"  Cão que ladra ... " 

  •   Cave Canem

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

 

" Andar nas nuvens "

 (Nuvens que passam em manhã de Primavera.  Zona de Matosinhos, 2012 )

 © Levi Malho.

 


 

Normalmente é inofensivo. Mas tenho um que ladra e morde. Aqui, nesta boa terra, cães não faltam. São Lázaro, orago de freguesia, tem cão mas ele é que ajuda o santo, carregado de feridas. Aquele inocente deve ter ido às urgências hospitalares num dia azarado. Nem lhe deram ligaduras decentes. É a crise. Tudo é crise. Almoça-se a crise e adormece-se a olhar a crise. Roubos, droga, divórcios, pancada, fome, governos com suplementos alimentares e as guerras de longe e de perto. Mais ao longe soam latidos de guerra. Como tudo o que está longe não assustam, a crise é dos outros.
     Já o nosso São Francisco fica com uma estátua de cão ao lado há anos e parece que nem se dão bem. Quem sabe se, em noites de trovoada, o danado do cão desata a uivar e o santo acorda desesperado e nem dorme, nem reza? Sendo santo não diz aquelas palavrinhas que lhe pede o coração exasperado.

 

Figura  1 -  Estátua ao cão de fila Existente na entrada ou saída de Vila Franca do Campo

 

É inédito e originalíssimo entrar numa terra que tem um monumento ao cão. Que gente modesta! Que altruísmo! Que sabedoria! Só somos grandes quando enaltecemos os humildes. Só somos Humanos quando nos reconhecemos nos animais. Um homem que se julga anjo é uma besta, dizia Aristóteles! Neste caso, com mais elegância, é cão! Orgulhoso por ser cão, mas com ar filosófico, aquele cão espreita o ano todo a ver quem passa. Sem ladrar, sem morder, de tão manso atrai as criancinhas que brincam à roda ou lhe saltam para o lombo. Por vezes é alvo merecido de uma foto gentil de turista intrigado. Uma estátua ao cão é uma homenagem que dignifica uma população inteira.
    Será aquele cão um herói? Salvou das ondas aterradora o dono teimoso que queria surfar? Orwell escreveu “O triunfo dos porcos” estava o mundo em crise, agora a vila merece “O triunfo dos cães”.
     Abaixo a Ilíada, Camões, o Mao, a Troika. Com um pouco de imaginação descobre-se que o homem é o ópio dos cães. A dialética do senhor e do cão está por acabar. Lorenz escreveu “E o homem encontrou o cão”  recebeu um Nobel e o cão não! Quando a consciência do cão se reconhecer no homem e o homem se reconhecer no cão a narrativa marxista será mais do que milagre. O fim da pré-história. Marx disse qualquer coisa assim e tinha razão.
    Aterrava-me ser historiador, mas ainda sei algumas datas. Aquele cão é intrigante. Foi inaugurado um ano antes da data que lá está. É  só reparar bem. Será uma data simbólica? Ao herói desconhecido? A observação arqueológica canina tem uma história por contar. Para um cão, um ano é muito tempo! O Paulo de Carvalho insiste “10 anos é muito tempo, muita hora, muito dia “a ladrar. Plagiei e mudei para ladrar. Mal ou vem desafinado ou não, cantar todos sabem, mas ladrar certo é raríssimo.   

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Muita gente quer que ele saia dali. Depois destes anos todos agora só sai a votos. Já tenho a ideia do Partido dos heróis caninos. Nunca o tirem dali. Um cão protetor, logo à entrada da vila, mostra que não somos para brincadeiras. Podia acrescentar-se um letreiro “Cuidado com o cão” mas isso é metáfora de cuidado com o dono. Dava bom dinheiro, derretido em metal como um porquinho para o próximo Natal.

 

 

 

Figura 2 - Letreiro falso.

 Isto quer dizer: Cuidado com o dono!"  ---  falta a tese da dialética canina

 

 Há quem pense em trocar o cão por uma pessoa a homenagear. Mas ninguém gosta de ser tratado como um cão e faltam pretendentes ao pedestal. Somos pessoas boas e quanto aos mortos não faltariam muitos para o substituir. Mas eu ia chorar em prantos se o cão dali partisse! E para onde? Aterra-se pensar nisso!  Há um grande mestre, grande em tudo, um investigador, escritor, romancista, pedagogo e mais um rol de capacidades, coberto com um capa de humildade. Pôs esta vila letrada por gerações, onde noutras a escuridão do espírito reinava. Fomos iluminados pelo progresso e a Luz do Espirito. Gerações de devedores há muito que o cobriram do pó dos desertos e das múmias. Trata-se do injustamente esquecido Dr.^ Urbano Mendonça Dias. Dedicou a vida à sua terra. Fundou um colégio em 1903, quando sair das trevas da ignorância, além de dispendioso, obrigava a sair de casa de tenra idade com consequências imponderáveis.
    Pelo que ouço e leio do passado, esta foi sempre uma terra de cães. Magros, famélicos, a ameaçar as canelas dos desconhecidos, a rondar perto da casa do dono, eram o terror de forasteiros, até japoneses que se lamentavam desses canídeos sem raça nem pedigree que espreitavam de noite e de dia um bom par de canelas para morder. O médico que, em horas mortas, atendia doentes por vielas e canadas, tinha de ir munido de bengala, ou corria o risco de também ir para a lista dos achacados. Meditando profundamente acabo por ter uma ideia muito melhor. Condecorem o cão.

 

 

Figura   3 - Cão procura-se. Com sentido de humor, fiel e se possível rico, com iate para fins sérios e heróicos

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Sim, porque se arranjarem um cão que salve os bombeiros, é só avisa-los de véspera e depois o cão aparece, salva-os heroicamente, é inédito e tem o nome feito.  É a era do empreendedorismo? Vamos aos cães. A vila tem magotes deles, de todos dos tamanhos e feitios, com pulgas, ou lavados e secos só falta passar a ferro.
     Cães e cadelas de valor! Cães que vigiam vacas, portões de quinta, caniches de andar de fato, ou ao colo, de caça à lebre, de companhia, ou rateiros. Agora com o empreendedorismo em moda crescente, todos nós devemo-nos empenhar em arranjar cães que realizem uma obra que mereça ser cão com Maiúscula, com um mestrado e doutoramentos em Economia, Ciências Sociais, Veterinária, alguns em Direito dos Animais mais um curso de Arte Abstrata, ou até em Astronomia. Em honra da Laika, a primeira cadela astronauta russa que foi parar ao céu. Quem sabe o risco que é ter um cão que não ladra? Lá diz o ditado:
Livra-te do homem que não fala e do cão que não ladra.
    Seria formidável e moderníssimo que o cão de bronze ladrasse ao povo que passa. Era só colocar um altifalante e enchia-se de som logo à entrada da vila. Mais um que parte, mais um que chega e o ladrar do cão nunca parava. Mas pode ser mais barato e heróico com um feito homérico do peito heroico do único cão anónimo com estátua  Além de uma vaga entrada no Guiness pode-se ir mais longe nas brumas e nevoeiro do Portugal que espera eternamente um salvador. 

 

 

Figura  4 -  Quando me dão carta de condução?  Já decorei o código! Frase típica de Jovem cão.

 

 

Arranje-se um cão que seja mesmo cão, que aprenda a cantar, que dance no arame, um cão que fale inglês e chinês e nos salve da perpétua crise. Mas tem de ser um cão honesto que não deixe o dono roubar. Um cão sério que não permita o seu dono mentir. Um cão amigo de criancinhas, de idosos e de desamparados. Enfim, um cão santo!
    A igreja já tem tantos e tantos santos que, mais este, entra devagarinho, sem se notar, em dia de saldos de santos. Afinal, os micaelenses na sua sã teologia, diziam aos burros: Anda, alminha de Deus. Se burro tem alma,  cão ainda mais tem. É o fiel amigo, nunca se zanga, nem se ofende, não trai pelas costas, recebe-nos sempre como se nós fossemos mesmo bons, alegram as casas e as crianças, tem a paciência infinita. O filósofo Schopenhauer dizia. “Quanto mais conheço os homens mais gosto de cães”. Na verdade, pode-se confiar mais na cauda dos cães a abanar do que em pessoas que nos dão abraços e sorrisos. A sinceridade do cão é genuína, não há que enganar. Tudo é sinceridade num cão, exemplo de virtudes para o homem.

 

 

Figura  5 -  Amar um cão é ser homem

 

 

A nossa homenagem ao cão herói que ainda não apareceu é um convite contra a crise. Não sei bem como mas só um cão nos salva disto. Com um cão heroico para que é que precisaremos de outros heróis de defensores da paz e da solidariedade? Quando alguém elogia outro diz:

---- Eis um Homem

Nós, na vila, diremos orgulhosos e triunfantes:

 ---- Não! Eis um Cão!

Normalmente só depois do herói morto é que há estátua. Mas somos originalíssimos. Temos a estátua, o cão, falta a obra. Só um cão santo nos salvará da crise. A estátua espera. Ai Fernando Pessoa como foi que te enganaste tanto? Até em falar de gatos que brincam na rua e não veres os cães! Deus quer, o cão sonha, a obra nasce.
    Aqui na Vila, é a síntese antes de tese: primeiro a obra nasce, depois o cão sonha só falta saber se Deus quer!