"  Jogos de Espelhos " 

  •   Paradoxos de Narciso

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

 

" Sombras de sombras "

 ( Reflexos ambíguos em parede iluminada pelo Sol.  Esposende, 2012 )

 © Levi Malho.

 


 

 

 

Figura 1  - O espelho cansado de refletir só aceita decifrar mistérios

 

 

 

O amor romântico, tal como se diz, tem pouco mais de um século de existência. Os estudos revelam que as sociedades não viveram esse romantismo apaixonado, os casamentos eram combinados entre as famílias, do oriente ao ocidente e o afeto, se existia, só tornava o matrimónio mais harmonioso sem ser um fator determinante.  Pelo contrário, o destino, que os gregos denominavam Moira encerrava uma fatalidade a que ninguém escapava. Por caprichos dos deuses e para seu divertimento os humanos sofriam revezes ou alegrias mas também eles não escapavam à submissão da Roda da Fortuna.
    À mulher importava que fosse a progenitora de filhos saudáveis e se pudesse ser fiel melhor seria sem que contudo conjugalidade e afetividade se dessem as mãos.Desde a mais remota antiguidade se deu grande importância aos túmulos, mas ganhou fama o túmulo existente em Halicarnasso. Considerada uma das sete maravilhas do mundo, o local hoje é apenas de grande turismo europeu na Turquia.
    .Durante 24 anos Mausolus e Artemísia governaram nesse local. Eram ambos filhos de Hecatomno, mas era comum o casamento de irmãos. A famosa Cleópatra também foi casada com o seu irmão Ptolomeu XIII que ela, depois de se juntar a Júlio César, mandou assassinar.    O nome desse sátrapa que se considerava rei tornou-se famoso com o tempo, e por corruptela passou a ser Mausoléu e agora atribuísse a todas as tumbas, que pelo seu alto valor artístico ou dimensional, que se lhe seguiram na sua magnificência. A lenda acrescenta que o desgosto da rainha foi tão grande que Artemísia bebeu as cinzas do marido misturadas com sumo de fruta, durante o tempo que sobreviveu ao marido.

 

 

Figura 2 - A rainha viúva Artemísia de Caria bebeu as cinzas do marido morto com sumos de fruta durante o tempo que lhe sobreviveu.

 

 

As razões da construção deste maravilhoso monumento ficaram ocultas no tempo. Manifestação de afeto, de poder ou outro qualquer, o certo é que devido à sua beleza passou a ser uma das sete maravilhas da Antiguidade, ao lado dos jardins suspensos da Babilónia, da estátua de Zeus, ou do maravilhoso farol de Alexandria.
        O tempo e as invasões acabaram por destruir o túmulo de Mausoléu do qual só existem ruínas transformadas em atração turística da cidade de Bodrum. Por Halicarnasso passaram as ambições de muitos entre os quais Alexandre Magno, árabes e outros até que um terramoto derrubou o túmulo por completo.

 

 

 

  

Figura 3  - O lendário túmulo de Masoleo, mandado construir por Artemísia II de Caira, passou a ser considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo

 

 

Em 1857 o túmulo foi reconstruído para testemunho da grandeza do passado de Halicarnasso. Porém as verdadeiras estátuas que restam e um friso repousam em terras inglesas. Descansam serenamente no Museu Britânico, aguardando visitantes distraídos que os acordem. Um olhar mais atento recorda que tudo aquilo são espólios de guerras e se reúnem ali as ambições mortas de muitos impérios reduzidos a pó.
       O monumento mais conhecido de toda a Índia é também um túmulo. Se não é o mais belo é o mais visitado. Quando o nosso micaelense Bento de Góis, (1562- 1607) na sua arrojada e primeira viagem de Goa, na Índia portuguesa, até às muralhas da China em busca do lendário reino do Cataio, passou por Agra, onde o túmulo foi construído, este monumento ainda não lá existia. Bento de Gois ficou admiravelmente surpreendido com a cidade e não deixou de se lhe referir pois que conheceu bem Agra e conviveu com os seus governantes. Ainda hoje a cidade tem muito mais de um milhão de habitantes.
     O Taj Mahal, alvo e quase etéreo, por entre a luz que sobe do rio Yamuna, rosado ao pôr-do-sol, fantástico sob a luz da lua, é essa jóia da arquitetura que fascina quem a visita, tanto pela harmonia como esplendor que não lhe retira a rara simplicidade.

 

 

Figura 4 - A princesa que  se tornou em imperatriz mongol e a mais amada pelo marido o grande mecenas Shaha Jahan

 

 

Foi o imperador Shaha Jahan quem o mandou construir. O seu casamento, com uma princesa persa e muçulmana, durou cerca de 19 anos. Mumtaz Mahal, ou a “A Jóia do Palácio” que outros designaram por “A eleita” pois o imperador tinha mais esposas,  mostrava-se sempre muito benevolente com os pobres e os fracos, tornando-se na grande conselheira e companheira constante do imperador, mesmo em campanhas militares. Foi numa dessas campanhas que a linda princesa faleceu ao dar à luz o seu décimo quarto filho.
    Shaha Jahan, o imperador mongol, sentiu tão profundamente a morte da esposa que mandou construir um túmulo entre 1632-1653 e que se tornou a maravilha mais conhecida da Índia. Seria o próprio imperador que desenhou a arquitetura. Aliás, Shaha Jahan ficou famoso por ser um mecenas de capacidades que se diriam ilimitadas. A Índia esconde maravilhas que os atónitos europeus, levaram muito tempo a descobrir.

 

 

 

 

 

Figura 5 - O túmulo da esposa de Shaha Jahan

 

 

 Porém esta história não termina aqui. Durante a longa construção, os dedicados obreiros já se interrogavam se o imperador não transferiria o amor que tinha pela esposa para tão maravilhosa obra que nunca mais acabava. A dessexualização do amor esconde o mistério da sublimação, presente  em tantas obras de arte. Coberto de mármores, pedrarias, com estátuas, frisos de flores e frases, era um todo harmonioso e belo que as pessoas pensavam se afinal o dedicado culto transferido para aquela obra-prima já não apagava a recordação da esposa morta. 

 

 

 

 

 

Figura 6 ~- Uma jóia indiana e um enigma de mármore e pedrarias. Por afeto ou sublimação catártica?

 

 

 

Diz-se que mantou cortar as mãos de todos os que trabalharam na obra para que não pudesse realizar mais nenhuma que se lhe comparasse. Mas tudo teve um fim bem trágico. As guerras, sempre constantes nesse país, levaram o imperador a tornar-se prisoneiro dos seus poderosos inimigos. Por ironia do destino, a luta pelo poder, levou a que o encerrassem em local onde da janela podia contemplar o  seu Taj Mahal, esse objeto do seu desvelo e para onde muito mais tarde, levaram o seu corpo, ficando os dois esposos em túmulos ao lado um do outro.
    Trabalho de luto, catarse, manifestação de poder ou ostentação, a obra de arte em oculta no seu âmago complexos sentimentos humanos. Alguns  artistas sentem um terrível vazio, frustração ou desilusão diante da sua obra acabada. Já não lhes pertence e o Outro atribui-lhe tantos significados diferentes dos seus. O que refletia a sua subjetividade ou manifestava o seu poder transforma-se num objeto para os outros. São muitas as construções religiosas que apagam a intenção inicial e se metamorfoseiam em sentimentos de secreto orgulho ou vaidade de quem as mandou construir. Por vezes, um culto narcísico patenteia-se e quase se desvenda por trás desses monumentos.

 

 

Figura 7 -  As construções do deserto Dubai ou os excessos da loucura das construções sem fim

 

Décadas de dedicação, de teimosa insistência estão nessas pedras que nos podem contar histórias humanas ou até demasiado pessoais, quando o seu fito aparenta um sentido sagrado, uma manifestação da fé.   Tantas construções devem a sua origem a profundos e complexos sentimentos. Nem sempre são os que aparentemente mais evidentes e conhecidos se dizem e se reclamam. Há excelentes e empreendedoras pessoas que se encontram à frente de um qualquer cargo que lhes dá possibilidade de grandes construções. Então começam as obras para um dado fim Depois surge a necessidade de melhor concretizar a obra. Mais um pormenor que, mesmo dispendioso trará mais beleza e a obra continua quase sem fim…
     De repente, notamos, finalmente que se ultrapassou em muito o fim ou o objetivo. Quanta megalomania se surpreende oculta em empreendimentos notáveis. O Convento de Mafra, desconstruído ousadamente por Saramago, tem por trás de si, uma multidão de intencionalidades por entre a grandeza e a estética, a ideologia religiosa e a crença num voto. D. João V além de esteta, amava a arte e podia dar-se ao luxo de ser um mecenas.

 

 

Figura 8 - Um trono, um rei e a loucura de Portugal num espelho partido nas rotas alheias

 

 

O Convento de Mafra nasceu do voto do rei por temer não ter descendentes, mas depois o culto pela arte,  o narcisismo rumou para um espelho onde o rei era “Esse infeliz comparável aos espelhos/ Que podem refletir mas não ver”. (Aragon).
    O paradigma que nos parece patente surge-nos em Antonio Gaudí (1852-1926) que o ensaísta alemão Abraham Moles se atreveu a designar Kitsch, é o narcisismo que se patenteia de tal forma na obra que não é capaz de a dar por acabada. A sua “Sagrada Família” deixa uma impressão de excesso, de beleza que quer a captação do todo. Será que o amontoado de pormenores, todos eles igualmente belos e significativos não é já o desespero de um finito em espiral desesperada para o céu como o infinito de uma torre de Babel?

 

 

 

 

 

Figura 9 -  Barcelona! Mafra! A aspiração do infinito transmudado na pedra

 

 

 

A incapacidade de terminar um monumento, a frustração que advém de uma obra acabada está na contínua busca da perfeição que só demonstra em cada ser humano a sua ânsia de um infinito tão inalcançável como desejado. Não podemos nunca esquecer a sabedoria imensa de Platão, que era um génio. Todavia, bem mais tarde e agora mais esquecidos, Freud e os psicanalistas foram terríveis curiosos que desnudam a alma humana e nos mostram como o amor foi tanta vez inventado pelo coração que vive não no mármore, nem na pedra, nem no livro, mas na afetividade que dá colorido e sentido à vida e a tanta obra inanimada.
    O jogo dos espelhos é tão simples e fácil, todavia quanto segredo e mistério não oculta?