoria e quase que meditando acerca do seu próprio passado a determinada altura dos seus textos, Hegel escrevera, em “A Estética[19] como se tal acontecimento fosse previsto. Vemos surgir, no seio desta vida fixa e estável, nas almas mais nobres e ardentes, o amor, essa religião profana do sentimento, que não tarde a contrair, com a religião propriamente ditas, relações variadas e também a subordina-las, a esquece-las e a impor-se-lhe como o fim essencial da vida, até o único e mais elevado pregando não só o abandono de tudo o mais e a fuga com a bem-amada para o deserto, mas também caindo num extremo já sem beleza, o sacrifícios da dignidade humana ao ser amado e a submissão mais servil. Mas se abrimos a portão a um possível, tornamo-lo a fechar com cuidado para não causar grande estrondo.  

Na filosofia, Hegel representa o fim de uma era se bem que fale de um início ou de uma transição. Já a sua vida, no pouco que nos é dado saber, é mais um exemplo da modernidade. As mulheres que mais marcaram a sua vida estão na transição para a efetividade da família burguesa. Toda a sua presença oculta no discurso representa a unidade pelo que não se diz mas faz parte do que se diz e surge no contraditório representado pelo próprio Hegel. A mãe, a irmã, a amante e a esposa.  

Repare-se que a obra “ Fenomenologia do Espírito” escrita em 1807, tinha então 37 anos, já na fase da maturidade, escrevia que:

 “O indivíduo não pode percorrer tudo o que já está realizado por uma via mais curta. (…) No entanto a fadiga é menor, porque  em si, tudo já estava realizado, o conteúdo é a realidade efetiva já negativizada na possibilidade, ou a imediatez já suprimida, a configuração já reduzida à sua abreviatura, à simples determinação do pensamento.” [20]

 

 

 

 

Fig. 64 - Por trás do pensamento há todos os acontecimentos que perturbaram e orientaram o filósofo

 

 

Há que observar um ponto que não se costuma dar muita atenção. A necessidade de um pensamento da parte de quem lê, que ultrapasse o linear e atinja outras dimensões ocultas o texto, a busca de uma boa leitura só com atenção extrema alcança novo entendimento. A leitura das obras hegelianas, para obedecer ao espírito que as realizou, tem de ser sempre numa tríplice compreensão. Se Hegel encontrou a dialética no grande Parménides, usou-a como lógica e ontologia, também captou o Uno  e isso deu um dinamismo original a toda a sua obra. A dialética é a mola real e a possibilidade de uma leitura múltipla de toda a obra. A leitura obriga a uma constante adaptação ao método dialético e nunca se iludir por a aparente linearidade.

Enquanto ele escreve, o objetivo, o subjetivo e o devir manifestam num só indivíduo: Hegel. Porém Hegel por sua vez tem uma cultura muito vasta e estudou a antiguidade, os clássicos e os seus contemporâneos, logo o rio já vem caudaloso de trás.Com esta elucidação já estamos a indicar um artifício de qualquer escrita e em especial a hegeliana pois o tempo, em termos de devir, não permite paragem. O discurso parte da vida e, para deixar de o ser, transforma-se numa mediatez que o contraria. Apenas as palavras se reportam à realidade, porém esta é vida mais do que toda a escrita. A unidade perdida é o que mais deve guiar a leitura pois a nova unidade é fruto da anterior separação de opostos.

Os gregos tinham veneração pelo grande Parménides de Eleia, tão admirável para o seu tempo como ainda hoje não pode ser esquecido. Curiosamente há um paralelo com o que pensava, quase na mesma época, do Deus dos hebreus. Convém referir que o Absoluto e a noção de Deus de Hegel tem fortes analogias e é fácil entender que não foi em vão que estudou no seminário. A teoria hegeliana, no que tem de melhor e mais capaz de resistir ao tempo, está esboçada numa criação que deprecia a matéria, o individual e o particular. Quando se refere a tais fenómenos é apenas para realçar e separar o mundo concetual se reporta a tais aspetos.

Encontramos assim conceitos filosóficos e teológicos que vêm de muito longe. Repare-se no que se escrevia acerca do Ser e o Uno dos gregos e o que os judeus concebiam “O Deus dos hebreus é o ser puro, sem limites, inefável. É sagrado” Isto significa "sui generis". Significa que os valores são atributos de Deus.”[21]  Jeová é o equivalente ao Uno, ou do Ser parmenidiano. A noção do devir deve-a a Heráclito e não se pode esquecer que a razão “Nous”, que governa o mundo, colheu-a em Anaxágoras.

Só se pode falar dele excluindo o mundo material e passando para o concetualismo e para uma linguagem despida de materialismo. A grande construção hegeliana paira nas nuvens e para elas volta depois que realizou todo o ser necessário no mundo. O mundo só serve para regressar depois da Ideia se ter apossado de todo o ser necessário que tinha de existir. Começa-se a vislumbrar que o que se diz é importante mas também o que não se diz. Se não se notar e captar o que não diz, então a leitura hegeliana é distorcida. Temos de prestar atenção também ao que nega mas está implícito. Acontece que no final, para ler Hegel é preciso negá-lo. A contradição hegeliana não é como qualquer outra, a conservação do positivo anterior mantém-se, enquanto o que diz se unifica no todo que já se foi exposto e ainda nesse mesmo ponto já se desenha a sua ultrapassagem. Aufliebung é um conceito sempre presente e que para ser válido não pode ser traduzido. Um dos termos de suma importância não pode ser traduzido. Trata-se de Aufliebung que depende de três constituintes da significação dessa palavra alemã (nulificar, guardar e levantar). Esta é a fórmula da dialética sempre presente nas asserções de Hegel.

São de extremo interesse as observações irónicas do filósofo rebelde e extramente crítico Zizek (1949 -) ao colocar questões que muito nos interessem e, ao mesmo tempo nos libertam de outros comentadores que não se deram conta ou nos avisaram com algum receio das nossas fracas capacidades linguísticas e do cuidado a observar ao ler noutra língua, que não seja a alemã, a obra de Hegel.  Chegava~se assim ao resultado de que o alemão tinha termos intraduzíveis. Se assim é, conclue-se com a ironia, que muito bem Hegel usava, agora contra ele próprio que há questões que enredam o filosofo de Iena, terra da sua obra põem em xeque termos como  ser-para-outra-coisa ao ser-para-si apoiam-se em figura de estilo própria da língua alemã: Se o absoluto só pode ser dito em alemão como Žižek conclui, então a ironia total é que o Absoluto é Hegel. Não foi o primeiro a chegar aqui, pois as criticas pós hegelianas já muita vez assim concluíram. Quando um dos termos de suma importância não pode ser traduzido, quando Hegel se apropria da linguagem e nela coloca a totalidade a conclusão é irónica mas carregada de sentido. 

Em “A Fenomenologia do Espírito” observa-se o devir tido como científico ou do saber em geral e pretende-se mostrar a evolução da consciência até que o pensar e o ser se harmonizem. O saber – ou o imediato - tal como é inicialmente, trata-se de algo desprovido de espírito – afirma – logo aponta para a consciência sensível como a primeira forma de conhecimento. A necessidade resulta do contingente por que é uma lei que ultrapassa a atividade humana que a desconhece mas que a realiza. Tal fenómeno é algo que aparece à consciência de quem se apropria do texto hegeliano. No cerne das suas contradições é uma permanência de um possível que no final se torna o infinito que se pode traduzir por “impossível” e que é o fio condutor que une todas as obras que escreveu. O que nos surge sempre a cada passo na sua leitura é que há um interdito que nunca pode dizer e o todo tem um limite que o torna, no mínimo, contestável.

 

 

 

 

 

Através de todos os tempos o conflito primordial, isto é, a dialética, só se realizará entre dois seres que na sua contradição são a “condição” da evolução no humano. A mulher, oculta no texto é, na sua humanidade, quem realiza este processo da efetividade do masculino e após o processo é resultado num absoluto que se absolutiza infinitamente.

No que respeita à constituição da relação entre a mulher e o homem, tem de haver da parte dela um reconhecimento que torna efetivo este último. A história não se realiza por heróis que se o são apenas manifestam uma efetividade. O espírito encontrou uma liberdade que realiza uma “ética social” de um povo capaz de os reconheceram. Uma dialética entre o visível no espírito masculino e o invisível que é a tarefa feminina de relação com a realidade que só ela inicia a transformação. Assim como o visível impõe o invisível, também o espírito especulativo impõe o espírito que se relaciona com a realidade e torna-o o início e o primordial. A transcendência permanece sempre nas possibilidades e contingências femininas e, sem elas, não há o devir.   O progresso do espírito recomeça com a feminilidade, a mulher, quando esta o reconhece. Neste ponto, com o reconhecimento, a mulher tem uma relação e mediação ao meio e passa a ter a essência que ela reconhece no homem.

Se “sua exterioridade feminina é que interessou ao homem”, logo após a unidade e do reconhecimento pelo qual  o ser masculino se efetiva, cria-se um “die Sache” ou o indeterminado que no segundo momento coloca o homem na dependência face a um “ser - ai” determinado. Da generalidade passou para um “ser - aí” que tem de continuar. A dialética vital é geracional. A unidade contraditória do amor, ou na luta pela dominação e a dependência realizam-se com a ultrapassagem para nova etapa em que não há senhor nem servo, nem o homem ou a mulher, mas o filho. Esse indeterminado que se realiza no devir. Daí que, enquanto a dialética do senhor e do servo se inscreve num tempo histórico, a dialética primordial é a própria evolução da Ideia na condição humana a realizar-se. A humanidade é o espelho em que Hegel viu a sua teologia que é uma teleologia que dá à condição humana uma essência das essências com a participação de todos.

 

 

 

 

Fig. 65 - Por mais longo que seja o caminho da escrita a realidade não está na narrativa por mais variada e  longa que seja

 

 Para chegar ao saber autêntico, ou produzir a ciência, que terá de ser o conceito puro de ciência, há um longo e árduo caminho a percorrer. Tal saber apresenta-se com as suas figuras e assim Hegel mostra o que espera do que para ele deve ser uma introdução da consciência não-científica à ciência. É óbvio que, com este processo, tem de seguir um caminho diferente do que antes se convencionava ser o modo de fundamentar a ciência. Para além de tudo o que escreve, com ironia e sarcasmo, pede serenidade e calma anota que:

 “Além disso, não terá nada a ver com o entusiasmo que irrompe imediatamente com o saber absoluto – como num tiro de pistola – e descarta os outros pontos de vistas, declarando que não quer saber nada deles “.[22]

 

A arte da escrita que Hegel criou vai destruir o próprio autor mas não destrói a obra.As ideias hegelianas expostas em “A Fenomenologia do Espírito” desdobram-se nas suas obras posteriores de modo que se trata aqui de encontrar um fio condutor que nos descubra a presença da mulher e que os textos não conseguiram ocultar totalmente. Apesar de muito que escreveu ser posterior a 1807, a estrutura do seu pensamento está já delineada nesta fase da sua vida. Para apreender a complexidade do discurso hegeliano, para lá do que está escrito, é bom recordar um dos diversos episódios que contam a seu respeito. A quem o interrogava com alguma dúvida sobre o seu pensamento, parece que o professor, já de grande reputação em Berlim, respondia:

Vá ler os meus livros[23]

 

 

 

 

 

Fig. 66 - Será que a realidade se concentra e conserva na obra e aí se mantém a totalidade e o Uno.

 

 

 

 

Este é um episódio, talvez anedótico ou talvez erróneo, acerca de Hegel, mas não deixa de ser muito lúcido e remete para a realidade da globalidade da sua obra. Se Hegel, no tempo em que dava as suas aulas, fosse explicar qualquer um dos aspetos da sua filosofia gnosiológica, pedagógica, histórica ou qualquer outra vertente não o iria conseguir pela necessidade da relação sempre com o todo. Não é possível entrar no sistema hegeliano, captar umas frases e com a recordar de alguns dados apenas conseguir entender a uma das mentes mais complexas com um sistema que se trata de uma loucura impossível mas que Hegel na sua genial mente produziu de um modo alucinante.

 Quando se entra na espiral circular do sistema não há brecha onde o pensamento sistemático se quebre. A construção de Hegel tem uma tal força que só se pode nega-lo sem entrar no sistema. Entenda-se a bela argumentação kierkegaardiana[24] que luta em termos existenciais que nada têm a ver com o sistema e nunca criou qualquer um. Uma das críticas a Hegel repousa na opinião comum de que este não tinha qualquer sentido do “pathos” nem qualquer sentimento, pois no fundo não possuiria “o menor sentido do cómico”.     

A sua obra prima, no entanto não deixa de lado a ironia e muitas são as frases e citações que mostram um sentido de humor próprio de um espírito especulativo. A afetividade de que Kierkegaard também o acusa de não possuir, esconde-se nas entrelinhas e na sua vida que, em alguns dos seus aspetos está patente no conflito trágico que o insere na condição humana, com as suas dores,  alegrias e reações de cada um tão diferentes. Só auscultado a face oculta do professor, que assim tão severo se mostrava, aparece as contradições reais e a paixão que nunca surge na serenidade do texto, nem no rosto austero do mestre mas que na vida nada tem de real.  Hegel teve uma vida carregada de lutas e dramas, com choques de ambições contra a violência de sentimentos que queria expurgar da sua vida mas que assombraram sempre a sua mente.  

As suas ideias políticas e a simpatia pela revolução francesa e a influência do seminário, produziram um espiritualismo que nunca o abandonará. Isso refletir-se noutras facetas dos seus sentimentos, entravam em forte oposição com as ambições em se tornar num grande filósofo conhecido. A influência da religião que recebera em casa de seus pais aliava-se a alguns resquícios do tempo do seminário, modelaram a sua personalidade na aspiração de aparentar um comportamento em conformidade com o meio e a ambição de atingir um elevado estatuto. 

As amizades que criava à sua volta, desde o tempo da estadia no Seminário contribuíram para o cadinho em que formulou a sua obra fundamental, “A Fenomenologia do Espírito” escrita num turbilhão de ideias contraditórias que não se revelam na quase total imperturbabilidade do discurso. Mas com esta obra que revela a direção do seu pensamento. Curiosamente, o respeito pela obra faz esquecer à maior parte dos estudiosos, o dualismo do seu autor e a sua vida que de algum modo pretende vencer numa racionalidade que estivesse de acordo com o seu sistema. Por muitas razões, se pode ter de usar o cavalo de Troia para entrar no âmago da sua filosofia que culmina um otimismo teleológico com um pessimismo dos indivíduos condenados a serem apenas um momento necessário para a realização da Ideia.

 

 

 

 

Fig. 67 - É fora do castelo que a vida se transforma em existência no indivíduo

 

 

Devido a este castelo onde se entrincheirou, ter-se-á de inserir na sua dialética a figura primordial da mulher, quer no sentido individual e em especial no sentido da Mulher presente no devir. O discurso masculino e cerradamente lógico tem no fundo o seu contrário, ou seja, sob a superfície calma do rio, há correntes e pontos ocultos que são muito perigosos pois muito enganam a quem o vê assim como aparece, belo e tranquilo. O sentimento e capacidade do discurso filosófico ocultam a triplicidade e a dialética a tal obrigam. Se bem que a lógica hegeliana seja uma catedral, a capacidade de observar as diferenças entre o pensamento especulativo e a vida real que tem de estar presente pois levam a descobrir a presença feminina.  

Se a razão ultrapassa as intenções do ser humano é porque se serve dele pela “astúcia”, dirá Hegel mais tarde. Atribui-lhe fins racionais supra-lógicos que o indivíduo não alcança. Ora Hegel é também um indivíduo e não pode deixar de se petrificar num tempo do qual não se pode desligar.

 

 

 

 

 

Fig. 68 - A vitória da Prússia e o orgulho de Berlim também encerra a satisfação de guardar os nomes de filósofos tão célebres como Hegel

 

 

 

 

Temos de negar Hegel para o entender para além do que escreveu. Mas esta negação é igualmente uma nova dialética que lhe restitui vida. A filosofia do espírito hegeliana está para além da sua historicidade. Quando assim se retira a História da filosofia hegeliana, o que parece que a esvazia de sentido, passamos para um nível que o texto oculta, mas que estava já presente.

 

 

 

Fig. 69 -  A evolução é já a ideologia que Hegel captou com a sua intuição sempre atenta a mudanças

 

 

 

 

 Os acontecimentos vividos e refletidos criaram a ilusão hegeliana propensa a uma visão da história, quer seja aceitando um progresso em relação à liberdade, quer quanto à evolução humana no seu todo inscrito na História. Todavia, pelas suas próprias palavras há algo mais que não se enfrenta diretamente mas é a última e primeira afirmação do ser humano.

Antes de falar da natureza humana, da sua história ou de qualquer presentificação ou rememoração de circunstâncias, acontecimentos, ou referência à atuação masculina ou feminina há que falar da condição humana. Tal como se parte da Ideia, inicialmente abstrata, essa mesma Ideia está presente no homem essencial. É por isso que escreveu:

 

 

 

 

Fig. 70 -  O que se adivinha nesta imagem da noite, oculta o medo do vazio, do nada e do que Hegel não pode controlar.

 

 

  O homem é esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente presentes (...) É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nós” .[25]   

A beleza pode surgir quando a poesia toca numa página de filosofia e, em vez de um voo claro no céu, descemos às entranhas de Deméter e com ela fitamos um mundo quando a verdadeira noite desce. Aqui, o pensamento liberta-se e temos uma filosofia hegeliana que vence o tempo que o envelhece. Hegel está sempre contra Hegel quando o cenário histórico deixa de estar colado a um pensamento que nunca está perfeitamente à superfície.

 Por trás de toda a frase, está interdita mas bem presente a confrontação com o indeterminado, o raciocínio tenta captar o pensar como um puro Eu. A noite não admite que lá se projete imagens. O sol que nasce não elimina a morte, nem a sua versão como noite. Mostra que no presente a condição humana está diante de um desconhecido. O determinismo de que tanto fala só se pode saber depois do processo e de atingir o resultado.

 Nenhuma forma deixa de ser manifestação do espírito que opera na causalidade e nas suas múltiplas exteriorizações mas oculta-se no fundo da noite do que realmente se diz e é no indeterminado que a verdade repousa. O absoluto é uma presença constante, desde o início ao fim do sistema embora por vezes pareça ocultar-se pois há sempre alguma coisa que se encobre mas se deve captar para além do que está escrito. A figura feminina é também uma presença constante que se esconde pela abstração de um pensamento que se anula por não existir um filósofo da subjetividade. Se a subjetividade aparece é como já fosse uma etapa do passado quando é sempre presente na sua negação. Esta será mais uma das críticas de Kierkegaard ao mestre que só olha a sombra no que respeita à vivência temporal como vivência lógica.  A leitura viva restitui ao texto uma intemporalidade que tem de ir para lá do que o filósofo escreveu.

Insistindo no cerne de uma das suas mais célebres frases: “Todo o racional é real e todo o real é racional” acaba-se por admitir que tudo é “resultado”, se bem que Hegel não o queira ver assim. O problema adensa-se se virmos que já em Lacan se descobre que “o real é o impossível”.

 

 

 

 

Fig. 71 - A palavra prende a real mas não captura a realidade.

 

 Se bem que sem ser tão direto, Žižek manifesta a sua discordância com uma totalidade que vai considerar o real apenas o que está na linguagem e a realidade não está totalmente presente pelos limites que Lacan e outros descobriram na linguagem. A linguagem é transcendental face ao todo da realidade imanente que não poderá nunca estar na linguagem com a autenticidade que a verdade exige.

    O real é o racional que foi possível para Hegel estruturar na sua obra mas a linguagem e a realidade têm um interdito ou impossível que jamais pode ser ultrapassado. É racional, mas a loucura, a "desrazão" não se pode expulsar da ontologia do ser como quis Hegel com a sua dissolução no íntimo da sua consciência. Há sempre uma síntese mais complexa do que o que se lê pois se inscreve no “todo”, que se liga ao concreto e ao que as suas realidades e potencialidades sincrónicas implicam. Na sua terminologia, o abstrato é sempre o separado, o que não é o verdadeiro. Estes vocábulos --- concreto e abstrato --- ganham dimensões diferentes, distintas das formas usadas normalmente.   A forma de captar a globalidade do sentido do texto hegeliano traz um apelo constante a uma leitura em forma de metalinguagem, supralógica até à Supra Ideia.

Só se pode entender tal sistema com o rigor que Hegel empresta ao sentido atribuído aos vocábulos. Cada raciocínio tem de conter a significação que abarca o todo para além da própria lógica que se tem de pensar como ontológica. A Ideia usa a Razão para se realizar, a Lógica é o entendimento do Absoluto pela dialética que faz desaparecer qualquer matéria sensível e por fim a realização da Ideia é o caminho para realizar o Absoluto. o panlogismo da Ideia, da Natureza e do Espírito realiza-se pela atividade humana.  

 A lógica não é o Absoluto, apenas o mais engenhoso meio de o abordar. Exige uma forma de pensar diferente do que até então era a lógica clássica. Por isso se diz que Hegel começa onde acaba o pensamento de Kant embora utilize as mesmas noções mas de forma distinta. A dualidade kantiana desaparece bem como a diferença fundamental entre o conhecer e o pensar. Trata-se de considerar a lógica também ontológica e ambas existem num mundo hegeliano que se compararia ao de Platão se fosse dualista.

A tese, antítese e termos que o próprio Hegel não usou, acontecem num aqui e agora num real e numa mudança constante que implica não haver paragens.  A aparência, a essência e a identidade estão no discurso, até que se entende que tudo é conceito no sistema que faz dai Ideia o Absoluto.   Mesmo assim, há necessidade de ver o espírito subjetivo e objetivo do conceito pensado, tanto na consciência de Hegel enquanto escrevia, como na de quem o lê e no que existe para além destes mas participa dos contextos.

Serreau coloca o conceito ou o Begriff, cuja tradução quase que nos proíbem os comentadores, num sentido bem complexo, além de significar compreender também significa conter e compreender as determinações num movimento dialético. “O conceito é a compreensão, o universal, que compreende as suas determinações num desenvolvimento dialético, é nesse sentido que é absolutamente concreto. (…) A ideia é primeiro a vida, depois a alma, depois a ideia de verdade e do bem no conhecimento e na ação, por fim o saber absoluto que atinge no pensamento do filósofo onde ela se pensa a si mesma, é a verdade que se conhece. Do ponto de vista da Ideia, o conceito aparece como um momento subordinado. Mesmo assim, é o princípio da ideia. Serreau comenta ainda, em nota de rodapé, que é muito desagradável que os hegelianos ingleses usem o Begriff como noção. [tradução nossa]

 A ideia é processo e é também vida que se estuda no conceito. Este, nas suas diversas formas, é um modo de pensar na totalidade e esta está presente em todos os momentos. Parte-se da ideia para a filosofia do espírito mas há etapas que o filósofo contempla devido à sua visão sistemática e evolucionista. A natureza não é mais do que um degrau para atingir um estado superior. A natureza é o espírito fora de si, em alteridade, que se manifesta. Neste caso, separa-se de si mesmo para depois se reencontrar num novo domínio superior, este é o sentido do espírito subjetivo que usa aqui.

Hegel colocou as características de diversos tipos antropológicos relacionados com a geografia, as raças e os climas num sentido onde o evolucionismo é visível, mas sem Darwin ter ainda entrado em cena. Mais parece que tudo conspirava para que o aparecimento das ideias evolucionistas surgisse por uma conjunção de espíritos com ideias comuns. A ideia hegeliana precisa de uma antropologia que lhe dê unidade e a justifique na sua marcha para o Espírito. A condição humana, tal qual existe, dá lugar à necessidade de falar do dualismo irredutível na história. A humanidade de que Hegel fala tem forçosamente uma complementaridade interior, logo o homem pressupõe a mulher.

É então que Hegel se refere ao que neste estado ele chama a alma. O espírito subjetivo faz parte do início da antropologia. Trata-se do seu primordial individualismo quando afirma “a alma é onde desperta a consciência”.

É através deste prisma que a realidade, como realização da ideia através do conceito é também a mulher, na sua subjetividade feminina, não só é imaterial como constitui a imaterialidade da natureza e da vida do espírito. O desenvolvimento da vida também se realiza em três momentos.

 

 

 

 

Fig. 72 - O JOGO, A VIDA,  A ESCRITA

 

Para Hegel essa nova etapa estava do lado da Europa que mostrava uma aurora radiosa de um novo Direito que se manifestava. O derrube das velhas hierarquias que Hegel anuncia é um fim e não um início. Se bem que refira à modernidade como uma cisão é também uma vida social e ideológica que começa.

 



 NOTAS:

 

[1] Russel, Bertrand, 0bras Completas, História da Filosofia, Moderno, Obras Filosóficas, Codil, São Paulo, Série 1ª Volume 23-B, pp.283-289.

[2] Werle, Marco Aurélio Hölderlin: Intuição e Intimidade,  vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0101-31062011000200018&script=sci_arttext2.-02-2014.

[3] Urdanoz, Teofilo, Historia de la Filosofia, Siglo XIX, , Biblioteca de Autores Cristianos, Volume IV, Madrid, 1975,pp. 195-197.

[4]Urdanoz, Teofilo, Idem p.198.

[5] Hegel, Georg, A Fenomenologia do Espírito, pp 251-253.

[6] Hegel, Georg, A Fenomenologia do Espírito,, p 298,

[7] Hegel, Georg, A Fenomenologia do Espírito, Tradução e comentários de Jean Hippolyte, Aubier, Paris, p. 300.

[8] Idem, Ibidem, p 299.

[9] Serreau, René Hegel et l´h pp36

[10] Žižek, Slavoda, O mais sublime dos histéricos. Hegel,  Jorge Zahar EditorLtda.1991.

[11] Idem ,Ibidem.

[12] Hegel, Georg, Phénoménologie de l´Esprit, Préface  T.I.Aubier Montaigne, s/d, Paris, p 10

[13] Haddock-Lobo, Rafael,  A Estética de Hegel e o Ideal Romântico do Amor, Parte I, Edição Vozes, Petrópolis, 1992.   http://www.oquenosfazpensar.com/adm/upl, 16-01-2014.

[14]Konder, Leandro, A razão quase enlouquecida, 1996, Editora Campus,

[15] Pinkard, Teeny, Hegel, A biography, 2001, Cambridge, University Press, U.S.A. p.77.

[16] Hegel, Georg, A Filosofia do Direito” 15.12.2013.

[17]  Bourdieu, Pierre, A violência simbólica,

[18]Nota: A Suábia é uma região histórica alemã com um dialeto local chamado Schwäbisch, ou suábio. O território histórico abrangia grande parte do estado de Baden-Vurtemberga de onde era natural Hegel.

[19] Hegel, Georg “A Estética", 1993, Guimarães Editora, 1993,pp. 316-317.

[20] Hegel, Georg, Phénoménologie de l´Esprit,  T.I.Aubier Montaigne, s/d, Paris, p 27.

[21] Thomson, Georg, Os primeiros filósofos, - As novas repúblicas e a razão pura. 1974,  Editorial Estampo, Coleção Teoria, nº 24, Lisboa.pp154-156.

[22] Hegel, Georg,Idem, Phénoménologie de l´Esprit,  T.I.Aubier Montaigne, s/d, Paris p.30.

[23] Reis, Alfredo;  Filosofia, Kant, Hegel, Kierkegaard, 1990 Edição Contraponto, Porto, p.126

[24]  Kierkegaard, Soren, Post-Scriptium aux Miette Philosophiques, 1949, Gallimard, Paris, pp.201-207..

[25]  Hegel, Georg, Filosofia do Espírito, 1805 p 13