"  O Efeito de Pigmalião " 

  •   Dialécticas da "cegueira"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

  

 

" Elixir de Amor"

 ( Lenço feminino pintado. ( Pormenor ).  Viana do Castelo, 2012 )

 © Levi Malho.

 


 

Transforma-se o amador na cousa amada,
            Por virtude do muito imaginar;
            Não tenho logo mais que desejar,
            Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
            Que mais deseja o corpo de alcançar?
            Em si somente pode descansar,
            Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
            Que, como o acidente em seu sujeito,
            Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
            [E] o vivo e puro amor de que sou feito,
            Como matéria simples busca a forma

 

                   Luís de Camões

 

 

 

Quem não leu ou não foi obrigado a aprender, em tempos de meninice, este belo soneto? Nem sempre apreciado por uma adolescência irreverente por natureza, avessa a poesias e a dedilhar gramáticas que, por vezes, afastavam para sempre o gosto por uma forma de escrita que toca a universalidade do espírito.

 

 

 

Figura  1 - Camões seria um belo sedutor, ou refugiava-se nos versos?

 

 

  Para além da influência do “dolce stil nuovo” chegado por ventos de Itália, por de e depois de Petrarca, o dualismo platónico revela-se nas formas ideais numa dialética entre as coisas terrenas e celestes. A transformação idealizada pela imaginação cria uma tal radiosa beleza que o amor platónico morre com a presença da amada face ao amador. Sem dúvida que a ausência através do poder do sonhar acordado transforma a realidade em radiosa beleza ou temível fealdade. 
     Face à rudeza da realidade que revela as imperfeições da amada, aquele fulgor da imagem desvanece-se enquanto o gesto e a voz, um certo desaire da figura presente e real apaga o brilho mavioso que a imaginação produziu. A saudade é outra mistificadora e auxilia o imaginário na semideia a formar uma idealidade que jamais se encontra neste mundo. A exteriorização de uma confidência nos versos de uma ausência que se diria feliz, apaga a frustração. A sublimação do real que um poema manifesta tem aqui, na poesia camoniana, toda a beleza de um apaixonado que sente sem capacidade de revelar o que o nosso vate alcança na perfeição. É possível até que se revele incapaz de transpor os limites do onírico em que se compraz.
     Nos salões do Paço, as damas podiam incitar os seus admiradores a manifestar-lhes um afeto ao qual não correspondiam mas lhes causava satisfação. A ausência é o risco de um processo psicológico que cristaliza em colorido brilho a lembrança cada vez mais vaga de uma realidade que se esfuma por tanto recordar. Ao que se sabe, a infanta D. Maria que Camões teria conhecido e a quem a erudita D. Carolina Michaelis de Vasconcelos se refere com possibilidades de uma paixão do poeta, podia dar-se ao luxo de ser protetora de artistas e verdadeiramente mecenas. Foi a mais rica princesa de toda a Europa e duquesa de Viseu. Os visitantes estrangeiros que chegaram a conhecê-la espantavam-se com o luxo e todas as jóias resplandecentes que usava e que consideravam um certo despropósito.

 

 

 

Figura   2 - Infanta D. Maria, duquesa de Viseu e Infanta de Portugal, famosa pela sua riqueza e olhos azuis

 

 

 Recorda-se esta sua vaidade que pode muito bem ter efeitos afetivos, no pobre poeta que por grande só tinha o seu estro.  Um caso mais prosaico e real aconteceu entre a conhecida jornalista e escritora Alice Moderno, nascida em Paris, mas que veio para a ilha de São Miguel, em Ponta Delgada, aos 9 anos e o poeta Joaquim de Araújo. Nunca se encontraram mas isso não obstou a que encetaram uma relação apenas por longa correspondência. A sua longa convivência epistolar manifestava um afeto crescente entre ambos sem que nunca se tivessem visto. A Professora Doutora Conceição Vilhena é uma das figuras da literatura portuguesa que muito se dedicou ao estudo desta senhora e depois por essas numerosas cartas.
    Alice teve uma infância e adolescência invulgares e foi a primeira mulher a frequentar o liceu na cidade. Não deixou de causar uma certa admiração na sociedade. Todavia, o médico, seu pai, eternamente insatisfeito e inconstante, resolveu emigrar para os E.U.A com toda a família. Alice, que muito sofrera com a educação espartana que recebera, não os quis acompanhar. Com dignidade pagou as dívidas do pai, pois lecionava numa escola particular que organizara. Escrevia poemas e artigos acerca dos problemas políticos e sociais da época e por isso veio a saber da existência de Joaquim de Araújo. Antero, a quem enviou uma obra sua para apreciação, deve tê-la mostrado aos amigos continentais e começaram assim a correspondência.
    Algo que não prometia uma relação fácil, pois Alice mostra ser voluntariosa e sem as prendas de dona de casa como ela própria afirmava. Antero fez uma observação bem mordaz ao amigo que pode ter ferido a afeição. Diz que se Alice deixasse as veleidades da escrita e dos artigos dos jornais, ela seria uma bela rapariga. O que mais espanta é que Antero não conhecia a jornalista pessoalmente e ela assim o declarou.

 

 

Figura   3 -  Terão sido estes poemas juvenis de Alice que Antero conhecei.

 ( Quanto aos artigos jornalísticos, manifestava um feminismo que para Antero não vinha nada em abono de uma senhora da sua Ilha )

 

A afeição entre ela e Joaquim de Araújo já nascera por fim o jornalista chega num vapor a Ponta Delgada.  Verdadeiramente não se pode afirmar qual dos dois se desiludiu mais. Mas o que era um verdadeiro afeto platónico no sentido de nunca se terem visto morria diante da realidade que mostrava dois seres de carne e osso, frente a frente, com as suas peculiaridades, defeitos e virtudes próprios de qualquer homem ou mulher. Alice ponderava muito essa grande mudança da sua vida. Não terá sido apenas o esfriar do afeto, mas as raízes e o conformismo que já ganhara na ilha. Além de muito viajar pela Europa, também conseguira recursos económicos mais sólidos do que aulas ou escritos.
     Em breve Joaquim de Araújo abandonava a noiva e a ilha. As hesitações de Alice desgostaram-no e a sua insistência em casar e os argumentos que apresentava, não foram suficientemente fortes para Alice que assim seguiu um destino menos feliz por tal decisão. A vida de Joaquim de Araújo prosseguiu e fez depois uma bela carreira que daria a Alice Moderno novos horizontes. A sua personalidade sofreu cada vez mais com o contraste entre a sua vida e a sociedade que em grande parte a hostilizava. Com algum ódio que antes fora amor, um dos seus pretendentes escrevia Gazetilhas em que a ridicularizava por ter uma indústria e trabalhos que apesar de bem rentáveis não eram, na época, adequados a senhoras. Impossível porém esquecer a sua dedicação e ação pelos pobres e fracos. Foi pioneira na proteção dos animais em Ponta Delgada e a sua generosidade para com as crianças também foi marcante. Porém foi pena que a ilha guardasse a sua prisioneira.
    A mitologia mostra a figura de Pigmalião, rei e irmão de Dido, a lendária mulher que fundou Cartago. Este rei era celibatário pois se desiludira com a infidelidade das mulheres. Dedicou-se então, com enorme empenho pois era um excelente artista à escultura. Já que as mulheres tanto o desiludiram a sua estátua transformou-se numa maravilhosamente bela mulher.

 

 

Figura   4  - Galateia foi a estátua que os deuses transformaram em mulher depois de todo o desespero do rei Pigmalião  

 

Pigmalião, encantado com a sua obra, apaixonou-se perdidamente pela bela estátua. Foi tão forte a sua paixão, tão triste a sua dor e choros que os deuses condoídos a transformaram a estátua numa mulher com a qual o encantado rei Pigmalião se casou.
    De modo completamente diferente, hoje fala-se do “efeito de Pigmalião” em relação às expectativas de um professor quanto aos seus alunos. Depois a psicologia transformou-o num estudo científico assim nomeado por Robert Rosenthal e Lenore Jacobson que verificaram o efeito positivo ou negativo de um professor quanto as suas expectativas sobre o desempenho dos alunos. Mais tarde, o Efeito Pigmalião transformou-se no Efeito Rosenthal que afeta as relações humanas e se procurou utilizar nas empresas. Os chefes e os seus colaboradores devem adotar entre si, um modo de realçar as suas qualidades e não os seus defeitos.
    Na realidade, quando a nossa imagem nos é devolvida pelos outros de forma positiva afeta interiormente a nossa consciência pois qualquer pessoa que se sentir apreciada ou admirada aumenta a auto estima e, ao mesmo tempo a vontade de não desiludir quem assim nos admira. A estátua de Pigmalião é a exterioridade de um ser humano interiorizada no pensamento de alguém.
    Uma mãe que ame o seu filho só encontrará encantos que é muito provável que tenha mas que mais ninguém é capaz de ver. Recordamos uma situação algo penosa e ridícula que sem querer presenciamos. Estávamos na companhia de travessos adolescentes que conversavam connosco animadamente, rindo e discutindo porás de exames. De repente, surgiu uma mãe, que era minha colega e os jovens bem conheciam pois era da nossa escola. Vinha muito apressada e trazia o seu filho ao colo. Expectantes, observávamos mais atentamente o bebé quase oculto. Bem agasalhado, lá conseguimos espreitar no meio de fortes cobertas o tal bebé, a causa fatal do atraso.

 

 

 

Figura  5 -   A beleza está nos olhos de quem ama

 

 

Vimos uns olhos bem pequeninos e assustados, uma face rubicunda cravada de borbulhas com pus numa pele oleosa e luzidia. A zelosa mãe explicava que, com a pressa, acabara de lhe enxugar o cabelo num secador elétrico. O bebé parecia bonacheirão mas o efeito de secar à pressa aqueles fios de cabelo,  ralo e louro, levara que o bebé exiba  agora uma loura aureola do cabelo todo em pé por causa da eletricidade. A pequena cabeça com este aspeto e nestas circunstâncias era um tanto difícil de contemplar sem espanto. A mãe mostrava o filho com grande alegria e interrogou-nos com intensa emoção, mais para confirmar do que para saber:

----   Ele não é tão lindo?

A sinceridade é apanágio dos jovens e estes não responderam, apenas desapareceram o mais subtil e depressa possível pois o riso contido era quase irresistível. Tivemos de concordar com a beleza da criancinha, com toda a falsidade do juízo por uma ternura de uma mãe que assim via tamanha beleza porque bem se diz que “o amor é cego”.
     Henry Beyle (1783-1842).  com o pseudónimo de Stendhal foi um famoso autor, considerado já um escritor moderno, pelas suas capacidade de fina análise psicológica.  Traçou este processo de transformação do objeto amado em rara beleza e qualidades excelsas num ensaio muito profundo intitulado “De l Amour”. Aí compara o modo do enamoramento à transformação de um feio galho de árvore, seco e cinzento, que fica muito tempo dentro de uma mina de sal. Depois disso´, transforma-se numa joia que brilha com cristais em irisadas cores, capaz de deslumbrar e enganar qualquer um. Na continuação da explanação do processo amoroso, Stendhal coloca o apaixonado e um seu amigo à espera da sua amada.

 

 

Figura   6 - A cegueira faz muita gente feliz

 

 

Enquanto aguardam expectantes a entrada no salão, o jovem apaixonado vai descrevendo a beleza da jovem amada e são tantas  as suas qualidades e formosura que  deixam o amigo extremamente curioso. Quando porém surge a jovem, o amigo fica a desconfiar que não pode ser aquela mas, depois de perdidas as ilusões e verificar que não há engano e é essa a tão esperada beldade, fica completamente dececionado e mal entende onde o amigo encontra qualquer atributo digno de tamanho entusiasmo e enaltecimento. Todavia, manteve-se silencioso pois a experiência ensinara-o que “quem o feio ama bonito lhe parece.

 

 

Figura  7 -  A beleza feminina é invisível para muitos

 

 

Raramente a realidade não sofre uma profunda distorção no nosso pensamento. Pensamos dentro de estruturas que não conhecemos. O nosso gosto é modelado por mil e uma circunstâncias. A realidade que interpretamos não é a que existe. Os efeitos de Pigmalião são intrínsecos e inevitáveis. O afeto     parece ser real mas a sua raiz, no cerne do processo cognitivo, não passa de um fenómeno externo que lhe rouba a autenticidade. O mais difícil neste processo psicológico e social está em admitir que os nossos sentimentos são irracionais.
    Modelam-se no íntimo por causas exteriores a nós. A nossa cegueira, por vezes tão visível para os outros, rouba-nos o conhecimento de nós mesmos. A força da ideologia, do sentido oculto que não vemos, ou das circunstâncias sem podermos descobrir como o irracional nos ofusca a verdade traduz-se em cegueira. A grande cegueira também os gregos a conheciam e nada do que nós vivemos, meio acordados ou meio a dormir causam a dialética do impossível das grandes paixões e chegamos a um nosso aforismo que nos parece tão apropriado As pessoas não são amadas por serem boas ou belas, são boas e belas porque nós as amamos.